sábado, 31 de dezembro de 2016

2017, Ano Zero

1917, 100 ANOS




(MCMXVII – MMXVII)
(1917 – 2017)


E 100 ANOS PASSAR-SE-IAM


- Tenho a impressão de que o senhor deixou as pernas debaixo de um automóvel, Seu Ribeiro. Por que não andou mais depressa? É o diabo. Graciliano Ramos, São Bernardo


"Façamos a revolução antes que o povo a faça". Antônio Carlos Ribeiro de Andrada


“Por isso, repito com realce o que escrevi no prefácio de 1967: uma das forças de Raízes do Brasil foi ter mostrado como o estudo do passado, longe de ser operação saudosista, modo de legitimar as estruturas vigentes, ou simples verificação, pode ser uma arma para abrir caminho aos grandes movimentos democráticos integrais, isto é, os que contam com a iniciativa do povo trabalhador e não o confinam ao papel de massa de manobra, como é uso.” Antonio Candido São Paulo, agosto de 1986 


A Greve Geral de 1917 em São Paulo



CHRONICA





CRÔNICA
Serena e desinteressante ia correndo a primeira quinzena, sob ambiente comum da paz social. De repente, a cidade é abalada com a notícia de greve geral do operariado. “Não era possível!” – exclamavam, com uma pontinha de ceticismo os conservadores, Mas logo se desiludiram, vendo na rua a legião infinita dos grevistas. Certamente, devia existir um forte motivo, determinante do movimento. Mas sem dúvida! O motivo era o sofrimento dessa imensidade de operários. Desde o principio da guerra, quando os gêneros de primeira necessidade começaram a encarecer, a situação do operariado foi revelada em comícios, aqui e ali, e a linguagem dos oradores dava ao quadro todas as tintas do horrível. Ninguém, todavia, os levou a sério, os quis ouvir, e as queixas e os sofrimentos jamais voltaram a ultrapassar os domínios do trabalho.

E como tudo, no decorrer dos dias, semanas e meses, preanunciava um perigo social, o Comitê de Defesa Proletária, possuindo um incomparável campo de experiências, resolveu tratar da questão pelo recurso da greve. Sem duvida, a greve é um direito, e a idéia, exposta aos trabalhadores prejudicados, encontrava naturalmente o assentamento de todos. Esvaziadas as fábricas e oficinas, começaram nas ruas a passeata de milhares de obreiros inativos. O espetáculo não era dos mais agradáveis para os nossos créditos de cidade pacata. Mas nada podia impedir, dentro da ordem a manifestação do proletariado. Foi quando a policia, receosa de conflitos, interveio junto dos patrões, na esperança de que eles cedessem. Muitos foram amáveis, conciliadores; outros mostravam-se hesitantes; outros, ainda, inflexíveis, não cederam coisa nenhuma. E, por que ao argumento do salário, os operários juntavam outras exigências, entre as quais a redução dos preços dos gêneros de primeira necessidade, legislação e regulamentação do trabalho, a vesania apoderou-se dos espíritos e os conflitos não se fizeram esperar. Foram sacrificadas algumas vidas e de tal forma se intensificou o espírito de revanche, que a imprensa, receando maiores conseqüências, teve o belo gesto de se constituir mediadora, entre operários e patrões. Não conseguiu tudo, mas conseguiu muito e isto demonstra claramente que, quando ela deu os primeiros passos para harmonizar o capital e o trabalho, já a fortalecia o prestigio da opinião publica, desejosa de ver terminado definitivamente espetáculo intolerável. Deve-se à imprensa, em grande parte, a solução da greve. Ninguém lhe pode negar o grande serviço que ela vem de prestar à paz social do Estado, senão de Indo o país.

Resta agora que o Governo, por todos os recursos ao seu alcance, trabalhe por modificar as condições de vida de uma enorme massa de trabalhadores, cuja rebelião só teve em vista melhorar uma situação que a ameaçava de morte. A preocupação de proibir a federação dos sindicatos de Trabalho, é preferível reconhecer que, uma vez proclamado o direito de greve, pela paz ou pela força o operariado há de conquistar regalias que o ponham a salvo do regime das compressões.

O que se deu em São Paulo não é uma novidade de conquista. Lá fora o operariado tem feito coisa igual. O que em toda o parte se vê é que ele, com as suas lutas, tem conseguido dos governos várias reformas saciais, no interesse superior da coletividade, não sendo por isso justo que o Governo, em nosso país, em vez de aproximar o trabalho e o patronato, os separe e distancie, tornando-os inimigos irreconciliáveis. A legislação pátria necessita ser ampliada com regulamentos para serem observados no que toca ao dia de oito horas, ao trabalho das mulheres e das crianças, à higiene das Fábricas, etc., de maneira a encorajar o labor individual no domicílio e impedir a opressão industrial. Tudo isto demanda de um estudo sério, mercê do qual derive um programa de reformas, capaz de resolver o problema econômico que deu causa à recente greve.

Imitemos a Inglaterra. Em 1802 já o governo daquele liberal país se preocupava com questões operárias, entre as quais o trabalho das crianças. Várias reformas vieram em benefício do proletariado, sem nenhum prejuízo para os industriais. Ao contrário, a elevação de salários trouxe à industria inglesa benefícios incalculáveis. A exportação aumentou espantosamente e os industriais acabaram por se convencer de que, com um pouco de boa vontade, se podem resolver os mais intrincados problemas.

Imitemos a Inglaterra, imitemos a França, imitemos a Itália nas concessões feitas ao operariado, estabelecendo medidas liberais e criando instituições de previdência, tão necessárias no seio das grandes aglomerações operárias.



IMAGENS DA GREVE GERAL DE 1917




Trabalhadores em manifestação no Praça da Concórdia, no Brás, no dia 16 de julho de 1917












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10 DIAS QUE ABALARAM O MUNDO







Dez dias que abalaram o mundo (1967)


ARTIGO Roberto Pompeu de Toledo


EM 1917

O que se passava no Brasil (e no mundo) há um século, quando éramos menos de 30 milhões, os políticos vestiam casaca e a classe operária subiu ao centro do palco


