sábado, 11 de junho de 2016

Transparência

Denomina-se vulgo, plebe, turba, multidão. É formado pelos que murmuram, aplaudem, assobiam, pateiam, afirmam ou negam. Jamais tem rosto nem nome. VICTOR HUGO
glasnost
'glasnʌst'/
rus.
substantivo feminino
hist pol política de democratização e liberdade nos meios de informação instituída no governo de Mikhail Gorbatchov na União Soviética.


Mara Gabrilli questiona Bumlai em CPI do BNDES









José Carlos Bumlai

Veja a íntegra do interrogatório de José Carlos Bumlai na Lava Jato
POR REDAÇÃO
30/05/2016, 20h42

Pecuarista amigo do ex-presidente Lula depôs nesta segunda-feira ao juiz Sérgio Moro e falou sobre o empréstimo de R$ 12 milhões que tomou junto ao Banco Schahin em 2004 para o PT


O pecuarista José Carlos Bumlai. Foto: Reprodução
Réu na Lava Jato, o pecuarista José Carlos Bumlai foi interrogado nesta segunda-feira perante o juiz Sérgio Moro, responsável pela Lava Jato em Curitiba e falou sobre o polêmico empréstimo de R$ 12 milhões no Banco Schahin em 2004 como intermediário do PT.
VEJA O DEPOIMENTO DO PECUARISTA:


Depoimento de Bumlai à Lava Jato - parte 1




Depoimento de Bumlai à Lava Jato - parte 2




Depoimento de Bumlai à Lava Jato - parte 3





















Edição do dia 30/05/2016
30/05/2016 08h10 - Atualizado em 30/05/2016 11h10
Fabiano Silveira faz críticas à condução da Lava Jato e dá conselhos a investigados na operação.


Novos trechos de conversas gravados pelo ex-presidente da Transpetro mostram o atual ministro da Transparência criticando a Operação Lava Jato e dando orientações a investigados. Fabiano Silveira, época, era do Conselho Nacional de Justiça. Agora Fabiano ocupa exatamente o Ministério da Fiscalização, que é Ministério da Transparência, do combate à corrupção.
Transparência é o nome do ministério que foi criado pelo presidente em exercício Michel Temer para substituir a Controladoria-Geral da União. Na época das gravações, Fabiano Silveira era conselheiro do Conselho Nacional de Justiça, que é o órgão que fiscaliza o Judiciário. Sérgio Machado disse que gravou essa conversa em fevereiro, na casa do presidente do SenadoRenan Calheiros.
Funcionário de carreira do Senado, Fabiano Silveira atuava no Conselho Nacional de Justiça. Era conselheiro do CNJ, para onde tinha sido indicado pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, quando foi escolhido para ser ministro da Transparência, Fiscalização e Controle, do governo Temer, o órgão que substituiu a Controladoria-Geral da União. Cerca de três meses antes de assumir o cargo, Fabiano Silveira esteve em uma reunião na casa de Renan Calheiros, onde a Lava Jato foi amplamente discutida com investigados.

Durante as tratativas do acordo de delação premiada, o ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado disse que no dia 24 de fevereiro deste ano foi à casa de Renan Calheiros para conversar, entre outras coisas, sobre "as providências e ações que ele estava pensando acerca da Operação Lava Jato". E disse que participaram dessa conversa dois advogados de Renan, um de nome Bruno e outro, Fabiano.
Sergio Machado disse: "no início, relatei aos advogados sobre o que ocorreu em minha busca e apreensão”. E, na revelação mais importante, Sergio Machado diz que "trocamos reclamações gerais sobre a Justiça e sobre a Lava Jato".
Na casa de Renan, Sérgio Machado gravou a conversa. Participam da reunião, além de Sérgio Machado e Renan Calheiros, presidente do Senado, Bruno Mendes, um advogado, ex-assessor de Renan, e Fabiano Silveira. Ou seja, o atual ministro da Transparência, Fiscalização e Controle, encarregado de combater a corrupção no governo federal, participou de uma conversa em que, segundo Sérgio Machado disse aos investigadores, foram feitas críticas à Lava Jato e à Justiça. Além disso, é possível entender que Fabiano orienta Renan e Sérgio Machado a como se comportarem em relação à PGR, a Procuradoria-Geral da República.

A qualidade do áudio é ruim, há várias pessoas na sala. - mas é possível identificar as vozes de Machado, de Renan Calheiros, de Fabiano e de Bruno Mendes. A TV Globo pediu ao professor da Unicamp e perito Ricardo Molina que também analisasse a gravação. Ele disse que, "acima de qualquer dúvida razoável a voz é de Fabiano Silveira".
A certa altura, Sérgio Machado lê alto um depoimento do ex-diretor da Petrobras e delator da Lava Jato Paulo Roberto Costa. Eles ouvem as acusações e os argumentos de defesa de Machado.
Sergio Machado se dirige a Fabiano e diz que as explicações que tem são contundentes. Bruno critica a cobertura da imprensa.

Sérgio Machado: “Esse foi o motivo, Fabiano... (inaudível)... as explicações que estão aí, você vê que são todas contundentes”.
Bruno: “Tudo que eles falam, p****, a imprensa só dá... rapaz, você acredita que os caras tinham a cara de pau de dizer no noticiário que o... (inaudível)... ia ser julgado?"... (inaudível)

Em seguida, Fabiano faz um comentário sobre a situação de Sergio Machado. Diz que ele deve procurar o relator da medida cautelar para prestar esclarecimentos.

Fabiano: “Eu concordo com a sua condição de, tendo sido objeto de uma medida cautelar, simplesmente, não... Dizer assim: 'olha, não é comigo isso' acho que tem dizer, tem que se dirigir ao relator prestando alguns esclarecimentos, é verdade...(inaudível)".
Sérgio Machado: “Sobretudo Fabiano,  não tem nada...(inaudível)".
Bruno: “Nós não temos um movimento pra fazer agora”.
Renan Calheiros diz a Fabiano que está preocupado com um dos inquéritos a que responde no Supremo: o que investiga se o presidente do Senado e Sergio Machado, entre outros agentes públicos, receberam propina - em forma de doações eleitorais - para facilitar a vitória de um consórcio de empresas em uma licitação para renovar a frota da Transpetro.
Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef citaram o negócio em depoimento. A campanha de Renan teria sido contemplada com duas doações no valor total de R$ 400 mil.
Renan diz a Fabiano, sem entrar em detalhes, que está preocupado com um recibo. Machado diz que ele foi incluído em um processo de R$ 800 mil. Uma voz que não é possível identificar pergunta se foi Youssef quem disse que o dinheiro foi para Renan. Machado diz que não.

Renan: “Cuidado, Fabiano! Esse negócio do recibo, isso me preocupa pra c******”.
Sérgio Machado: “Eles me botaram num processo lá de R$ 800 mil que o Youssef tinha dito que era pra...(inaudível)...estaleiro. Que eles estão de acordo se tem certeza que era pra você... (inaudível).".
Voz não identificada: “Youssef disse?”
Sérgio Machado: “Não. Da conclusão eles entendem que... (inaudível)...”.

Nesse momento, Fabiano discute com eles a estratégia de defesa de Machado e Renan nesse caso. Fabiano aconselha Renan. Aparentemente, que ele não deve entregar uma versão dos fatos, pois isso daria à Procuradoria condições de rebater detalhes da defesa.

Fabiano: “A única ressalva que eu faria é a seguinte: tá entregando já a sua versão pros caras da PGR, né.  Entendeu? Presidente, porque tem uns detalhes aqui que eles... (inaudível)...  eles não terão condição, mas quando você coloca aqui, eles vão querer rebater os detalhes que colocou... (inaudível)...”.

Mais à frente, Fabiano chega a fazer críticas à condução da investigação pela Procuradoria. Diz que Janot e os procuradores estão perdidos.

Sérgio Machado: “Diz que o Janot não sabe nada. O Janot só faz... (inaudível)... cada processo tem um procurador”.
Fabiano: “Eles estão perdidos nesta questão”.
Sérgio Machado: “A última informação que vocês têm, não tem nada, não apuraram nada até hoje, é isso?”
Fabiano: “Não”.
Voz não identificada: é a última informação, né?... (inaudível)..., eles, desde o início, Sérgio, eles estão jogando verde para colher maduro. O cara fala: 'eu não conheço o Renan'... (inaudível)...”.
Fabiano – “Eles foram lá buscar o limão e saiu uma limonada”.

Em outra  conversa, no dia 11 de março,  sem a presença de Fabiano, Renan e Sérgio Machado comentam a atuação do atual ministro da Transparência, Fiscalização e Controle, que teria ido falar com o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, depois da reunião que tiveram no dia 24 de fevereiro. A TV Globo apurou que Fabiano procurou diversas vezes integrantes da força-tarefa da Lava Jato para tentar informações de inquéritos contra Renan e saía de lá com evasivas, que eram comemoradas por Renan.
Nessa conversa, Renan disse que alguém na Procuradoria nada tinha achado contra ele e que tinha classificado o presidente do Senado de Gênio.

Renan: “Ele disse ao Fabiano: 'ó, o Renan, se o Renan tiver feito alguma coisa que eu não sei... mas esse cara, p****, é um gênio', usou essa expressão. 'porque nós não achamos nada'."
Sérgio Machado: “Já procuraram tudo”.
Renan: “Tudo”.

Procurado, o ministro da Transparência, Fabiano Silveira, não quis dar entrevista. Por meio de nota, disse que esteve “de passagem” na residência oficial do Senado, mas que não sabia da presença de Sérgio Machado. Disse ainda que não tem nem nunca teve nenhuma relação com Sérgio Machado. Segundo Fabiano, ele esteve involuntariamente em uma conversa informal e jamais fez gestões ou intercedeu junto a instituições públicas em favor de terceiros.
O procurador-geral da República, Rodrigo Janot e o presidente em exercício Michel Temer não quiserem comentar.
Temer recebe Janot nesta segunda-feira (30) à tarde, no Palácio do Planalto, um encontro que, segundo a Presidência, já estava marcado.




A União Soviética foi o país que representou o bloco comunista no mundo a partir de 1922 e combateu a polaridade capitalista até 1991.



No começo do século XX, a Rússia ainda era um país muito atrasado em relação aos demais. O modo de produção russo ainda era feudal, o país era absolutista e governado por um czar. Ainda no final do século XIX, foi construída uma estrada que permitiu uma rápida industrialização de regiões como Moscou e São Petersburgo, só que a Rússia não tinha estrutura para suportar uma drástica mudança. Os camponeses acabaram ficando na mesma situação de miséria.
Em 1905, as insatisfações da população russa culminaram em um movimento de contestação ao sistema que, mesmo sem uma liderança definida ou propósitos muito claros, resultou na chamada Revolução Russa de 1905. O evento é considerado um ensaio geral para a grande revolução que ocorreria no ano de 1917 e transformaria significativamente a estrutura do país. Em 1905, o czar perdeu a admiração que sustentava dos súditos, conseguiu ainda se sustentar no poder até 1917, mas a Revolução Russa de 1917 condenou o czar Nicolau II à morte. Este movimento foi conduzido pelo Partido Bolchevique, o qual reunia um grupo mais radical que defendia mudanças através da ação revolucionária.
Foi em 1922 que se constituiu oficialmente a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Esta se formou como um grande país de dimensões continentais e reuniu Rússia, Ucrânia, Bielorrússia, Transcaucásia, EstôniaLituâniaLetôniaMoldáviaGeorgiaArmêniaAzerbaijão, Cazaquistão, Uzbequistão, Turcomenistão, Quirguizão e Tadjiquistão. O transcorrer da Primeira Guerra Mundial foi vital para o novo movimento revolucionário na Rússia e a formação de um grande país de cunho comunista.




Lênin foi o grande nome da formação da União Soviética, ele foi o responsável por conduzir os trabalhadores na revolução e por estruturar a política e a economia do novo país. Após sua morte, Stalin assumiu o controle da União Soviética, instalando uma ditadura socialista que se estenderia até a década de 1950.
A União Soviética conheceu grande crescimento e, por se tratar de um país com bases comunistas, passou ilesa pela Crise de 1929 que abalou profundamente vários países capitalistas. Na Segunda Guerra Mundial, a União Soviética foi uma das grandes vencedoras, ao lado dos Estados Unidos. Os dois países foram os grandes ganhadores da guerra, entretanto um deles, Estados Unidos, defendia a ideologia capitalista, enquanto a União Soviética defendia a ideologia comunista. A polaridade entre os dois países dividiu o mundo em um novo confronto a partir de 1945, a Guerra Fria.
A Guerra Fria foi um confronto ideológico que colocou em choque as ideologias capitalistas e comunistas no mundo. Os líderes do capitalismo eram os Estados Unidos e do comunismo era a União Soviética. Como ambos os países, vencedores da Segunda Guerra Mundial, desfrutavam de armamento capaz de realizar uma mútua destruição, o confronto direto entre eles não ocorreu. Em lugar disso, vários conflitos surgiram no mundo tendo a influência e o apoio, militar e econômico, de tais países. O grande símbolo da Guerra Fria foi o Muro de Berlim, o qual cortou a cidade alemã de Berlim em lado ocidental e lado oriental, sendo ocidental capitalista e oriental comunista.
A União Soviética travou grande conflito com os Estados Unidos pela influência ideológica no mundo durante algumas décadas. No início da década de 1980, entretanto, a União Soviética já se mostrava desgastada e incapaz de se sustentar em sua ideologia. Seus produtos e estrutura política já estavam sucateados, várias medidas foram implantadas para tentar dar sobrevida ao sistema. A população já não estava mais satisfeita com as promessas comunistas e se revoltara contra as rígidas regras impostas pela União Soviética ao longo dos anos. Em 1989 foi derrubado o Muro de Berlim, símbolo da Guerra Fria. Muitos consideram a ocasião como o marco do fim do socialismo no mundo. A União Soviética, por sua vez, chegou ao fim em 1991 quando foi desmembrada em vários outros países.