GUERRA, REVOLUÇÕES, GREVES – 100 anos atrás, pressões externas e internas submeteram o Brasil a conflitos e inéditos desafios. 1917 é o ano em que a guerra na Europa, no curso do terceiro para o quarto ano, acabaria por engolfar o Brasil. Na Rússia, a revolução comandada por Lenin e Trotsky espalharia perplexidade, susto, medo e esperança para muito além das fronteiras do antigo império dos czares. Tempos novos se anunciavam, a sacudir a estruturas políticas, econômicas e sociais mundo afora. “Quando a guerra terminar, quando começar o trabalho de reparação e reconstrução, Nova York estará ocupando o antigo lugar de Londres e será para a Wall Street que se voltarão os olhares ansiosos dos homens de negócio, que até agora viviam preocupados com os movimentos da City”, escreveu, com lucidez, o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, na edição de 1.º de janeiro daquele ano. Nas principais cidades brasileiras, a classe operária entraria em ebulição, e São Paulo conheceria uma greve Geral de proporções antes nunca vistas.
Era um tempo em que os     governantes do país ainda se embrulhavam em casacas, ao calor de 40 graus do Rio de Janeiro. O Brasil chegava aos 28,5 milhões de habitantes com 70% de analfabetos, contra menos de 40% dos vizinhos Argentina e Chile. Os locais que exibiam filmes, aliás, films, eram ainda chamados de cinematógrafos, e o presidente era o mineiro Wenceslau Braz. No primeiro dia do ano foram apreendidos pela polícia do Rio de Janeiro panfletos que, sob o título “1917 – Palavras de ano novo”, diziam: “Somos anarquistas e julgamos que só uma transformação libertária, só uma reorganização sob princípios anárquicos, poderá assegurar a todos e a cada um o bem-estar possível a que todos e cada um têm direito”. Era um aperitivo para o que o ano reservava, em desassossego operário. Em fevereiro morreu Oswaldo Cruz, o vencedor do Aedes aegypti, em sua primeira encarnação. Deixou por escrito um pedido para que, por considerar a morte “fenômeno fisiológico naturalíssimo”, a família o poupasse “dos atavios convencionais com que a sociedade revestiu o ato da nossa retirada do cenário da vida”.
Em 5 de abril o navio brasileiro Paraná, navegando na costa francesa com uma carga de café e feijão a ser entregue em Le Havre, foi posto a pique por um submarino alemão. Segundo informaria o comandante, a embarcação foi torpedeada a bombordo, na casa das máquinas, 1 metro abaixo da linha de flutuação. Em seguida, o submarino veio à superfície e disparou cinco tiros de canhão. Da tripulação de quarenta homens, três foguistas sofreram ferimentos, leves. Dois dias depois, uma passeata de voluntários fardados, no Rio, sob chuva, entoava vivas aos aliados e brados hostis à Alemanha. A multidão aplaudia. O governo brasileiro, que se declarara neutro no início das hostilidades, via-se diante de uma nova realidade.
Os Estados Unidos, igualmente neutros a princípio, também tiveram navios vitimados pela guerra submarina desencadeada, em desespero, pelos alemães do cáiser Guilherme II. Em 6 de abril, o Congresso americano aprovou a declaração de guerra proposta pelo presidente Woodrow Wilson. O Brasil, no dia 10, rompeu relações com a Alemanha. Seguiram-se manifestações nacionalistas e guerreiras pelo país. Em 23 de maio outro navio brasileiro, o Tijuca, foi torpedeado na costa da França. No dia seguinte Wenceslau Braz, pobre dele, tão pacato que quando vice-presidente do marechal Hermes da Fonseca, no mandato anterior, passara boa parte do tempo a pescar em sua Itajubá, convocou reunião ministerial da qual saiu uma proposta de rompimento da neutralidade a ser enviada ao Congresso. Os nervos estavam à flor da pele, os brios nacionais ferviam.
Estamos numa época de grandes homens. Ou melhor, uma época em que se acreditava na existência de grandes homens – e o maior deles era Rui Barbosa, o enorme Rui, então com 67 anos e cumprindo mandato de senador pela Bahia. Rui Comandava, com seu prestígio, seu fervor e sua eloquência, a campanha ela adesão aos aliados. Era também uma época em que no Congresso havia astros da oratória, e em que um frisson percorria a espinha quando se anunciava que um deles ia falar. No dia 31, aguardado com os corações em festa, Rui Barbosa tomou a palavra no Senado. “A verdade mais verdadeira entre as verdades é que nesta guerra não se trata de nenhum interesse mercantil; o que se trata é da vida interna de cada uma das nacionalidades ameaçadas pelo aparecimento de um terror novo, que procura colocar acima de tudo o pavor da força e do despotismo”, disse. E disse muito mais, ao longo de quatro horas – ele nunca deixava por menos. Nas galerias, repletas, havia muitas mulheres e, segundo noticiou O Estado de São Paulo, “personalidades salientes na política e na diplomacia”. Um dos presentes, o conselheiro Barros Barreto, velho político do Império, declarou:
“Tenho 92 anos e estou aqui há quatro horas. Saio satisfeito e acho que o dia de hoje é para nós mais grandioso do que o 25 de março de 1824, quando se procedeu aqui o juramento da Constituição do Império. O que vi hoje faz-me saudade do tempo em que votamos a Lei do Ventre Livre. Levantamo-nos para votar e não pudemos mais sentar porque as cadeiras estavam altas de flores. É a primeira vez que ouço o Sr. Rui Barbosa. Quis ouvi-lo para não morrer antes de ter esse prazer”.
A guerra era terrível, mas tinha lá seu charme. Os jornais exibiam anúncios assim: “A Casa Lebre acaba de receber grande quantidade de bengalas, última novidade, cujos tipos são usados pelos marechais Joffre e Cadorna e também usados por Kitchener, as quais acham-se expostas em suas vitrinas” (O Estado de S. Paulo, 14/07/1917; o francês Joffre, o italiano Cadorna e inglês Kitchener eram comandantes de tropas aliadas).
Pausa para os assomos guerreiros, hora de atentar à voz rouca da depauperada classe operária. Em 10 de junho, o Cotonifício Crespi, no bairro da Mooca, em São Paulo, parou de trabalhar. Horas antes os operários haviam sido informados de que o horário do serviço noturno seria prolongado. Era então simples assim. A direção da fábrica informava. Não pedia a opinião da parte contrária, nem julgava necessário oferecer-lhe remuneração pelo trabalho extra. As fábricas eram insalubres e as jornadas podiam chegar a catorze horas. Não tardou para que outras fábricas aderissem. No dia 9 de julho, um grupo de grevistas do Cotonifício Crespi saiu em passeata rumo ao vizinho bairro do Brás e armou piquetes à porta da fábrica Mariângela, do magnata Francisco Matarazzo, para forçar sua paralisação. A Força Pública (nome da Polícia Militar à época) interveio e, paus e pedra para cá, tiros para lá, caiu morto o operário José Martinez, imigrante espanhol de 21 anos.
Os estrangeiros, italianos em primeiro lugar, constituíam a maioria da classe operária. O anarquismo era a ideologia dominante. No mesmo dia da morte de Martinez, a greve chegou a 35 empresas e 15 000 trabalhadores. Além de exigirem aumentos salariais e melhores condições de trabalho, os grevistas pediam providências do governo contra a “carestia” (a palavra “inflação” ainda não entrara em circulação). “A verdade é que a situação do operário em São Paulo presentemente é, em geral, péssima”, afirmou O Estado de São Paulo. Em 11 de julho, o cortejo que acompanhou o corpo de Martinez, do Braz ao Cemitério do Araçá, converteu-se na maior manifestação operária até então ocorrida na cidade. Nos dias seguintes entrou em ação uma “comissão de jornalistas”, que reuniu representantes dos principais órgãos de imprensa da cidade, e, ao aproximar as partes, jogou água na fervura.
A greve se encerraria, com algumas concessões dos patrões, em 16 de julho, mas os acontecimentos de São Paulo ainda reverberariam pelo país. No Rio, no dia 18, em solidariedade aos companheiros de São Paulo, o operário Flávio dos Santos conseguiu que 180 trabalhadores de uma fábrica de móveis o acompanhassem numa greve. A iniciativa frutificou. Dos marceneiros o movimento avançou para os serralheiros, os alfaiates, os sapateiros, os metalúrgicos. O Correio da Manhã considerou, no dia 21, que “pela primeira vez desde o encerramento da questão abolicionista” o país era “agitado pelo impulso de forças desconhecidas”. Em agosto, houve greve geral em Porto Alegre. Em setembro, no Recife.
O ano de 1917 foi aquele em que a classe operária impôs sua presença. O Brasil, dali para a frente, haveria de levá-la em conta. Nem por isso os hábitos da alta cúpula se alteraram. Conchavos semissecretos encaminharam-se já desde o começo do ano à escolha do ex-presidente Rodrigues Alves como sucessor de Wenceslau Braz. Em junho sua candidatura foi oficializada. A eleição só seria em março de 1918 e a posse em 15 de novembro, mas as coisas eram de preferência assim – decididas com boa antecedência, para evitar impertinências. Na eleição, como também era da preferência dos caciques, não haveria outra candidatura e o único estorvo seria a morte de Rodrigues Alves, antes de tomar posse. Não se pode querer tudo.
Em outubro a guerra voltou a galvanizar o país. No dia 25 mais um navio brasileiro, o Macau, foi afundado. No dia 26 o Brasil declarava guerra à Alemanha. Escreveu o Correio da Manhã: “Ao cabo de quase meio século de paz exterior, quando as idéias de guerra e de aventura se achavam inteiramente alheias às suas preocupações, a nação brasileira, provocada por uma série de atos de hostilidade, culminando numa expressão de beligerância que nos obrigou a entrar resolutamente no grande conflito mundial, declara um estado de guerra, com um gesto forte, unido e calmo, que vem desmentir todas as opiniões pessimistas sobre a nossa fraqueza moral e sobre a nossa suposta falta de espírito nacional”. O espírito guerreiro atingia desde o alto clero (“Unidos às autoridades legitimamente constituídas, saibamos cumprir o nosso dever”, disse o arcebispo de Olinda Recife, Sebastião Leme) até os anônimos que, em Ouro Preto, segundo O Estado de S. Paulo, empenhavam-se em exercícios de tiro nas montanhas.
Em novembro a convulsão que desde o início do ano sacudia a Rússia desemboca num golpe em que os comunistas tomam o poder. “Telegramas de Petrogrado dizem ser grave a situação no país, em conseqüência da revolução fomentada pelos maximalistas”, noticiou O Estado de S. Paulo, no dia 8. (“Maximalistas” eram os que reivindicavam o “máximo” para a classe operária – os comunistas.) Já o Correio da Manhã do mesmo dia pintava quadro diferente: “As últimas notícias chegadas de Petrogrado são satisfatórias e fazem esperar que o efêmero reinado dos maximalistas chega ao fim”. No Estado do dia seguinte, um telegrama de Paris afirmava: “Embora não querendo fazer juízos antecipados, os jornais formulam interrogações sobre o futuro. Entendem eles que os idealistas eslavos se deixaram arrastar por uma minoria de traidores, corrompidos pelos alemães, e consideram que o momento não é para recriminações, mas para se recorrer a todos os meios de se conjurar o perigo que ameaça a Rússia livre”.
Com telegramas que se atropelavam e se contradiziam, o mundo ia despertando para a triunfal entrada do “agitador Lenin”, como diziam os jornais, na história do século XX. Um freqüente colaborador do Estado, Mario Pinto Serva, advertiu: “Olhemos para a Rússia e evitemos que sobre o nosso país recaia o anátema que merecem as nações corroídas pelas ambições egoísticas e dilaceradas pelos apetites pessoais”. Já Everardo Dias, um dos articuladores das greves em São Paulo, escreveria: “1917 foi para nós como um arrebol anunciando uma aurora radiosa de redenção, e sob nossos olhos estáticos surgiam os rostos dramáticos de homens e mulheres do povo russo acompanhando seu guia genial”.
No mesmo mês de novembro a pintora Anita Malfatti escandalizava o olhar dos bons paulistanos com uma exibição da arte moderna que aprendera na Europa. Em dezembro, no dia 28, o Correio da Manhã afirmou estar a nação “presa nas mãos de um sindicato político, com sede na capital da República e sucursais pelos estados, dispondo de tudo à revelia do povo”. Ficou para 1918 a contribuição militar brasileira ao esforço de guerra: navios destacados para colaborar no patrulhamento das rotas transatlânticas, uma dezena de pilotos integrados à Real Força Aérea Britânica e uma equipe de médicos enviada à França. A que seria a principal iniciativa, uma frota de oito navios de guerra, teve grande parte de seus marinheiros dizimada, na escala em Dacar, pelo surto de gripe espanhola que começava a se espalhar pelo mundo. O que dela restou só chegou à Europa em 10 de novembro, véspera do armistício que selou o fim do conflito.



Sobre a inter-relação das vozes no ensaio

Juliana Tomé Alves

Faculdade de Ciências e Letras – Universidade Estadual de São Paulo (UNESP)

jutomealves@yahoo.com.br

Abstract. From the reading and analysis of assays of the journalist Roberto Pompeu de Toledo, published in the magazine Veja, one observes it frequent “citation” of speeches of others in its composition. With the objective to understand the paper of the citation in the constitution of these assays, the material collected, taking as theoretical base the thought of the Circle of Bakhtin, especially the reflections of the call “enunciation on the enunciation” is analyzed, that it is not justified as a subjective-psychological consequence, a time that it considers its social context of production and the reader, with sights which if articulates - here the readers of the magazine Veja. This work detaches the interaction between the speech to transmit and that which serves or motivates to transmit it, since not only is referred to the speeches, but also reflects on them.

Keywords. Dialogism; assay; citation.

Resumo. A partir da leitura e análise de ensaios do colunista Roberto Pompeu de Toledo, publicados na revista Veja, observa-se a “citação” freqüente de discursos de outrem na sua composição. Com o objetivo de compreender o papel da citação na constituição desses ensaios, analisa-se o material coletado, tomando como base teórica o pensamento do Círculo de Bakhtin, especialmente as reflexões da chamada “enunciação sobre a enunciação”, que não se explica como um reflexo subjetivo-psicológico, uma vez que se considera seu contexto social de produção e o enunciatário, com vistas ao qual se articula – aqui, os leitores da revista Veja. Este trabalho destaca a interação tramada entre o discurso a transmitir e o que serve ou motiva a transmiti-lo, já que não apenas se reporta aos discursos, mas também se reflete sobre eles.

Palavras-chave. Dialogismo; ensaio; citação.

O discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação. Mikhail Bakhtin

De acordo com Fiorin (2003) “Mikhail M. Bakhtin (1895-1975) é um dos mais influentes teóricos da linguagem do século XX” (p. 22). Como princípio unificador de toda sua obra e do seu Círculo, trata a concepção dialógica da linguagem sob seus diversos ângulos e manifestações. De acordo com sua filosofia, a linguagem é um objeto ideológico por natureza, veiculando, assim, valores. Esses, por sua vez, são configurados através da interação social dos sujeitos em um contexto e grupo sociais e são agregados aos objetos materiais do mundo. Por isso, entende-se que é somente através da interdiscursividade e da interindividualidade que os signos podem existir e emergir em uma unidade social.
Para Bakhtin, a relação do “eu” com o “outro” é um princípio fundador do material sígnico, e também das formações discursivas. Nesse sentido, a filosofia da linguagem proposta por ele e seu Círculo oferece procedimentos de análise que privilegiam a identificação e caracterização das diferentes vozes por meio das quais os textos se constituem, possibilitando o exame do processo de transmissão/representação do discurso do outro. Nesse contexto, entende-se que as dinâmicas da inter-relação das vozes representam a inter-relação social dos sujeitos com a ideologia.
Sendo assim, tomando como base metodológica essa concepção dialógica da linguagem do Círculo de Bakhtin, o trabalho que aqui se apresenta pretende compreender o papel da citação na constituição dos ensaios de Roberto Pompeu de Toledo, publicados semanalmente na revista Veja. Isso se dá, pois, após leitura e análise de ensaios do colunista, observou-se que a referência e a retomada de discursos de outrem são muito freqüentes na constituição desses textos. O enunciador, na maioria dos seus ensaios, dialoga com outras vozes sociais e outros discursos, refletindo sobre eles, realizando um processo avaliativo. Sendo assim, em consonância com o quadro teórico utilizado para análise, esse processo não se explica como um reflexo subjetivo- psicológico – uma vez que se considera o contexto social de produção e o enunciatário com os quais se articula – mas antes, uma atitude ativa diante de outros discursos/enunciados. Portanto, é nessa articulação entre contextos narrativos que esse trabalho pretende destacar e explicar a interação tramada entre o discurso a transmitir e o que serve ou motiva a transmiti-lo, já que Toledo não apenas reporta-se aos discursos, mas reflete sobre eles.
Para este trabalho, foi feito um recorte do córpus geral proposto para análise de dissertação de mestrado – ensaios publicados entre julho de 2005 e julho de 2006 – analisando-se os nove publicados entre os meses de julho e agosto de 2005. Os ensaios de Toledo caracterizam-se pela sua criticidade e avaliação do contexto-político social brasileiro atual. Tal como outras opiniões, vozes sociais e textos que surgem e circulam na mídia acerca de temas do contexto brasileiro, os textos em análise revelam posições e, assim, se particularizam. Para tal, confrontam-se com outras vozes, principalmente refutando-as e ironizando-as, deixando transparecer seu próprio caráter julgador e uma modalização de indignação, principalmente. Assim, através de um confronto com outras vozes sociais e outros discursos, a voz desse enunciador singulariza-se. Ironias e analogias temporais também caracterizam o estilo desse gênero, porém, esses mecanismos discursivos não serão nem privilegiados, nem aprofundados neste trabalho, atendo-se aos processos de apropriação dos discursos de outrem. Através do embate discursivo travado entre o discurso citado e o discurso que serve para transmiti-lo, o enunciador expõe seu julgamento e avaliação do contexto políticosocial brasileiro atual, particularizando, através da sua voz, assuntos públicos. Por tratar de temas que estão em circulação na mídia próximos à semana de publicação do ensaio 1 , verificou-se nos ensaios estudados (publicados entre julho e agosto de 2005, período marcado pelos escândalos do mensalão e de denúncias políticas envolvendo o governo e o PT) uma recorrência a certas personalidades e temas, como Lula, José Dirceu, Marcos Valério, Renilda de Souza (esposa de Marcos Valério), jogador Robinho, o publicitário Duda Mendonça, o brasileiro morto na Inglaterra Jean Charles de Menezes, Roberto Jefferson, governo e PT. Dessa maneira, percebe-se a atualidade temática dos ensaios de Toledo, que, ao tratar de temas públicos atuais, particulariza sua voz com um estilo próprio, o qual se mostra crítico, julgador, irônico, mas ao mesmo tempo, não categórico. Isso fica evidente tanto através do uso de adjetivos, ironias e analogias temporais, como através do embate discursivo travado entre o discurso do enunciador e os discursos reportados.
De acordo com Faraco (2003),
No processo de referenciação, realizam-se (...) duas operações simultâneas nos signos: eles refletem e refratam o mundo. (...) Com nossos signos nós não somente descrevemos o mundo, mas construímos (...) diversas interpretações (refrações) desse mundo. (FARACO, 2003, p. 52, grifos do autor).
Sendo assim, há uma dinamicidade no universo das significações, a qual pode ser percebida nos ensaios de Toledo, em que o enunciador, ao tratar de temas públicos e atuais, ao mesmo tempo em que reflete sobre eles, re-significa-os, pois dialoga com eles, avaliando-os. Nos ensaios, essa voz julgadora se mostra, dentre outros mecanismos, através do recurso da citação. O enunciador, por meio de uma atitude responsiva diante de assuntos polêmicos e da atualidade, recupera discursos de personalidades ou dos próprios “personagens” tratados em seu texto, para confirmá-los ou refutá-los, dependendo da sua estratégia enunciativa. Ao inseri-los no contexto de produção do seu enunciado, avaliando-os, atribui-lhes novos índices de valor.
Para melhor caracterizar e pontuar os processos dialógicos recorrentes nesses ensaios e as formas de apropriação dos discursos de outrem, tomou-se como objeto de análise específico e exemplificador para esse trabalho o ensaio publicado em 06 de julho de 2005, intitulado “Glória e desdita de um dono de butique” 2 . Nele, Toledo trata da integridade e ética políticas de José Dirceu - uma vez que esse período foi marcado pelos escândalos do mensalão – argumentando que aquele que um dia fora um “defensor das políticas de esquerda” via-se agora envolvido em esquemas antes combatidos severamente pela militância de esquerda. Para provar sua tese de que José Dirceu possui uma “identidade dupla” e está perdido num “labirinto” político, o enunciador organiza em se texto relatos de fatos políticos ocorridos com o ex-ministro que culminaram com a cassação de seus direitos políticos. Traça um panorama desde a saída da Câmara dos Deputados, à entrega do seu cargo de chefe da Casa Civil a Dilma Rousseff, lembrando ainda dos tempos da ditadura – em que Dirceu viveu clandestinamente na cidade de Cruzeiro do Oeste (PR) sob o pseudônimo de Carlos Henrique Gouveia de Mello. Ao fazer esse percurso de acontecimentos políticos que envolveram José Dirceu, o enunciador apropria-se de discursos do próprio ex-deputado para, ora ironizando-os ou rebatendo-os, ora confirmando-os, garantir sua tese de que “o verdadeiro” José Dirceu de esquerda não existe, mas foi, na verdade, um personagem criado. No início do ensaio, ao falar da saída de José Dirceu da Câmara dos Deputados, o enunciador utiliza-se do discurso do ex-ministro, para, logo em seguida, rebatê-lo. O enunciador recupera o discurso “Vou mobilizar o PT para dar combate àqueles que querem interromper o processo político democrático e querem desestabilizar o governo do presidente Lula”. 3 Em seguida, o enunciador, adotando uma voz avaliadora e rebatendo a citação, afirma que o que José Dirceu fez, na verdade, foi desestabilizar o governo em vez de mobilizá-lo, como afirmou. Prosseguindo seu texto, o enunciador vai recorrendo a outros enunciados do próprio José Dirceu, ora rebatendo-os, ora confrontando-os e mostrando suas contradições internas, de modo a marcar a “duplicidade” do caráter político do ex-deputado. É nesse sentido que se percebe um confronto ideológico refletido nos signos e na relação entre os discursos que se entrecruzam num constante e intenso processo dialógico de aceitações, refutações, afirmações, etc. Sendo assim, os ensaios de Toledo são dialógicos, pois não se constroem sobre si mesmos, mas se elaboram em vista do outro, o que lhes confere um caráter interdiscursivo. A interdiscursividade, de acordo com Campos (2003) “faz com que o discurso torne-se mais convincente, pois ao se referir a outros discursos, o enunciador recorre a outros saberes, o que lhe dá argumentos para persuadir seu enunciatário e provocar uma adesão efetiva” (CAMPOS, 2003, p. 19). Nesse sentido, nesses ensaios o enunciador, ao recorrer a discursos de outrem, dá voz a um outro, validando o que afirma e deixando transparecer, ao mesmo tempo, sua posição e avaliação.
No percurso narrativo traçado por Toledo no ensaio aqui tratado, através da recorrência e apropriação dos discursos do próprio “personagem-tema” (José Dirceu), o enunciador recorre à memória do enunciatário, além de mostrar incoerências internas desses discursos, provocando um efeito de sentido de constatação – e não de avaliação. Nesse ensaio, ao tratar da entrega do cargo de chefe da Casa Civil a Dilma Rousseff, o enunciador faz uma analogia entre esse evento e a publicação de uma entrevista concedida por Dirceu a Veja em 2002. Naquela ocasião, José Dirceu refere-se à ministra como uma “camarada de armas” 4 , sua companheira nos movimentos contra a ditadura militar. Toledo retoma a fala de Dirceu para refutá-la, afirmando que Dilma Rousseff participara sim da luta armada, já José Dirceu nem ao menos se envolvera. O enunciador propõe-se a provar essa tese baseado no discurso do próprio ex-ministro, que, como se observa no texto, afirmou em 2002 “Não gostava daquilo, não me envolvi” 5 na revista Veja. Desse modo, o enunciador coloca em choque as duas falas proferidas pelo próprio ex-deputado – aquela em que se dizia “camarada de armas” 6 e outra em que afirmou que, na verdade não gostava e nunca se envolvera de fato com a guerrilha. Assim, o enunciador, ao trazer estrategicamente discursos antagônicos como esses e opô-los entre si, confirma a tese desejada, provocando um efeito de sentido de constatação. Além disso, ao realizar esse embate discursivo, o enunciador diz sem assumir categoricamente o que é dito. Ao recuperar discursos dos próprios “personagens-tema” ou mesmo de grandes personalidades culturais ou políticas para elucidar sua posição, desvencilha-se de um dizer absoluto, não partidarizando seu julgamento, já que dá voz a um outro. Assim, suas críticas e indignações constroem-se não por meio de uma voz autoral exclusiva, mas também por meio de discursos de outrem.
Observando o córpus proposto, percebe-se que, além de refutar ou ironizar os discursos recuperados, Toledo apóia alguns, os quais vêem corroborar e enfatizar a tese defendida no texto como um todo. No ensaio aqui discutido (“Glória e desdita de um dono de butique” 7 ) é mote do texto o enunciado de José Dirceu, transcrito pelo jornal Estado de S. Paulo: “Descobri que eu sou dois, eu e o personagem Zé Dirceu.” 8 . Como visto, o texto vai explorar essa direção. Sendo assim, Toledo, ao recuperar esses discursos e transpô-los no contexto narrativo do seu ensaio, dá-lhes uma nova significação por meio da oposição com outros discursos, do uso de adjetivos, das ironias e mesmo pelo percurso histórico que traça, mostrando, assim, as incoerências internas desses discursos (e, neste caso, das incoerências políticas de Dirceu). A apropriação e transmissão dessas outras vozes/discursos no interior dos ensaios têm como marcas lingüísticas o uso das aspas. Conservando a autonomia primitiva dos discursos reportados, o enunciador marca em seu texto a diferenciação entre eles e o seu discurso, reafirmando, assim, o seu distanciamento de uma voz categórica. Isso se dá, pois, ao dar voz a um outro, desvencilha-se de um dizer absoluto.
O recurso da citação nos ensaios de Toledo, portanto, recorre à memória do enunciatário, contribui para dar credibilidade ao que é dito, além de fazer com que não se assuma uma voz autoral peremptória. Recuperando discursos e adaptando-os de diferentes maneiras ao contexto de produção do seu discurso, o ensaísta expõe seus valores, suas posições ideológicas, relativizando-as ao mesmo tempo. Assim, além de ironias e analogias temporais, que não foram exploradas neste trabalho, o estilo desses ensaios fica marcado também pelo modo de interação e tratamento dado às vozes e discursos de outrem. Portanto, o recurso da citação pode ser visto como um produto da interação viva entre discursos e ideologias, possibilitando a ressurreição de significados e novas possibilidades de significações deles em contextos específicos, além de dar maior credibilidade ao que é dito.