Durante o governo de Gorbachev, em 1985, foi introduzida a Perestroika, uma reestruturação política da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) que, juntamente com a Glasnost (transparência), tinha o objetivo de reorganizar setores da sociedade soviética.
No sentido literal, Perestroika tem o significado de reconstrução. Introduzida na URSS no XXVII Congresso do Partido, afetou profundamente os rumos do país, além de ter criado uma nova forma de política soviética. Gorbachev, então Secretário Geral do Partido Comunista, ao perceber que o setor econômico da nação estava a caminho de um declínio, adotou medidas reformadoras que seriam concluídas quando a ações da Perestroika chegassem ao seu fim.
Entre as principais medidas que deveriam ser tomadas na Perestroika, estava a redução na quantidade de dinheiro investido no setor de defesa. Para realizar esta tarefa, Gorbachev indicou que a URSS precisava iniciar a desocupação do território afegão, renegociar a redução de armamentos definida com os EUA nos acordos de Yalta, além de parar a interferência na política em outras nações comunistas.
Para que esta reforma funcionasse de forma plena, Gorbachev teria que enfrentar inúmeras dificuldades que poderiam refrear sua aplicação. Isso ocorre, pois, naquela época, a URSS apresentava uma grande extensão territorial, sistemas de reformas que tinham fracassado em tempos remotos e imobilismo populacional por falta de reservas econômicas que impulsionassem o desenvolvimento. Além disso, existiam grupos que perderiam poder com a reforma e se demonstravam contrários à Perestroika.
No início de seu governo, para aplicar a Perestroika, Gorbachev realizou um expurgo político e recomendou a instalação de um novo tipo de sistema econômico (economia de mercado), além da propriedade privada. Porém, a reestruturação não obteve sucesso. Entre os principais motivos estavam o fracasso na criação de entidades de economia privada, as convicções conservadoras do núcleo do Partido Comunista, a manifestação rumo à independência de algumas repúblicas que formavam a URSS e o fato de Gorbachev não ter realizado reformas no modo de produção agrícola soviético.
Desta forma, os contrários à reforma destituíram Gorbachev do poder, passando suas atribuições para um Comitê de Estado. Porém, este golpe foi rapidamente desfeito pela KGB, juntamente com a população russa, que começa a demonstrar um descontentamento com o regime comunista. Gorbachev decide pela renúncia em 1991.
Fontes:
http://resumos.netsaber.com.br/ver_resumo_c_2385.html
http://educacao.uol.com.br/biografias/mikhail-gorbatchev.jhtm
http://pt.wikipedia.org/wiki/Perestroika
AZEVEDO, Antonio Carlos do Amaral. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
Arquivado em: União Soviética




Print version ISSN 0102-6445
Lua Nova  no.13 São Paulo Sept. 1987
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64451987000300002 
POLÊMICA - URSS: 70 ANOS DEPOIS DA REVOLUÇÃO



José Paulo Netto

Professor universitário, ensaísta, tradutor e membro da direção nacional do Partido Comunista Brasileiro (PCB)



Algo de novo ocorre na União Soviética: a glasnost e a. perestroika parecem signos emblemáticos do que já se denominou "Projeto Gorbatchev".1 Tudo indica que a gerência do paquidérmico espólio que vem do consulado de Brejnev experimenta algo mais que um estilo diferenciado de gestão — sem dúvidas aberto com o breve episódio protagonizado por Y. Andropov.
Se não se tratasse da segunda potência do globo (com seu peso específico no sistema de relações internacionais) e do Estado-partido pós-revolucionário mais importante (com sua ponderação peculiar no conjunto de movimentos que se direcionam para conformar um universo societário alternativo ao mundo burguês), a avaliação do que se passa no país do Leste poderia competir exclusivamente aos seus povos.
Mas não é assim: se a palavra judicativa cabe primariamente aos povos soviéticos, os problemas políticos, ideológicos e teóricos que se embutem no processo em curso na União Soviética dizem respeito a todos aqueles cuja solidariedade militante ao projeto comunista não tem por nutrizes o incondicionalismo e a apologia. Nesta ótica, pensar problematicamente o glasnost e a perestroika é tarefa pertinente da razão crítica que se quer a serviço da revolução — independentemente de fronteiras e de latitudes.
I. Parece-me um pouco audacioso — ao menos para nós, analistas que não têm outras fontes credibilizadas além da observação sistemática e histórica das instituições soviéticas e do estudo das declarações e atos públicos dos seus dirigentes — aludir a um "projeto Gorbatchev", entendendo-se por ele uma elaborada e conclusa pauta de comportamento e de objetivos do grupo que ascendeu aos postos mais altos do Estado (e do partido) soviético(s) na seqüência da morte de K. Tchernenko.
As informações e análises mais sérias acumuladas até hoje sobre a estrutura e a dinâmica das instituições sócio-políticas da União Soviética não autorizam uma tal linha de raciocínio. Ao contrário: o que todas elas sugerem é que a alternância nas cúpulas estatal-partidárias de expoentes de grupos diferenciados nas suas respectivas e imbricadas redes de relações hierárquicas (o Estado e o partido), alternância propiciada especialmente pelo desaparecimento (físico ou político) de líderes institucionais, se dá num complicado jogo de avanços, recuos e compromissos, no interior do qual se configuram vetores de orientação que resultam menos de vontades políticas originais que das correlações de força alcançadas no marco de uma pouco flexível malha de aparatos estatal-partidários. Neste sentido, a referida alternância adquire antes de mais nada o caráter de um complexo processo de lutas, historicamente travadas longe dos olhos (e da intervenção) da população, numa articulação societária — e este é um traço da União Soviética — onde o Estado cristalizou eficazes mecanismos e instrumentos que curto-circuitam a vigência de uma sociedade civil.
Há aqui um problema extremamente significativo, ainda pouco esclarecido — o problema do sistema de podersoviético, modelado durante o ciclo da autocracia stalinista. A perdurabilidade deste sistema, cuja medula não foi vitalmente afetada nos três decênios posteriores à morte do seu grande representante, responde pela patética integração e/ou pela rápida reversão dos projetos mudancionistas que se lhe procuram inserir. Assim é que, a cada substituição de um grupo por outro, assiste-se à afirmação de propostas transformadoras, logo abordadas ou revertidas (o que está longe de minimizar ou de negar a efetividade parcial e segmentar de algumas ordens de providências e mudanças — recordem-se as reais modificações operadas no período de N. Kruschev).2 Enquanto se carecer, como se carece hoje, de uma massa crítica mínima que desvende a lógica deste sistema de poder, a sua estrutura íntima e os seus modos de reprodução, a análise acerca da dinâmica sócio-política da União Soviética terá sempre um sabor de especulação e pontualidade.3
Pelo exposto, a idéia de um "projeto Gorbatchev", enquanto programa acabado de mudanças, parece-me pouco sustentável. Parece-me mais congruente com a realidade asseverar, a partir do que vem ocorrendo na União Soviética, a existência de uma nova vontade política do grupo dirigente que ocupou importantes espaços desde o XXVII Congresso do PCUS, vontade que vem se plasmando à medida que o processo da sua consolidação político-institucional se desenvolve. Trata-se de uma orientação que, visando alguns objetivos axiais, adquire seus contornos e realiza suas inflexões no andamento do processo de lutas em que se afirma; trata-se de uma vontade política que vem se adensando precisamente nos confrontos e compromissos que se lhe impõem.4
Esta vontade política nova, salvo erro analítico meu, não encontra paralelismo na história anterior da União Soviética — está bem distante das condições que levaram à crítica da autocracia stalinista e ao reformismo (abortado) kruscheviano.5 Os seus objetivos centrais estão todos polarizados numa estratégia de modernização sócio-econômica da União Soviética, tornada inadiável pela saturação da ordem urbano-industrial construída ao cabo de sete décadas de poder soviético. Quanto a este cerne, o empenho do grupo liderado por Gorbatchev é inequívoco: o eixo de gravitação de todas as suas propostas incide na necessidade de substituir um padrão de desenvolvimento econômico extensivo (assentado no crescimento quantitativo da força de trabalho, na ampliação do equipamento produtivo e na alocação de recursos para novos equipamentos) por outro, de natureza intensiva(fundado numa alta produtividade do trabalho, na otimização da racionalidade gerencial e na utilização maximizada da ciência e das novas tecnologias).
O trânsito do padrão de desenvolvimento extensivo ao intensivo — e este é um aspecto nodal das propostas formuladas por Gorbachev e sua equipe — é situado, contudo, como uma exigência política: o secretário-geral tem insistido suficientemente em que ele é imperativo para a continuidade da reprodução do sistema socialista soviético. Posto assim, este trânsito implica uma dupla operação: a crítica do passado recente e o tácito reconhecimento da exaustão de um padrão de desenvolvimento econômico-social — dois componentes de ordem diversa, mas bastante vinculados e, não casualmente para os que analisam as instituições soviéticas, diferentemente tematizados pela equipe gorbatcheviana.
A crítica ao consulado de Brejnev tem sido crescentemente reforçada — o triunfalismo que marcou o período do velho dirigente e da gerontocracia a ele conectada vem sendo progressivamente pulverizado.6 Esta operação responde, no plano ideológico e no nível da prática social, a demandas precisas: de um lado, a criação de um marco consensual para legitimar a nova direção; de outro, a eversão de formas de corrupção que soldaram estratos estatal-partidários na defesa mais radical da integridade do sistema de poder. Neste passo, os novos líderes têm revelado uma disposição de avançar surpreendentes — bem como de lançar-se a providências de saneamento administrativo que golpeiam espetacularmente os mais visíveis cancros de nepotismo, malversação de recursos sociais, parasitismo, etc.7
O reconhecimento do esgotamento do modelo de desenvolvimento econômico extensivo, colocado com vigor pela equipe da Gorbatchev, não é explorado, com o mesmo grau de explicitação, como o reconhecimento da exaustão de um padrão determinado de desenvolvimento econômico-social. Aqui, a intervenção dos novos dirigentes não possui a mesma audácia: admitem que se engedraram, no inteiro complexo produtivo/reprodutivo e de circulação, amplas áreas de atraso e ineficiência, instaurando perigosos sistemas de bloqueios aos processos de crescimento e desenvolvimento econômicos e que cumpre superar rapidamente. Mas não põem em questão, senão veladamente, o conjunto de instituições sócio-políticas engrenadas com o atraso e o bloqueamento — antes, ele é levemente tocado, com toda a ênfase posta na alteração do ethos8 cívico. Vale dizer: não se admite que, para além de problemáticos retardos no âmbito do desenvolvimento econômico (com incidências sociais), a dinâmica societária se alça a um patamar em que crises globais podem se desenrolar abertamente.9