Notas

1 A temporalidade dos enunciados é marcada nos próprios textos pela voz do enunciador, que afirma que está tratando de temas “da semana passada”, “dos últimos acontecimentos”, etc.
2 Veja, 06 de julho de 2005, p. 114.
3 Idem.
4 Idem.
5 Idem.
6 Idem.
7 Idem.
8 Idem.

Referências

BAKHTIN, M. (V.N. VOLOCHINOV) Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2004.
CAMPOS, Ana Lúcia Furquim. Dissertação de mestrado Da Pausa que Refresca...Ao prazer de Viver! O Discurso Publicitário da Coca-Cola. Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara. 2003. Orientadora Profª Drª Renata Coelho Marchezan.
FARACO, C. A. Linguagem e diálogo. As idéias lingüísticas do Círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar Edições, 2003.
FIORIN, J.L. Lição de método: Bakhtin e a poesia. Revista Cult, n. 73, p 22-24, 2003. Disponível em: www.cristovaotezza.com.br/critica/não_ficcao/f_prosa/p_03cult.html Acesso em: 16 jun. 2006.
MIOTELLO,V. Ideologia. In: BRAIT, B. Bakhtin conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. p. 167-176.
TOLEDO, R.P. Glória e desdita de um dono de butique. Veja, São Paulo: Abril. edição 1912, ano 38, nº 27, p. 114, 06/07/2005. TOLEDO, R.P. Nhô Lula e a tentativa do último milagre. Veja, São Paulo: Abril. edição 1913, ano 38, nº 28, p. 134, 13/07/2005.
TOLEDO, R.P. O futebol nas malhas do subdesenvolvimento. Veja, São Paulo: Abril. edição 1914, ano 38, nº 29, p. 126, 20/07/2005.
TOLEDO, R.P.Uma furtiva lágrima. Veja, São Paulo: Abril. edição 1915, ano 38, nº 30, p. 134, 27/07/2005.
TOLEDO, R.P. Leoa de um lado, gata distraída de outro. Veja, São Paulo: Abril. edição 1916, ano 38, nº 31, p. 134, 03/08/2005.
TOLEDO, R.P. Sapos, desculpas e proxenetas. Veja, São Paulo: Abril. edição 1917, ano 38, nº 32, p. 142, 10/08/2005.
TOLEDO, R.P. A mesma e triste direita de sempre. Veja, São Paulo: Abril. edição 1918, ano 38, nº 33, p. 138, 17/08/2005.
TOLEDO, R.P. Um prodígio chamado Duda Mendonça. Veja, São Paulo: Abril. edição 1919, ano 38, nº 34, p. 130, 24/08/2005.
TOLEDO, R.P. Huummm...Uau!Chi...Eureca!. Veja, São Paulo: Abril. edição 1920, ano 38, nº 39, p. 126, 31/08/2005.






Revolução Russa
Queda da monarquia, Revolução de 1917, Bolcheviques no poder, socialismo, comunismo, Lênin, consolidação da revolução, formação da URSS, economia e administração, resumo


Introdução

No começo do século XX, a Rússia era um país de economia atrasada e dependente da agricultura, pois 80% de sua economia estava concentrada no campo (produção de gêneros agrícolas).


Rússia Czarista

Os trabalhadores rurais viviam em extrema miséria e pobreza, pagando altos impostos para manter a base do sistema czarista de Nicolau II. O czar governava a Rússia de forma absolutista, ou seja, concentrava poderes em suas mãos não abrindo espaço para a democracia. Mesmo os trabalhadores urbanos, que desfrutavam os poucos empregos da fraca indústria russa, viviam descontentes com os governo do czar.

No ano de 1905, Nicolau II mostra a cara violenta e repressiva de seu governo. No conhecido Domingo Sangrento, manda seu exército fuzilar milhares de manifestantes. Marinheiros do encouraçado Potenkim também foram reprimidos pelo czar.

Começava então a formação dos sovietes (organização de trabalhadores russos) sob a liderança de Lênin. Os bolcheviques começavam a preparar a revolução socialista na Rússia e a queda da monarquia.

A Rússia na Primeira Guerra Mundial



O czar Nicolau II: absolutismo na Rússia pré-revolução


Faltava alimentos na Rússia czarista, empregos para os trabalhadores, salários dignos e democracia. Mesmo assim, Nicolau II jogou a Rússia numa guerra mundial. Os gastos com a guerra e os prejuízos fizeram aumentar muito a insatisfação popular com o czar.


Greves, manifestações e a queda da monarquia

As greves de trabalhadores urbanos e rurais espalham-se pelo território russo. Ocorriam muitas vezes motins dentro do próprio exército russo. As manifestações populares pediam democracia, mais empregos, melhores salários e o fim da monarquia czarista. Em 1917, o governo de Nicolau II foi retirado do poder e assumiria Kerensky (mencheviqui) como governo provisório.



Lênin fala aos revolucionários em 1917


A Revolução Russa de outubro de 1917

Com Kerenski no poder pouca coisa havia mudado na Rússia. Os bolcheviques, liderados por Lênin, organizaram uma nova revolução que ocorreu em outubro de 1917. Prometendo paz, terra, pão, liberdade e trabalho, Lênin assumiu o governo da Rússia e implantou o socialismo. As terras foram redistribuídas para os trabalhadores do campo, os bancos foram nacionalizados e as fábricas passaram para as mãos dos trabalhadores. Muitos integrantes da monarquia, além de seus simpatizantes e opositores ao nascente regime socialista, foram perseguidos e condenados a morte pelos revolucionários.

Lênin também retirou seu país da Primeira Guerra Mundial no ano de 1918. Foi instalado o partido único: o PC (Partido Comunista).


A formação da URSS

Após a revolução, foi implantada a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). Seguiu-se um período de grande crescimento econômico, principalmente após a NEP ( Nova Política Econômica ). A URSS tornou-se uma grande potência econômica e militar. Mais tarde rivalizaria com os Estados Unidos na chamada Guerra Fria. Porém, após a revolução a situação da população geral e dos trabalhadores pouco mudou no que diz respeito à democracia. O Partido Comunista reprimia qualquer manifestação considerada contrária aos princípios socialistas. A falta de democracia imperava na URSS. Milhares de opositores foram perseguidos, presos e assassinados pelo governo. Triste situação que perdurou durante toda a história da União Soviética.


Os líderes da União Soviética durante o regime socialista:

- Vladimir Lenin (8 de novembro de 1917 a 21 de janeiro de 1924) 

- Josef Stalin (3 de abril de 1922 a 5 de março de 1953)

- Nikita Khrushchov (7 de setembro de 1953 a 14 de outubro de 1964)

- Leonid Brejnev (14 de outubro de 1964 a 10 de novembro de 1982)

- Iúri Andopov (12 de novembro de 1982 a 9 de fevereiro de 1984)

- Konstantin Chernenko (13 de fevereiro de 1984 a 10 de março de 1985)

- Mikhail Gorbachev (11 de março de 1985 a 24 de agosto de 1991)



REVOLUÇÃO RUSSA
Temas Relacionados
• Absolutismo
• Bolcheviques
• Czar Nicolau II
• Filmes sobre a Revolução Russa
• Lênin
• Livros sobre a Revolução Russa
• Questões sobre a Revolução Russa
• Rússia - Federação Russa
• Revolução
• Stalin
Bibliografia Indicada

As revoluções russas e o socialismo soviético
Autor: Filho, Daniel Aarão Reis
Editora: Scielo - Editora Une
Temas do livro: História Geral, História Contemporânea, Revolução