Neste contexto, a orientação operacionalizada pela equipe de Gorbatchev mostra o seu cariz peculiar, bem como a renovação e a ambigüidade coexistentes nas suas propostas reformistas: sem um novo ethos, é impensável a passagem ao padrão de desenvolvimento intensivo; mas aquele não se cria deixando intocado o sistema sócio-político institucional; donde a demanda rigorosamente política da democratização. A requisição de práticas democráticas na moldura das instituições sócio-políticas existentes é situada como instrumento (porque pode secretar o novo ethos) para viabilizar a transição ao padrão de desenvolvimento intensivo.
A peculiaridade está em que a demanda política por práticas democráticas é reconhecida e publicitada como umpressuposto instrumental 'para o novo padrão de desenvolvimento. A nova vontade política do grupo dirigente revela aqui a sua necessidade: generalizar-se na sociedade, universalizar-se para criar o ethos cívico que envolva a capacidade da inovação, do risco, da mudança — de romper (como diz Gorbatchev) com o costumeiro, o estabelecido, a rotina. Na ordem pós-revolucionária, a economia aparece claramente subordinada à política. O traço renovador recobre dois planos: a assunção, mesmo que elíptica, do caráter restrito e insuficiente dos mecanismos democráticos soviéticos (denuncia-se, pois, a natureza/formal/da democracia socialista consagrada na Constituição de finais da década passada, até há pouco apresentada como um nec plus ultra) e a iniciativa para torná-los elásticos, operantes e mais abrangentes. Mas a ambigüidade é igualmente flagrante: a articulação institucional do antes mencionado sistema de poder não é posta em causa.
O empenho reformista da liderança de Gorbatchev surge, portanto, como um esforço de modernização sócio-econômica que, à partida, revela-se como um campo de possibilidades e de limites.
II. As possibilidades de êxito das propostas de modernização sócio-econômicas defendidas por Gorbatchev e sua equipe são incontestáveis — e mesmo os primeiros indicadores econômicos e sociais de 1986, expressando em alguma medida a renovação já implementada, são indiscutivelmente positivos.10
Contam favoravelmente para o êxito o acervo de recursos (materiais e humanos) que, mesmo que sob condições pouco estimulantes, a sociedade soviética foi capaz de gestar e acumular. A efetividade e a potencialidade do poderio político e militar soviéticos, com todas as suas implicações, podem ser convertidas para redimensionar e re-qualificar o seu complexo produtivo inteiro11 — de forma a que, mediante o desenvolvimento intensivo, se cubram as crescentes demandas sociais e individuais.
Mais importante ainda é a expectativa social difusa em favor de mudanças, que permeia a sociedade soviética: se é verdade que os canais de participação social têm uma arquitetura rígida e se mostram profundamente afunilados e que os mecanismos de ativação dos fluxos políticos de base são muito pobres,12 é absolutamente inegável que qualquer modalidade de dinamização apta para abrir espaços de intervenção organizada de grupos e segmentos pode derivar em movimentos sociais massivos. Nesta expectativa social difusa por mudanças reside um potencial inimaginável de criação coletiva — favorecido inclusive pela resolução, pelo poder soviético, das questões mais elementares da reprodução dos indivíduos enquanto tais.13 Por outro lado, em grupos particulares que se constelaram em função da diferenciação social inerente à ordem urbano-industrial — cientistas, tecnólogos, intelectualidade técnica e artística, etc. —, a expectativa favorável à mudança perde seu traço difuso e ganha concreção, podendo ser ativada mais rápida e eficientemente.
Enfim, opera como componente de peso para viabilizar a proposição modernizadora de Gorbatchev e sua equipe o desdobramento da exaustão do padrão de desenvolvimento econômico explorado até agora — aliás, não por acaso o secretário-geral bate forte nesta tecla. A alternativa de um efetivo ciclo de crises, que parece real e que em alguma escala se localizaria legitimamente como um elemento explicativo da gênese da vontade política do novo grupo dirigente, esta alternativa pode ser acionada para aglutinar em torno das novas iniciativas um conjunto de forças que, sem esta alternativa, permaneceriam neutralizadas ou hostis.
O andamento das propostas modernizadoras, portanto, é factível: as possibilidades de êxito estão contidas na confluência de vetores materiais e ideais. É de rigor, porém, trabalhar com o elenco de vetores que se direcionam em sentidos que conspiram contra o sucesso possível, vetores que plasmam limites às propostas em curso e, tanto materiais quanto ideais, são endógenos e exógenos.
Estes últimos não possuem a centralidade dos endógenos — mas dispõem da faculdade de acentuar a sua gravitação. Trata-se aqui, antes de tudo, da atmosfera das relações internacionais: um clima mundial tensionado, marcado pela continuidade da corrida armamentista, pelo anuviamento do ambiente nos foros multi e bilaterais e pela permanência da provocação e do belicismo, seria um condicionante muito negativo para a ação de Gorbatchev e sua equipe. Os efeitos de uma situação deste gênero repercutiriam a dois níveis na União Soviética: primeiro, compelindo à alocação crescente de recursos no setor de defesa, com a conseqüente inviabilização das modificações propostas para a reconversão industrial e tecnológica; segundo, estimulando os segmentos militaristas e abrindo o máximo de terreno para a síndrome da segurança total, cuja resultante é a imediata redução de qualquer ampliação dos direitos cívicos e políticos.
Neste campo, a política exterior desenvolvida por Gorbatchev e sua equipe tem se revelado extraordinariamente competente: a União Soviética reconquistou a ofensiva diplomática, suas propostas de desarmamento e paz mostram-se com um apelo irrespondível e o fato é que as tendências atuais indicam um avanço que só perturba os círculos mais agressivos e reacionários do imperialismo. Esta política eficiente e ágil — que não recua diante de questões tão espinhosas como a afegã — permitirá à nova direção soviética enfrentar com mais desenvoltura os obstáculos endógenos que se lhe opõem.14 E estes, na verdade, não são de pouca monta.
Porque, no plano interno, o problema reside precisamente em determinar em que escala o aparato sócio-político institucional existente é compatível com a modernização sócio-econômica desejada. Na minha ótica, é então que se revela em toda a sua magnitude — que apenas se vislumbra nos pronunciamentos de Gorbatchev e sua equipe — o problema da democracia socialista. Este é o ponto crucial do processo em curso na União Soviética.
Não cabe, neste lugar, retomar disquisições que explanei em outras oportunidades acerca das condições históricas em que se pode estruturar o poder soviético.15 O que importa é destacar que a transição socialista na União Soviética acabou por dar forma a um padrão societário em que a identificação entre Estado e partido, operada autocraticamente, reduziu a coeficientes quase desprezíveis a iniciativa política que desborda os limites das agências sócio-políticas sancionadas oficialmente. Ao cabo de setenta anos, configurou-se um sistema, de natureza burocrática, tentacular e monopólico de fluxos políticos, que só funciona a partir das suas instâncias mais altas. A ponderação real do que o extrapola — apesar da potencialidade das suas reservas extrínsecas — é pouco mais que residual.