Capítulo Sete São Bernardo Graciliano Ramos
Por esse tempo encontrei em Maceió, chupando uma barata na Gazeta do Brito, um velho alto, magro, curvado, amarelo, de suíças, chamado Ribeiro. Via-se perfeitamente que andava com fome. Simpatizei com ele e, como necessitava um guardalivros, trouxe-o para São Bernardo. Dei-lhe alguma confiança e ouvi a sua história, que aqui reproduzo pondo os verbos na terceira pessoa e usando quase a linguagem dele.
Seu Ribeiro tinha setenta anos e era infeliz, mas havia sido moço e feliz. Na povoação onde ele morava os homens descobriam-se ao avistá-lo e as mulheres baixavam a cabeça e diziam:
- Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, Seu Major.
Quando alguém recebia cartas, ia pedir-lhe a tradução delas. Seu Ribeiro lia as cartas, conhecia os segredos, era considerado e major.
Se dois vizinhos brigavam por terra, Seu Ribeiro chamava-os, estudava o caso, traçava as fronteiras e impedia que os contendores se grudassem.
Todos acreditavam na sabedoria do Major. Com efeito, Seu Ribeiro não era inocente: decorava leis, antigas, relia jornais, antigos, e, à luz da candeia de azeite, queimava as pestanas sobre livros que encerravam palavras misteriosas de pronúncia difícil. Se se divulgava uma dessas palavras esquisitas, Seu Ribeiro explicava a significação dela e aumentava o vocabulário da povoação.
Os outros homens, sim, eram inocentes. Acontecia às vezes que uma dessas criaturas inocentes aparecia morta a cacete ou a faca. Seu Ribeiro, que era justo, procurava o matador, amarrava-o, levava-o para a cadeia da cidade. E a família do defunto ficava sob a proteção do Major. Também acontecia que uma sujeitinha começava a chorar e acabava confessando que estava pejada. Seu Ribeiro descobria o sedutor, chamava o padre, e o casamento se realizava na capela da povoação. Nascia um menino e Seu Ribeiro era o padrinho. O Major decidia, ninguém apelava. A decisão do Major era um prego.
Não havia soldados no lugar, nem havia juiz. E como o vigário residia longe, a mulher de Seu Ribeiro rezava o terço e contava histórias de santos às crianças. É possível que nem todas as histórias fossem verdadeiras, mas as crianças daquele tempo não se preocupavam com a verdade.
Seu Ribeiro tinha família pequena e casa grande. A casa estava sempre cheia. Os algodoais do Major eram grandes também. Nas colheitas a população corria para eles.
E os pretos não sabiam que eram pretos, e os brancos não sabiam que eram brancos.
Na verdade Seu Ribeiro infundia respeito. Se havia barulho na feira, levantava o braço e gritava: - Quem for meu me acompanhe.
E a feira se desmanchava, o barulho findava, todo o mundo seguia o Major porque todo o mundo era do Major.
Nas noites de São João uma fogueira enorme iluminava a casa de Seu Ribeiro. Havia fogueiras diante das outras casas, mas a fogueira do Major tinha muitas carradas de lenha. As moças e os rapazes andavam em redor dela, de braço dado. Assava-se milho verde nas brasas e davam-se tiros medonhos de bacamarte. O Major possuía um bacamarte, mas o bacamarte só se desenferrujava pelos festejos de São João.
Ora, essas coisas se passaram antigamente. Mudou tudo. Gente nasceu, gente morreu, os afilhados do Major cresceram e foram para o serviço militar, em estrada de ferro.
O povoado transformou-se em vila, a vila transformou-se em cidade, com chefe político, juiz de direito, promotor e delegado de polícia.
Trouxeram máquinas e a bolandeira parou.
Veio o vigário, que fechou uma igreja bonita. As histórias na memória das crianças. Chegou o médico. Não acreditava nos santos. A mulher de seu Ribeiro entristeceu, emagreceu e finou-se.
O advogado abriu consultório, a sabedoria do Major encolheu-se e surgiram no foro numerosas questões.
Efetivamente a cidade teve um progresso rápido. Muitos homens adotaram gravatas e profissões desconhecidas. Os carros de bois deixaram de chiar nos caminhos estreitos.
O automóvel, a gasolina, a eletricidade e o cinema. E impostos.
As moças e os rapazes não rodeavam, de braço dado, as fogueiras de São João: dançavam o tango, o frevo.
Um dia Seu Ribeiro reconheceu que vivia numa casa grande demais. Vendeu-a e adquiriu outra, pequena. Como havia agora liberdade excessiva, a autoridade dele foi minguando, até desaparecer.
Seu Ribeiro tinha um filho, que jogava futebol, e uma filha, que usava fitas, muitas fitas. Acharam o lugar atrasado e fugiram.
Seu Ribeiro escondeu-se, cheio de vergonha. Amofinou-se uma semana, desfez-se dos cacarecos e foi procurar os filhos. Não os encontrou: andavam por aí, ela pelas fábricas, ele no Exército. Seu Ribeiro enraizou-se na capital. Conheceu enfermarias de indigentes, dormiu nos bancos dos jardins, vendeu bilhetes de loterias, tornou-se bicheiro e agente de sociedades ratoeiras. Ao cabo de dez anos era gerente e guarda-livros da Gazeta, com cento e cinqüenta mil-réis de ordenado, e pedia dinheiro aos amigos.
Quando o velho acabou de escorrer a sua narrativa, exclamei:
- Tenho a impressão de que o senhor deixou as pernas debaixo de um automóvel, Seu Ribeiro. Por que não andou mais depressa? É o diabo.




Antônio Carlos Ribeiro de Andrada nasceu em Barbacena (MG) em 1870. Pertencia a uma das famílias de maior tradição na política brasileira, cujo membro mais ilustre foi seu tio-avô José Bonifácio de Andrada e Silva, o "Patriarca da Independência".
Aluno da Faculdade de Direito de São Paulo, participou do movimento republicano antes de se formar em 1891. Iniciou a carreira política ainda no final do século XIX, como vereador em Juiz de Fora, e em 1902 foi nomeado secretário de Finanças de Minas Gerais. Nesse cargo, participou das negociações que levaram à assinatura do Convênio de Taubaté, pelo qual os estados de Minas, São Paulo e Rio de Janeiro instituíram a política de valorização do café, garantindo um preço mínimo para o produto através da compra dos estoques excedentes pelos três governos. Em 1906 assumiu a prefeitura de Belo Horizonte por um breve período e no ano seguinte foi eleito senador estadual e novamente vereador em Juiz de Fora. Escolhido presidente da Câmara Municipal, passou a exercer as funções de prefeito da cidade.
Em 1911, elegeu-se deputado federal na legenda do Partido Republicano Mineiro (PRM). Sucessivamente reeleito, permaneceu na Câmara dos Deputados até setembro de 1917, quando, a convite do presidente Venceslau Brás, assumiu o Ministério da Fazenda. Deixou o ministério em novembro de 1918, voltou à Câmara em maio do ano seguinte e em 1925 foi eleito senador da República.
Eleito presidente de Minas em março de 1926, tomou posse em setembro. Sua gestão foi marcada por inovações, como a instituição do voto secreto nas eleições estaduais e municipais, a reforma do ensino primário e normal, dirigida por Francisco Campos e inspirada no movimento da Escola Nova, e a criação da Universidade de Minas Gerais. Suas preocupações reformistas foram sintetizadas na frase "Façamos a revolução antes que o povo a faça".
Por sua condição de presidente de Minas, era o candidato natural à presidência da República na sucessão de Washington Luís em 1930. No entanto, o acordo tácito que vinha garantindo a alternância de São Paulo e Minas no governo federal foi rompido quando Washington Luís, representante de São Paulo, preferiu indicar outro paulista para sucessor. Preterido, Antônio Carlos passou a articular a candidatura do gaúcho Getúlio Vargas à presidência. Tal projeto se concretizou com a formação da Aliança Liberal, coligação que reunia os situacionismos de Minas, Rio Grande do Sul e Paraíba, e era ainda apoiada pela maioria dos "tenentes" que haviam lutado contra o governo federal nos anos anteriores.
A campanha presidencial foi bastante acirrada, mas a vitória na eleição de março de 1930 coube ao candidato de Washington Luís. Enquanto isso, em Minas, Antônio Carlos conseguiu eleger Olegário Maciel seu sucessor. Com a derrota na eleição presidencial, setores da Aliança Liberal, principalmente os "tenentes" e os políticos mais jovens, como Oswaldo Aranha e Virgílio de Melo Franco, iniciaram articulações visando à derrubada de Washington Luís pelas armas. Antônio Carlos, a princípio, manteve-se hesitante em relação ao movimento armado e chegou mesmo a propor seu cancelamento. A evolução dos fatos, porém, favoreceu os revolucionários. Já após a posse de Olegário Maciel no governo de Minas em 7 de setembro, o movimento foi deflagrado em 3 outubro, com o apoio das forças políticas dos três estados que haviam criado a Aliança Liberal. Washington Luís foi deposto em 24 de outubro, e no mês seguinte Vargas assumiu ao poder.
O período que se seguiu à vitória da Revolução de 1930 foi marcado por disputas entre os diferentes grupos que apoiavam o novo governo. Em Minas a disputa tomou forma concreta com a criação da Legião de Outubro, agremiação que procurava substituir o antigo PRM na condução da política estadual. Antônio Carlos aderiu à nova organização e passou a fazer parte de sua direção. Participou também do efêmero Partido Social Nacionalista, uma frustrada tentativa de unificar as facções em luta na política mineira. Em fevereiro de 1933 participou afinal da fundação do Partido Progressista (PP), e nessa legenda foi eleito, em maio seguinte, para a Assembléia Nacional Constituinte. Comprometido com a candidatura de Vargas na eleição indireta para presidente, a ser realizada pela Constituinte, recebeu o apoio deste para presidir a Assembléia e foi, de fato, eleito para o cargo.
Após a promulgação da nova Constituição em 1934, renovou seu mandato na Câmara dos Deputados e foi confirmado como presidente da casa. Sua candidatura à sucessão de Vargas, prevista para janeiro de 1938, chegou a ser cogitada mas não se concretizou, em virtude da oposição que lhe foi movida pelo próprio Vargas e pelo governador mineiro Benedito Valadares. Em maio de 1937, foi derrotado por Pedro Aleixo na eleição para a presidência da Câmara. Deixou, então, o PP e fundou o Partido Progressista Democrático, para dar apoio à candidatura presidencial do governador paulista Armando Sales. Perdeu seu mandato parlamentar em novembro de 1937, quando Vargas implantou a ditadura do Estado Novo, fechando o Congresso e cancelando a eleição que apontaria seu sucessor.
Após o golpe do Estado Novo, abandonou a atividade política para se dedicar a seus negócios privados. Em 1943, negou-se a assinar o Manifesto dos Mineiros, que fazia críticas à ditadura e rompia com a censura vigente no país desde 1937, por ter sido o documento articulado por Pedro Aleixo e Virgílio de Melo Franco, dois de seus desafetos na política mineira.
Morreu no Rio de Janeiro, em 1946.
[Fonte: Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001]



SUMÁRIO
O significado de Raízes do Brasil (Antonio Cândido).... 9
Post-Scriptum (Antonio Cândido)................................. 23
Prefácio da 2.ª edição.................................................... 25
Nota da 3.ª edição 27
RAÍZES DO BRASIL