Ora, um tal sistema só se mobiliza dada ao menos uma das três condições seguintes: (1) que, no topo, esteja afirmada uma solução política: (2) que, do seu exterior, venha uma pressão irresistível; (3) que uma ameaça qualquer ponha em risco como um todo (por exemplo, um colapso na sua produção, uma guerra, etc.). Sem colocar em causa este sistema — no seio do qual articula-se o já referido sistema de poder — é impensável a emergência significativa de iniciativas políticas de base na União Soviética. Vale dizer: dado um tal sistema, que cancela o exercício democrático (democrático-socialista) como luta e participação pluralista de grupos sociais diferenciados mediante a equalização administrativo-ideológica através dos mecanismos estatal-partidários, toda mudança ponderável é função de um processo dinamizador que se inicia no topo.
É em tais circunstâncias de democracia restrita que Gorbatchev e sua equipe atuam. Mas como está claro que esta restritividade debilita a viabilização da vontade política que expressam, os dirigentes atuais jogam para mobilizar o sistema de fluxos políticos acionando as condições (1) e (2): ocupando o máximo de espaços no aparato estatal-partidário e fazendo apelo aos cidadãos não-filiados ao partido. A dupla intervenção não vai sem dilemas: o aparato estatal-partidário mostra-se refratário (sobretudo em seus escalões intermediários)16 e a cidadania, escaldada por históricas experiências, tarda a romper com um comportamento exemplarmente anômico.
A mudança pelo alto é a única alternativa possível neste contexto institucional — e é assim que emergem as proposições de Gorbatchev e sua equipe. A natureza destas proposições, entretanto, compele tendencialmente à ruptura com esta lógica: se a modernização sócio-econômica pode iniciar-se com a reiteração de pautas sobejamente conhecidas,17 a sua sustentação e aprofundamento exigem uma democratização do Estado, do partido e da sociedade soviéticos. O tão reclamado desenvolvimento intensivo colidirá, se implementado, com o monopólio da iniciativa política por um único sujeito privilegiado pelos aparatos estatais (com os quais se confunde) de coerção e repressão, o partido, e com todo o discurso da sua legitimação.18
Não é pertinente discutir em que grau a nova equipe dirigente tem consciência da complexa dinâmica que está pondo em movimento — ao que se me afigura, esta consciência é bastante elevada.19 O que conta é salientar que se o núcleo de que Gorbatchev é a personalidade exponencial conseguir fazer avançar a sua estratégia de modernização sócio-econômica, o cenário político soviético ingressará numa etapa histórica de avanços democráticos que, em derradeira instância, poderá configurar a ruptura dos sistemas de fluxos políticos vigentes — poderá plasmar uma democracia socialista sem a qual o trânsito ao comunismo inscreve-se nas calendas gregas.
III. Se é minimamente plausível a linha de análise toscamente esboçada aqui, o processo em curso na União Soviética ganha uma relevância ímpar, cujas implicações podem assinalar uma profunda inflexão na história do movimento comunista.
Com efeito, o desempenho do núcleo dirigente liderado por Gorbatchev vai no sentido — francamente assumido por seus protagonistas — de promover uma ampla reforma no ordenamento societário soviético, reforma que, pelas suas iniciativas e conteúdos e incidências, é incomparável com qualquer outro momento de giro nas sociedades pós-revolucionárias.20 E se ainda é prematuro um juízo sobre os resultados imediatos de algumas das políticas específicas conduzidas segundo a nova orientação,21 são legítimas inferências e projeções a partir da análise da estratégia que vem concretizando a equipe afinada com Gorbatchev. Tais inferências e projeções conferem o exato significado do que está em jogo na União Soviética: a possibilidade de operar, sem rupturas políticas traumáticas, mas por um processo de alterações induzido a partir do próprio centro do poder,modificações substantivas que dinamizem a estrutura econômica basicamente socializada com a socialização da política e do poder político.
Historicamente, as experiências de transição socialista não puderam resolver com êxito e eficácia a dupla socialização em que reside a essência mesma do período de passagem ao comunismo: a socialização da economia e a socialização da política e do poder político.22 Daí que, em estágios muito diversificados, as sociedades pós-revolucionárias se defrontam com dilemas típicos do que certa sociologia chamaria de" causação circular": a transição socialista vê-se bloqueada porque a restrição do exercício democrático (com a irrealizada socialização da política e do poder político) impede a socialização plena da economia que, por efeito de retorno dialético, obstaculiza as tendências à socialização da política e do poder político.23 A estratégia de modernização sócio-econômica capitaneada por Gorbatchev enfrenta justamente esta problemática — donde o relevo histórico-universal do seu significado.
Não me parece que o rompimento daquela"causação circular" seja possível sem colocar em questão o sistema sócio-político institucional, matrizado pelo monopólio das iniciativas políticas pelo partido único, identificado com o Estado. Tudo indica que o reconhecimento da pluralidade de sujeitos sócio-políticos diferenciados constitua um requisito elementar para a democratização necessária ao desenvolvimento positivo da transição socialista.
Esta questão não vem formulada assim pela equipe de Gorbatchev — e é compreensível: para ela, dado o fato mesmo de ser produto deste sistema institucional e os obstáculos que nele enfrenta, a possibilidade de uma tal formulação é remota. Contudo, ao acenar para componentes sócio-políticos exteriores ao partido (a cidadania não filiada) e ao reclamar pela vitalização e autonomia de agências já existentes (por exemplo, os sindicatos), o núcleo dirigente soviético caminha nesta direção.
Salvo erro de análise, é da emergência deste pluralismo político — que não equivale, necessariamente, a pluralismo partidário 24— que vai depender o avanço da perestroika. Porque a reforma sem ruptura traumática (sem a "revolução política" antiburocrática, que Trotski tanto te matizou) está hipotecada ao florescimento de movimentos e agências socialistas que operem iniciativas políticas alternativas às do aparato estatal-partidário — e cabe observar que o novo núcleo dirigente ao menos vem tolerando manifestações nesta perspectiva.25 O aborto deste tendencial pluralismo significará o fracasso da reforma — mais exatamente, significará em larga medida a inépcia de uma auto-reforma socialista.
Não creio que, a esta altura, se possam formular prognósticos seguros sobre o desenvolvimento da reforma em curso na União Soviética. Mas estou convencido, desde já, que existem três elementos essenciais a reter e a aprofundar pelos socialistas revolucionários de todos os quadrantes.
O primeiro é que, depois de Gorbatchev, nada será como antes no movimento comunista. Definitivamente, não resistirá mais o incondicionalismo: o desempenho do líder soviético só vem fortalecendo as correntes críticas nos partidos comunistas, que recusam a mística do "partido-guia" e rechaçam a identificação da experiência soviética como o cânone teórico-ideológico do socialismo
O segundo, estreitamente conectado ao anterior, refere-se à revalorização da busca das vias nacionais de transição socialista: a dessacralização do "modelo soviético" ressitua com toda a força um problema medular — ou as correntes socialistas revolucionárias resgatam-se como sínteses político-culturais de seus povos ou se condenam ao seguidismo sem futuro. Aqui, a par de tarefas especificamente políticas, sobrevém com realce a importância da investigação e da pesquisa teórica independente.
E, terceiro, a problemática da democracia como valor instrumental estratégico do processo revolucionário inteiro vem reposta com um vigor que permite asseverar que, a partir de então, ela não perderá mais a sua centralidade.
Por isto, independentemente até dos desdobramentos internos da modernização sócio-econômica que está em curso na União Soviética, a significação do empenho do núcleo dirigente liderado por Gorbatchev se dimensiona como um fundamental aporte para a renovação dos esforços de todos os que apostam na invenção e na realização de uma nova socialidade. O que, a meu juízo, revela que permanece vivo o fascínio vermelho da chama acesa em Outubro, há setenta anos.