O SIGNIFICADO DE “RAÍZES DO BRASIL”
A certa altura da vida, vai ficando possível dar balanço no passado sem cair em autocomplacência, pois o nosso testemunho se toma registro da experiência de muitos, de todos que, pertencendo ao que se denomina uma geração, julgam-se a princípio diferentes uns dos outros e vão, aos poucos, ficando tão iguais, que acabam desaparecendo como indivíduos para se dissolverem nas características gerais da sua época. Então, registrar o passado não é falar de si; é falar dos que participaram de uma certa ordem de interesses e de visão do mundo, no momento particular do tempo que se deseja evocar.
Os homens que estão hoje um pouco para cá ou um pouco para lá dos cinqüenta anos aprenderam a refletir e a se interessar pelo Brasil sobretudo em termos de passado e em função de três livros: Casagrande e senzala, de Gilberto Freyre, publicado quando estávamos no ginásio; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, publicado quando estávamos no curso complementar; Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Júnior, publicado quando estávamos na escola superior. São estes os livros que podemos considerar chaves, os que parecem exprimir a mentalidade ligada ao sopro de radicalismo intelectual e análise social que eclodiu depois da Revolução de 1930 e não foi, apesar de tudo, abafado pelo Estado Novo. Ao lado de tais livros, a obra por tantos aspectos penetrante e antecipadora de Oliveira Viana já parecia superada, cheia de preconceitos ideológicos e uma vontade excessiva de adaptar o real a desígnios convencionais.
Era justamente um intuito anticonvencional que nos parecia animar a composição libérrima de Casa-grande e senzala, com a sua franqueza no tratamento da vida sexual do patriarcalismo e a importância decisiva atribuída ao escravo na formação do nosso modo de ser mais íntimo. O jovem leitor de hoje não poderá talvez compreen­
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der, sobretudo em face dos rumos tomados posteriormente pelo seu autor, a força revolucionária, o impacto libertador que teve este grande livro. Inclusive pelo volume de informação, resultante da técnica expositiva, a cujo bombardeio as noções iam brotando como numa improvisação de talento, que coordenava os dados conforme pontos de vista totalmente novos no Brasil de então. Sob este aspecto, Casa-grande e senzala é uma ponte entre o naturalismo dos velhos intérpretes da nossa sociedade, como Sílvio Romero, Euclides da Cunha e mesmo Oliveira Viana, e os pontos de vista mais especificamente sociológicos que se imporiam a partir de 1940. Digo isso em virtude da preocupação do autor com os problemas de fundo biológico (raça, aspectos sexuais da vida familiar, equilíbrio ecológico, alimentação), que serviam de esteio a um tratamento inspirado pela antropologia cultural dos norte-americanos, por ele divulgada em nosso país.
Três anos depois aparecia Raízes do Brasil, concebido e escrito de modo completamente diverso. Livro curto, discreto, de poucas citações, atuaria menos sobre a imaginação dos moços. No entanto, o seu êxito de qualidade foi imediato e ele se tornou um clássico de nascença. Daqui a pouco, veremos as características a que isso foi devido. Por enquanto, registremos que a sua inspiração vinha de outras fontes e que as suas perspectivas eram diferentes. Aos jovens forneceu indicações importantes para compreenderem o sentido de certas posições políticas daquele momento, dominado pela descrença no liberalismo tradicional e a busca de soluções novas; seja, à direita, no integralismo, seja, à esquerda, no socialismo e no comunismo. A atitude do autor, aparentemente desprendida e quase remota, era na verdade condicionada por essas tensões contemporâneas, para cujo entendimento oferecia uma análise do passado. O seu respaldo teó­ rico prendia-se à nova história social dos franceses, à sociologia da cultura dos alemães, a certos elementos de teoria sociológica e etnoló­ gica também inéditos entre nós. No tom geral, uma parcimoniosa elegância, um rigor de composição escondido pelo ritmo despreocupado e às vezes sutilmente digressivo, que faz lembrar Simmel e nos parecia um corretivo à abundância nacional.
Diferente dos anteriores, Formação do Brasil contemporâneo surgiu nove anos depois do primeiro, seis depois do segundo, em pleno Estado Novo repressivo e renovador. Nele se manifestava um autor que não disfarçava o labor da composição nem se preocupava
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com a beleza ou expressividade do estilo. Trazendo para a linha de frente os informantes coloniais de mentalidade econômica mais só­ lida e prática, dava o primeiro grande exemplo de interpretação do passado em função das realidades básicas da produção, da distribuição e do consumo. Nenhum romantismo, nenhuma disposição de aceitar categorias banhadas em certa aura qualitativa — como “ feudalismo” ou “ família patriarcal” —, mas o desnudamento operoso dos substratos materiais. Em conseqüência, uma exposição de tipo factual, inteiramente afastada do ensaísmo (marcante nos dois anteriores) e visando a convencer pela massa do dado e do argumento. Como linha interpretativa, o materialismo histórico, que vinha sendo em nosso meio uma extraordinária alavanca de renovação intelectual e política; e que, nessa obra, aparecia pela primeira vez como forma de captação e ordenação do real, desligado de compromisso partidário ou desígnio prático imediatista. Ao seu autor, já devíamos um pequeno livro de 1934, que atuara como choque revelador, por ter sido a primeira tentativa de síntese da nossa história baseada no marxismo: Evolução política do Brasil.
Ao evocar esses impactos intelectuais sobre os moços de entre 1933 e 1942, talvez eu esteja focalizando de modo algo restritivo os que adotavam posições de esquerda, como eu próprio: comunistas e socialistas coerentemente militantes, ou participando apenas pelas idéias. Para nós, os três autores citados foram trazendo elementos de uma visão do Brasil que parecia adequar-se ao nosso ponto de vista. Traziam a denúncia do preconceito de raça, a valorização do elemento de cor, a crítica dos fundamentos “ patriarcais” e agrários, o discernimento das condições econômicas, a desmistificação da retórica liberal. Mas talvez significassem outra coisa para os jovens da direita, que em geral, se bem me lembro, tendiam a rejeitá-los, olhá-los com desconfiança ou, na medida do possível, ajustar ao menos o primeiro aos seus desígnios. Esses nossos antagonistas preferiam certos autores mais antigos, com orientação metodológica de tipo naturalista ou (no sentido amplo) positivista, como Oliveira Viana e Alberto Torres, dos quais tiravam argumentos para uma visão hierárquica e autoritária da sociedade, justamente a que Sérgio Buarque de Holanda criticava em Raízes do Brasil.
Caberia aqui, aliás, uma reflexão desapaixonada sobre esses adversários da mesma geração, em geral integralistas. Apesar da estima pessoal que tínhamos eventualmente por alguns deles, nós os reputá­
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vamos representantes de uma filosofia política e social perniciosa, sendo, como era, manifestação local do fascismo. No entanto, a distância mostra que o integralismo foi, para vários jovens, mais do que um fanatismo e uma forma de resistência reacionária. Foi um tipo de interesse fecundo pelas coisas brasileiras, uma tentativa de substituir a platibanda liberalóide por algo mais vivo. Isso explica o número de integralistas que foram transitando para posições de esquerda — da cisão precoce de Jeová Mota às abjurações do decênio de 1940, durante a guerra e depois dela. Todos sabem que nas tentativas de reforma social cerceadas pelo golpe de 1964 participaram antigos integralistas identificados às melhores posições do momento. Ex-integralistas que chegaram aos vários matizes da esquerda, desde a “ positiva” , batizada assim por um dos mais brilhantes dentre eles, até às atitudes abertamente revolucionárias — enquanto, de outro lado, alguns dentre os que antes formavam à esquerda acabaram por virar espoletas ativíssimos da reação. Sirvam estas notas para ilustrar o balancez que é o destino das gerações e sugerir a atmosfera intelectual em que apareceu e atuou Raízes do Brasil.
No pensamento latino-americano, a reflexão sobre a realidade social foi marcada, desde Sarmiento, pelo senso dos contrastes e mesmo dos contrários — apresentados como condições antagônicas em função das quais se ordena a história dos homens e das instituições. “ Civilização e barbárie” formam o arcabouço do Facundo e, decênios mais tarde, também de Os sertões. Os pensadores descrevem as duas ordens para depois mostrar o conflito decorrente; e nós vemos os indivíduos se disporem segundo o papel que nele desempenham. Na literatura romântica, a oposição era interpretada freqüentemente às avessas; o homem da natureza e do instinto parecia mais autêntico e representativo, sobretudo sob a forma extrema do índio; mas na literatura regional de tipo realista, o escritor acompanha o esquema dos pensadores, como Rómulo Gallegos no medíocre e expressivo Dona Bárbara, que desfecha no triunfo ritual da civilização. Raízes do Brasil é construído sobre uma admirável metodologia dos contrários, que alarga e aprofunda a velha dicotomia da reflexão latino-americana. Em vários níveis e tipos do real, nós vemos o pensamento do autor se constituir pela exploração de conceitos polares. O esclarecimento não decorre da opção prática ou teórica por
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um deles, como em Sarmiento ou Euclides da Cunha; mas pelo jogo dialético entre ambos. A visão de um determinado aspecto da realidade histórica é obtida, no sentido forte do termo, pelo enfoque simultâneo dos dois; um suscita o outro, ambos se interpenetram e o resultado possui uma grande força de esclarecimento. Neste processo, Sérgio Buarque de Holanda aproveita o critério tipológico de Max Weber; mas modificando-o, na medida em que focaliza pares, não pluralidades de tipos, o que lhe permite deixar de lado o modo descritivo, para tratá-los de maneira dinâmica, ressaltando principalmente a sua interação no processo histórico. O que haveria de esquemático na proposição de pares mutuamente exclusivos se tempera, desta forma, por uma visão mais compreensiva, tomada em parte a posições de tipo hegeliano: “ [...] a história jamais nos deu o exemplo de um movimento social que não contivesse os germes de sua negação — negação essa que se faz, necessariamente, dentro do mesmo âmbito” (p. 180).
Com este instrumento, Sérgio Buarque de Holanda analisa os fundamentos do nosso destino histórico, as “ raízes” , aludidas pela metáfora do título, mostrando a sua manifestação nos aspectos mais diversos, a que somos levados pela maneira ambulante da composição, que não recusa as deixas para uma digressão ou um parêntese, apesar de a concatenação geral ser tão rigorosa. Trabalho e aventura; método e capricho; rural e urbano; burocracia e caudilhismo; norma impessoal e impulso afetivo — são pares que o autor destaca no modo-de-ser ou na estrutura social e política, para analisar e compreender o Brasil e os brasileiros.
O capítulo 1, ‘ ‘Fronteiras da Europa’ ’ — que já evidencia o gosto pelo enfoque dinâmico e o senso da complexidade —, fala da Ibéria para englobar Espanha e Portugal numa unidade que se desmanchará depois em parte. Ao analisar, por exemplo, a colonização da América, mostra as diferenças resultantes dos dois países, completando uma visão do múltiplo no seio do uno. Nesse prelúdio estão as origens mais remotas dos traços que estudará em seguida; é o caso do tradicional personalismo, de que provêm a frouxidão das instituições e a falta de coesão social. E aí faz uma reflexão de interesse atual, quando lembra que se estes traços, considerados defeitos do nosso tempo, existiram desde sempre, não tem sentido a nostalgia de um passado hipoteticamente mais bem ordenado; e observa que ‘ ‘as épocas realmente vivas nunca foram tradicionalistas por deliberação” (p. 33).
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A isto se ligaria ainda, na península Ibérica, a ausência do princípio de hierarquia e a exaltação do prestígio pessoal com relação ao privilégio. Em conseqüência, a nobreza permaneceu aberta ao mérito ou ao êxito, não se enquistando, como noutros países; e ao se tornar acessível com certa facilidade, favoreceu a mania geral de fidalguia. (“Em Portugal somos todos fidalgos” , diz Fradique Mendes numa das cartas.) Com esta referência a um velho sestro, o autor alude pela primeira vez a um dos temas fundamentais do livro: a repulsa pelo trabalho regular e as atividades utilitárias, de que decorre por sua vez a falta de organização, porque o ibérico não renuncia às veleidades em benefício do grupo ou dos princípios. Fiel ao seu método, mostra-nos uma conseqüência paradoxal: a renúncia à personalidade por meio da cega obediência, única alternativa para os que não concebem disciplina baseada nos vínculos consentidos, nascida em geral da tarefa executada com senso do dever. “A vontade de mandar e a disposição para cumprir ordens são-lhes igualmente peculiares [aos ibéricos]. As ditaduras e o Santo Ofício parecem constituir formas tão típicas de seu caráter como a inclinação à anarquia e à desordem” (p. 39).
No capítulo seguinte, “ Trabalho & aventura” , surge a tipologia básica do livro, que distingue o trabalhador e o aventureiro, representando duas éticas opostas: uma, busca novas experiências, acomoda-se no provisório e prefere descobrir a consolidar; outra, estima a segurança e o esforço, aceitando as compensações a longo prazo. “Entre esses dois tipos não há, em verdade, tanto uma oposição absoluta como uma incompreensão radical. Ambos participam, em maior ou menor grau, de múltiplas combinações e é claro que, em estado puro, nem o aventureiro, nem o trabalhador possuem existência real fora do mundo das idéias” (p. 44). Para a interpretação da nossa história, interessa notar que o continente americano foi colonizado por homens do primeiro tipo, cabendo ao “ ‘trabalhador’, no sentido aqui compreendido, papel muito limitado, quase nulo” (p. 45). Aventureiros, sem apreço pelas virtudes da pertinácia e do esforço apagado, foram os espanhóis, os portugueses e os próprios ingleses, que só no século XIX ganhariam o perfil convencional por que os conhecemos. Quanto ao Brasil, diz o autor que essas características foram positivas, dadas as circunstâncias, negando que os holandeses pudessem ter feito aqui o que alguns sonhadores imaginam possível. O português manifestou uma adaptabilidade ex-
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cepcional, mesmo funcionando “ com desleixo e certo abandono” (p. 43); em face da diversidade reinante, o espírito de aventura foi “o elemento orquestrador por excelência” (p. 46). A lavoura de cana seria, nesse sentido, uma forma de ocupação aventureira do espaço, não correspondendo a “uma civilização tipicamente agrícola” (p. 49), mas a uma adaptação antes primitiva ao meio, revelando baixa capacidade técnica e docilidade às condições naturais. A escravidão, requisito necessário deste estado de coisas, agravou a ação dos fatores que se opunham ao espírito de trabalho, ao matar no homem livre a necessidade de cooperar e organizar-se, submetendo-o, ao mesmo tempo, à influência amolecedora de um povo primitivo.
“Herança rural” , o terceiro capítulo, parte da deixa relativa à agricultura, analisa a marca da vida rural na formação da sociedade brasileira. Repousando na escravidão, ela entre em crise quando esta declina; baseando-se em valores e práticas ligadas aos estabelecimentos agrícolas, suscita conflitos com a mentalidade urbana. A essa altura, define-se no livro uma segunda dicotomia básica, a relação rural—urbano, que marca em vários níveis a fisionomia do Brasil.
Tudo dependia, no passado, da civilização rústica, sendo os próprios intelectuais e políticos um prolongamento dos pais fazendeiros e acabando por “ dar-se ao luxo” de se oporem à tradição. Da sua atividade provém muito do progresso social que acabaria por liquidar a sua classe ao destruir-lhe a base, isto é, o trabalho escravo. É o caso da febre de realizações materiais do decênio de 1850, quando, em virtude da Lei Eusébio, que proibia o tráfico de escravos, os capitais ociosos foram canalizados para os melhoramentos técnicos próprios da civilização das cidades, constituindo uma primeira etapa para o “triunfo decisivo dos mercadores e especuladores urbanos” . O malogro desse primeiro ímpeto, como do de Mauá, deveu-se à “radical incompatibilidade entre as formas de vida copiadas de nações socialmente mais avançadas, de um lado, e o patriarcalismo e personalismo fixados entre nós por uma tradição de origens seculares” (p. 79).
A grande importância dos grupos rurais dominantes, encastelados na autarquia econômica e na autarquia familiar, manifesta-se no plano mental pela supervalorização do “talento” , das atividades intelectuais que não se ligam ao trabalho material e parecem brotar de uma qualidade inata, como seria a fidalguia. A esse respeito, Sérgio Buarque de Holanda desmascara a posição extremamente reacioná-
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ria de José da Silva Lisboa, que um singular engano tem feito considerar como pensador progressista.
A paisagem natural e social fica marcada pelo predomínio da fazenda sobre a cidade, mero apêndice daquela. A fazenda se vinculava a uma idéia de nobreza e constituía o lugar das atividades permanentes, ao lado de cidades vazias — ruralismo extremo, devido a um intuito do colonizador e não a uma imposição do meio.
A alusão à cidade estabelece a conexão com o capítulo 4, “ O semeador e o ladrilhador” , que começa pelo estudo da importância da cidade como instrumento de dominação e da circunstância de ter sido fundada neste sentido. Aqui chegamos a um dos momentos em que se nota a diferença entre espanhol e português, depois da caracterização comum do princípio.
“Ladrilhador” , o espanhol acentua o caráter da cidade como empresa da razão, contrária à ordem natural, prevendo rigorosamente o plano das que fundou na América, ao modo de um triunfo da linha reta, e que na maioria buscavam as regiões internas. A isso correspondia o intuito de estabelecer um prolongamento estável da metró­pole, enquanto os portugueses, norteados por uma política de feitoria, agarrados ao litoral, de que só se desprenderiam no século xvm, foram “ semeadores” de cidades irregulares, nascidas e crescidas ao deus-dará, rebeldes à norma abstrata. Esse tipo de aglomerado urbano “ não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem” (p. 110).
Isso parece ao autor o resultado de um realismo chão, que foge das imaginações e das regras, salvo quando elas viram rotina e podem ser aceitas sem esforço. Daí o caráter prudente, desprovido de arroubos da expansão portuguesa — instalando (pensamos nós) um novo elemento de contradição no espírito de aventura antes definido e dando um aspecto peculiar de “ desleixo” ao capricho do semeador. O interesse do português pelas suas conquistas foi sobretudo apego a um meio de fazer fortuna rápida, dispensando o trabalho regular, que nunca foi virtude própria dele. A facilidade de ascensão social deu à burguesia lusitana aspirações e atitudes da nobreza, à qual desejava equiparar-se, desfazendo os ensejos de formar uma mentalidade específica, a exemplo de outros países.
O capítulo sobre “o homem cordial” aborda características que nos são próprias, como conseqüência dos traços apontados antes. Formado nos quadros da estrutura familiar, o brasileiro recebeu o
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peso das “relações de simpatia” , que dificultam a incorporação normal a outros agrupamentos. Por isso, não acha agradáveis as relações impessoais, características do Estado, procurando reduzi-las ao padrão pessoal e afetivo. Onde pesa a família, sobretudo em seu molde tradicional, dificilmente se forma a sociedade urbana de tipo moderno. Em nosso país, o desenvolvimento da urbanização criou um “ desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje” (p. 145). E a essa altura, Sérgio Buarque de Holanda emprega, penso que pela primeira vez no Brasil, os conceitos de “patrimonialismo” e “ burocracia” , devidos a Max Weber, a fim de elucidar o problema e dar um fundamento sociológico à caracterização do “ homem cordial” , expressão tomada a Ribeiro Couto. O “ homem cordial” não pressupõe bondade, mas somente o predomínio dos comportamentos de aparência afetiva, inclusive suas manifestações externas, não necessariamente sinceras nem profundas, que se opõem aos ritualismos da polidez.
O “homem cordial” é visceralmente inadequado às relações impessoais que decorrem da posição e da função do indivíduo, e não da sua marca pessoal e familiar, das afinidades nascidas na intimidade dos grupos primários.
O capítulo 6, “Novos tempos” , estuda certas conseqüências dos anteriores na configuração da sociedade brasileira, a partir da vinda da família real, que causou o primeiro choque nos velhos padrões coloniais.
Ao que se poderia chamar “ mentalidade cordial” estão ligados vários traços importantes, como a sociabilidade apenas aparente, que na verdade não se impõe ao indivíduo e não exerce efeito positivo na estruturação de uma ordem coletiva. Decorre deste fato o individualismo, que aparece aqui focalizado de outro ângulo e se manifesta como relutância em face da lei que o contrarie. Ligada a ele, a falta de capacidade para aplicar-se a um objetivo exterior.
Retomando o problema dos intelectuais, o autor assinala agora a satisfação com o saber aparente, cujo fim está em si mesmo e por isso deixa de aplicar-se a um alvo concreto, sendo procurado sobretudo como fator de prestígio para quem sabe. Já que a natureza dos objetivos é secundária, os indivíduos mudam de atividade com uma freqüência que desvenda essa busca de satisfação meramente pessoal. Daí valorizarem-se as profissões liberais que, além de permitirem as manifestações de independência individual, prestam-se ao saber de fachada. Devido à crise das velhas instituições agrárias, os membros
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das classes dominantes transitam facilmente para tais profissões, desligadas da necessidade de trabalho direto sobre as coisas, que lembra a condição servil.
Relacionando a tais circunstâncias o nosso culto tradicional pelas formas impressionantes, o exibicionismo, a improvisação e a falta de aplicação seguida, o autor interpreta a voga do positivismo no Brasil como decorrência desta última característica — pois o espírito repousava satisfeito nos seus dogmas indiscutíveis, levando ao má­ximo a confiança nas idéias, mesmo quando inaplicáveis.
Na vida política, a isso correspondem o liberalismo ornamental (que em realidade provém do desejo de negar uma autoridade incômoda) e a ausência de verdadeiro espírito democrático. “ A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas” (p. 160). Os nossos movimentos “aparentemente reformadores” teriam sido, de fato, impostos de cima para baixo pelos grupos dominantes.
O capítulo 7, “Nossa revolução” , é bastante compacto e precisa ser lido com senso dos subentendidos, pois a composição reduz ao mínimo os elementos expositivos. O seu movimento consiste em sugerir (mais do que mostrar) como a dissolução da ordem tradicional ocasiona contradições não resolvidas, que nascem no nível da estrutura social e se manifestam no das instituições e idéias políticas.
Um dos seus pressupostos, talvez o fundamental, é a passagem do rural ao urbano, isto é, ao predomínio da cultura das cidades, que tem como conseqüência a passagem da tradição ibérica ao novo tipo de vida, pois aquela dependia essencialmente das instituições agrá­rias. Tal processo consiste no “aniquilamento das raízes ibéricas de nossa cultura para a inauguração de um estilo novo, que crismamos talvez ilusoriamente de americano, porque seus traços se acentuam com maior rapidez em nosso hemisfério” (p. 172). Esta transformação tem como episódio importante a passagem da cana-de-açúcar ao café, cuja exploração é mais ligada aos modos de vida modernos.
Os modelos políticos do passado continuam como sobrevivência, pois antes se adequavam à estrutura rural e agora não encontram apoio na base econômica. Daí o aspecto relativamente harmonioso do
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Império, ao contrário da República, que não possui um substrato íntegro, como era o de tipo colonial. Cria-se então um impasse, que é resolvido pela mera substituição dos governantes ou pela confecção de leis formalmente perfeitas. Oscilando entre um extremo e outro, tendemos de maneira contraditória para uma organização administrativa ideal, que deveria funcionar automaticamente pela virtude impessoal da lei, e para o mais extremo personalismo, que a desfaz a cada passo.
Chegado a este ponto, Sérgio Buarque de Holanda completa o seu pensamento a respeito das condições de uma vida democrática no Brasil, dando ao livro uma atualidade que, em 1936, o distinguia dos outros estudos sobre a sociedade tradicional e o aproximava de autores que respondiam em parte ao nosso desejo de ver claro na realidade presente, como Virgínio Santa Rosa.
Para ele, a “nossa revolução” é a fase mais dinâmica, iniciada no terceiro quartel do século XIX, do processo de dissolução da velha sociedade agrária, cuja base foi suprimida de uma vez por todas pela Abolição. Trata-se de liquidar o passado, adotar o ritmo urbano e propiciar a emergência das camadas oprimidas da população, únicas com capacidade para revitalizar a sociedade e dar um novo sentido à vida política. O seu texto de apoio, no caso, são as considerações lúcidas de um viajante estrangeiro, Herbert Smith, que ainda no tempo da monarquia falava da necessidade de uma “revolução vertical” , diferente das reviravoltas meramente de cúpula, que “trouxesse à tona elementos mais vigorosos, destruindo para sempre os velhos e incapazes” , pois embora fossem estimáveis os senhores dos grupos dominantes, os membros dos grupos dominados “ fisicamente não há dúvida que são melhores do que a classe mais elevada, e mentalmente também o seriam se lhes fossem favoráveis as oportunidades” . E Sérgio Buarque de Holanda pensa que os acontecimentos do nosso tempo na América Latina se orientam para esta ruptura do predomínio das oligarquias, com o advento de novas camadas, condição única para vermos “ finalmente revogada a velha ordem colonial e patriarcal, com todas as conseqüências morais, sociais e políticas que ela acarretou e continua a acarretar” (p. 180). E ajunta: “ Contra sua cabal realização é provável que se erga, e cada vez mais obstinada, a resistência dos adeptos de um passado que a distância já vai tingindo de cores idílicas. Essa resistência poderá, segundo seu grau de intensidade, manifestar-se em certas expansões de fundo senti­
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mental e místico limitada ao campo literário, ou pouco mais. Não é impossível, porém, que se traduza diretamente em formas de expressão social capazes de restringir ou comprometer as esperanças de qualquer transformação profunda” (p. 181).
Estas tendências de tipo reacionário bem poderiam, para o autor, encarnar-se na propensão sul-americana para o caudilhismo, que intervém no processo democrático como forma suprema do personalismo e do arbítrio. No entanto, parece-lhe que há entre nós condições que permitem a convergência rumo à democracia — como a repulsa pela hierarquia, a relativa ausência dos preconceitos de raça e cor, o próprio advento das formas contemporâneas de vida.