1. Cf. o opúsculo que, sob este titulo (ed. L'Unitá, Roma, 1987), reúne a polêmica que teve curso, entre novembro de 1986 e março do presente ano, nas páginas do semanário comunista Rinascita.
2. É importante assinalar que esta anotação não tem o seu alcance adstrito apenas aos problemas sócio-políticos, como o atestam os destinos das reformas econômicas intentadas mais recentemente (1965,1973 e 1979).
3. Por razões mais que óbvias, os estudos publicados pelos soviéticos acerca da sua estrutura de poder são pouco menos que imprestáveis — e, no geral, os trabalhos produzidos pelos kremlinólogos só se distinguem deles pela apologia às avessas. O fato é que o material utilizável sobre a estrutura do poder soviético é parco, ainda que, nos últimos anos, especial atenção lhe esteja sendo dedicada — cf., por exemplo, o esforço desenvolvido no seminário "Poder e oposição nas sociedades pós-revolucionárias", patrocinado por II Manifesto em Veneza, em novembro de 1977; uma das mais interessantes contribuições a este evento, a de I. Mészáros, "Poder Político e Dissidência nas Sociedades Pós-revolucionárias", foi publicado na revista Ensaio, São Paulo, n.º 14,1985.         [ Links ]
4. Esta processualidade é visível se se analisam os pronunciamentos de Gorbatchev, do informe ao XXVII Congresso dos PCUS(publicado entre nós pela Ed. Revan.Rio de Janeiro, 1986) ao relató         [ 
Links ]rio de janeiro de 1987, sobre"a política de quadros" (cf. Glasnot, a Política da Transparência. São Paulo, Brasiliense, 1987).         [ Links ]
5. Sobre a diferencialidade que distingue o contexto de Kruschev do de Gorbatchev, cf. Agnes Heller e Ferenc Feher, "O Novo Rosto da URSS", "Folhetim" da Folha de São Paulo, nº 537, 22 de maio de 1987.         [ Links ]
6. Diante disto, resulta divertido constatar a camaleônica viragem de certos apologetas do chamado socialismo real, outrora otimistas quanto ao "socialismo desenvolvido" e hoje firmes defensores da glasnost e daperestroika.
7. Os dados publicados na imprensa soviética, e reproduzidos no Ocidente, referentes a este saneamento em 1986 são eloqüentes: dezenas de milhares de funcionários foram submetidos a investigação a partir de denúncias populares e boa parte deles efetivamente punidos.
8. É característica, quanto a isto, a campanha contra o alcoolismo — que, explicitamente, nunca é associado à perda da perspectiva de vida em função do baixo grau da participação política e do restrito nível de tolerância ideológica.
9. A própria idéia de crise no processo do desenvolvimento pós-revolucionário ê algo que produz um frisson nos meios comunistas oficiais; cabe observar o silêncio com que se acolheu (ou melhor, não se acolheu) entre nós o instigante e pioneiro ensaio de Hércules Corrêa, A Crise do Socialismo (Rio de Janeiro, Marco Zero, 1982).         [ Links ]
10. Que vão desde o incremento do ritmo de crescimento industrial ao aumento da produtividade do trabalho, bem como a indicadores referentes a equipamento social e funcionamento de serviços públicos.
11. Os analistas mais qualificados não hesitam em constatar a defasagem entre a dimensão histórico-universal do poder político-militar soviético e a capacidade doméstica para suprir a demanda de bens e serviços.
12. Cf. Infra.
13. A crítica rigorosa ao chamado socialismo real — exceto ao preço de degradar-se no criticismo abstrato — não pode deixar de reconhecer que a sociedade soviética mostrou-se capaz de solucionar, em larga escala, problemas massivos que agoniam enormes contingentes populacionais do mundo capitalista — incluídos aí os países capitalistas avançados.
14. Não são de desprezar as resistências às mudanças provindas de outros Estados-partidos do campo socialista, que podem ser contabilizadas como outros fatores exógenos. Entretanto, como há pouco me dizia — ironicamente — um companheiro, são remotas as possibilidades de os tanques tchecos chegarem à Praça Vermelha.
15. Cf. especialmente a minha introdução ao volume Stálin, da coleção Grandes Cientistas Sociais (São Paulo, 1982), Ática, e o opúsculo O Que é Stalinismo, da coleção Primeiros Passos (São Paulo, Brasiliense, 1986).
16. Não há informações seguras sobre o nível de resistência às mudanças, mas parece óbvio que ele não é baixo no apara-lo estatal-partidário. Um dado é ilustrativo: a reunião de janeiro de 1987 da cúpula partidária foi adiada por três vezes, só se realizando sob a ameaça de demissão do próprio Gorbatchev. Este, em troca, tem sido capaz de promover uma ampla renovação nos quadros dirigentes: o Comitê Central sagrado no XXVII Congresso tem na sua composição 44% de novos membros. Este texto Já estava redigido quando, em meados de junho, realizou-se nova reunião da cúpula partidária, na qual Gorbatchev conseguiu o aval para avançar na via mudancista, inclusive ganhando novos e importantes espaços para a sua equipe na estrutura do partido e do Estado.
17. Recorde-se a ação do núcleo comandado por Kruschev. Esta pauta, diga-se de passagem, foi lapidarmente caracterizada por Lukács como o combate ao stalinismo através de métodos stalinistas.
18. Neste sentido, o processo aberto com a crítica do passado recente (o consulado de Brejnev) tende a se espraiar: a revisão histórica de sete décadas pós-revolucionárias poderá impor-se e então, Oxalá, a saga soviética possa ser depurada dos clichês (alguns obviamente caluniosos — v.g., Trotski, Bukharin) que a tornam tão pouco aceitável nas suas versões oficiais. Evidentemente, a escolástica do marxismo-leninismo oficial deverá sofrer não poucos arranhões, para desconsolo dos seus apologetas.
19. Para quem leva em conta o ritualismo próprio do oficialismo comunista, não passou desapercebido, por exemplo, que o XXVII Congresso do PCUS tenha coincidido precisamente com o trigésimo aniversário do XX.
20. Problema de distinta ordem é o de examinar em que grau certas experiências reformistas anteriores (abortadas ou não), Intentadas em outros países do campo socialista , formam ou estão sendo levadas em consideração pela equipe de Gorbatchev.
21. Políticas aliás que vêm se desenvolvendo a ritmos desiguais: as modificações da legislação econômica estão mais ' avançadas por exemplo, que as alterações aventadas para o plano político-eleitoral. Por outra parte, avanços significativos no plano das liberdades cívicas e no da tolerância Ideológica ocorrem faticamente, sem transposição ao nível da legalidade formal.
22. A experiência iugoslava, na qual esta intencionalidade foi alçada a primeiro plano, explicita, nas suas próprias dificuldades e no seu caráter excepcional, a problematicidade da resolução desta tarefa.
23. A temática da dupla socialização, aflorei-a em meu ensaio "Notas sobre a Democracia e Transição Socialista", Temas de Ciências Humanas, São Paulo, n.º 7,1980.
24. Dada a história da sociedade soviética, parece-me um devaneio reclamar pluralidade partidária. Mas a alternativa do pluralismo político é efetiva, concreta e factível — naturalmente implicando uma ponderável redefinição do papel do partido único.
25. Ao que sei, não foram desqualificados os autores do samizdat "Aos cidadãos da URSS", divulgado em novembro de 1985, em Leningrado, por um certo "Movimento para a renovação socialista".