Para nós, há trinta anos atrás, Raízes do Brasil trouxe elementos como estes, fundamentando uma reflexão que nos foi da maior importância. Sobretudo porque o seu método repousa sobre um jogo de oposições e contrastes, que impede o dogmatismo e abre campo para a meditação de tipo dialético.
Num momento em que os intérpretes do nosso passado ainda se preocupavam sobretudo com os aspectos de natureza biológica, manifestando, mesmo sob aparência do contrário, a fascinação pela “ raça” , herdada dos evolucionistas, Sérgio Buarque de Holanda puxou a sua análise para o lado da psicologia e da história social, com um senso agudo das estruturas. Num tempo ainda banhado de indisfarçável saudosismo patriarcalista, sugeria que, do ponto de vista metodológico, o conhecimento do passado deve estar vinculado aos problemas do presente. E, do ponto de vista político, que, sendo o nosso passado um obstáculo, a liquidação das “ raízes” era um imperativo do desenvolvimento histórico. Mais ainda: em plena voga das componentes lusas avaliadas sentimentalmente, percebeu o sentido moderno da evolução brasileira, mostrando que ela se processaria conforme uma perda crescente das características ibéricas, em benefício dos rumos abertos pela civilização urbana e cosmopolita, expressa pelo Brasil do imigrante, que há quase três quartos de século vem modificando as linhas tradicionais. Finalmente, deu-nos instrumentos para discutir os problemas da organização sem cair no louvor do autoritarismo e atualizou a interpretação dos caudilhismos, que então se misturavam às sugestões do fascismo, tanto entre os integralistas (contra os quais é visivelmente dirigida uma parte do
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livro) quanto entre outras tendências, que dali a pouco se concretizariam no Estado Novo. Com segurança, afirmou estarmos entrando naquele instante na fase aguda da crise de decomposição da sociedade tradicional. O ano era 1936. Em 37, veio o golpe de Estado e o advento da fórmula ao mesmo tempo rígida e conciliatória, que encaminhou a transformação das estruturas econômicas pela industrialização. O Brasil de agora deitava os seus galhos, ajeitando a seiva que aquelas raízes tinham recolhido.
São Paulo, dezembro de 1967
Antonio Cândido
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POST-SCRIFTUM

Cinqüenta anos depois Raízes do Brasil continua um grande livro cheio de sugestões e originalidade. Nesse prefácio, escrito há quase vinte anos, procurei definir o que ele foi para a minha geração, como um dos guias no conhecimento do país. Hoje continuo achando o mesmo e mais alguma coisa. Em artigo posterior desenvolvi um aspecto que me parece não ter sido ressaltado: a mensagem política.
Retomando conforme esta óptica o grande trio mencionado, eu diria que Casa-grande e senzala representa uma etapa avançada do I liberalismo das nossas classes dominantes, com o seu movimento contraditório entre posições conservadoras e certos ímpetos avançados. Formação do Brasil contemporâneo representa a ideologia marxista, que tem como referência o trabalhador. No caso, fecundo marxismo à brasileira, que ficaria melhor esclarecido em obras posteriores do mesmo autor.
Raízes do Brasil, caso diferente e curioso, exprime um veio pouco , conhecido, pouco localizado e pouco aproveitado do nosso pensamento político-social, em cuja massa predominantemente liberal e conservadora ele aparece de maneira recessiva, entremeada ou excepcional. Falo do que se poderia chamar o radicalismo potencial das classes médias, que no caso de Sérgio adquire timbre diferenciador, ao voltar-se decididamente para o povo. Talvez tenha sido ele o primeiro pensador brasileiro que abandonou a posição “ ilustrada” , segundo a qual cabe a esclarecidos intelectuais, políticos, governantes administrar os interesses e orientar a ação do povo. Há meio século, neste livro, Sérgio deixou claro que só o próprio povo, tomando a iniciativa, poderia cuidar do seu destino. Isto faz dele um coerente radical democrático, autor de contribuição que deve ser explorada e desenvolvida no sentido de uma política popular adequada às condições do Brasil, segundo princípios ideológicos definidos.
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Por isso, repito com realce o que escrevi no prefácio de 1967: uma das forças de Raízes do Brasil foi ter mostrado como o estudo do passado, longe de ser operação saudosista, modo de legitimar as estruturas vigentes, ou simples verificação, pode ser uma arma para abrir caminho aos grandes movimentos democráticos integrais, isto é, os que contam com a iniciativa do povo trabalhador e não o confinam ao papel de massa de manobra, como é uso.
São Paulo, agosto de 1986
A. C.

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REFERÊNCIAS

http://www.ibamendes.com/2011/06/blog-post_08.html
http://www.lpm.com.br/site/default.asp?Template=../livros/layout_produto.asp&CategoriaID=673734&ID=643044
Veja EDITORA ABRIL edição 2510 – ano 49 – n.º 52 28 de setembro de 2016
http://www.gel.org.br/estudoslinguisticos/edicoesanteriores/4publica-estudos-2007/sistema06/94.PDF
Estudos Lingüísticos XXXVI(3), setembro-dezembro, 2007. p. 166 / 171
http://www.suapesquisa.com/russa/
https://veele.files.wordpress.com/2010/02/sc3a3obernardo-gracilianoramos.pdf
http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/antonio_carlos_ribeiro_de_andrada

http://fjm.ikhon.com.br/proton/imagemprocesso/2013/07/EC3ED65F077EA3F500E4%7Dh_s_b_de_rz_br.pdf