Aprovado pelo Movimento Pró-PT, em 10 de fevereiro de 1980, no Colégio Sion (SP), e publicado no Diário Oficial da União de 21 de outubro de 1980.

O Partido dos Trabalhadores surge da necessidade sentida por milhões de brasileiros de intervir na vida social e política do país para transformá-la. A mais importante lição que o trabalhador brasileiro aprendeu em suas lutas é a de que a democracia é uma conquista que, finalmente, ou se constrói pelas suas mãos ou não virá. A grande maioria de nossa população trabalhadora, das cidades e dos campos, tem sido sempre relegada à condição de brasileiros de segunda classe. Agora, as vozes do povo começam a se fazer ouvir por meio de suas lutas. As grandes maiorias que constroem a riqueza da Nação querem falar por si próprias. Não esperam mais que a conquista de seus interesses econômicos, sociais e políticos venha das elites dominantes. Organizam-se elas mesmas, para que a situação social e política seja a ferramenta da construção de uma sociedade que responda aos interesses dos trabalhadores e dos demais setores explorados pelo capitalismo.

Nascendo das lutas sociais

Após prolongada e dura resistência democrática, a grande novidade conhecida pela sociedade brasileira é a mobilização dos trabalhadores para lutar por melhores condições de vida para a população das cidades e dos campos. O avanço das lutas populares permitiu que os operários industriais, assalariados do comércio e dos serviços, funcionários públicos, moradores da periferia, trabalhadores autônomos, camponeses, trabalhadores rurais, mulheres, negros, estudantes, índios e outros setores explorados pudessem se organizar para defender seus interesses, para exigir melhores salários, melhores condições de trabalho, para reclamar o atendimento dos serviços nos bairros e para comprovar a união de que são capazes.
Estas lutas levaram ao enfrentamento dos mecanismos de repressão impostos aos trabalhadores, em particular o arrocho salarial e a proibição do direito de greve. Mas, tendo de enfrentar um regime organizado para afastar o trabalhador do centro de decisão política, começou a tornar-se cada vez mais claro para os movimentos populares que as suas lutas imediatas e específicas não bastam para garantir a conquista dos direitos e dos interesses do povo trabalhador.
Por isso, surgiu a proposta do Partido dos Trabalhadores. O PT nasce da decisão dos explorados de lutar contra um sistema econômico e político que não pode resolver os seus problemas, pois só existe para beneficiar uma minoria de privilegiados.

Por um partido de massas

O Partido dos Trabalhadores nasce da vontade de independência política dos trabalhadores, já cansados de servir de massa de manobra para os políticos e os partidos comprometidos com a manutenção da atual ordem econômica, social e política. Nasce, portanto, da vontade de emancipação das massas populares. Os trabalhadores já sabem que a liberdade nunca foi nem será dada de presente, mas será obra de seu próprio esforço coletivo. Por isso protestam quando, uma vez mais na história brasileira, vêem os partidos sendo formados de cima para baixo, do Estado para a sociedade, dos exploradores para os explorados. Os trabalhadores querem se organizar como força política autônoma. O PT pretende ser uma real expressão política de todos os explorados pelo sistema capitalista. Somos um Partido dos Trabalhadores, não um partido para iludir os trabalhadores. Queremos a política como atividade própria das massas que desejam participar, legal e legitimamente, de todas as decisões da sociedade. O PT quer atuar não apenas nos momentos das eleições, mas, principalmente, no dia-a-dia de todos os trabalhadores, pois só assim será possível construir uma nova forma de democracia, cujas raízes estejam nas organizações de base da sociedade e cujas decisões sejam tomadas pelas maiorias.
Queremos, por isso mesmo, um partido amplo e aberto a todos aqueles comprometidos com a causa dos trabalhadores e com o seu programa. Em conseqüência, queremos construir uma estrutura interna democrática, apoiada em decisões coletivas e cuja direção e programa sejam decididos em suas bases.

Pela participação política dos trabalhadores

Em oposição ao regime atual e ao seu modelo de desenvolvimento, que só beneficia os privilegiados do sistema capitalista, o PT lutará pela extinção de todos os mecanismos ditatoriais que reprimem e ameaçam a maioria da sociedade. O PT lutará por todas as liberdades civis, pelas franquias que garantem, efetivamente, os direitos dos cidadãos e pela democratização da sociedade em todos os níveis.
Não existe liberdade onde o direito de greve é fraudado na hora de sua regulamentação, onde os sindicatos urbanos e rurais e as associações profissionais permanecem atrelados ao Ministério do Trabalho, onde as correntes de opinião e a criação cultural são submetidas a um clima de suspeição e controle policial, onde os movimentos populares são alvo permanente da repressão policial e patronal, onde os burocratas e tecnocratas do Estado não são responsáveis perante a vontade popular.
O PT afirma seu compromisso com a democracia plena e exercida diretamente pelas massas. Neste sentido proclama que sua participação em eleições e suas atividades parlamentares se subordinarão ao objetivo de organizar as massas exploradas e suas lutas. Lutará por sindicatos independentes do Estado, como também dos próprios partidos políticos.
O Partido dos Trabalhadores pretende que o povo decida o que fazer da riqueza produzida e dos recursos naturais do país. As riquezas naturais, que até hoje só têm servido aos interesses do grande capital nacional e internacional, deverão ser postas a serviço do bemestar da coletividade. Para isso é preciso que as decisões sobre a economia se submetam aos interesses populares. Mas esses interesses não prevalecerão enquanto o poder político não expressar uma real representação popular, fundada nas organizações de base, para que se efetive o poder de decisão dos trabalhadores sobre a economia e os demais níveis da sociedade.
Os trabalhadores querem a independência nacional. Entendem que a Nação é o povo e, por isso, sabem que o país só será efetivamente independente quando o Estado for dirigido pelas massas trabalhadoras. É preciso que o Estado se torne a expressão da sociedade, o que só será possível quando se criarem condições de livre intervenção dos trabalhadores nas decisões dos seus rumos. Por isso, o PT pretende chegar ao governo e à direção do Estado para realizar uma política democrática, do ponto de vista dos trabalhadores, tanto no plano econômico quanto no plano social. O PT buscará conquistar a liberdade para que o povo possa construir uma sociedade igualitária, onde não haja explorados nem exploradores. O PT manifesta sua solidariedade à luta de todas as massas oprimidas do mundo.





Anterior ao Manifesto de Fundação do Partido dos Trabalhadores, a Carta de Princípios foi lançada publicamente no dia 1º de maio de 1979.

A idéia da formação de um partido só dos trabalhadores é tão antiga quanto a própria classe trabalhadora.
Numa sociedade como a nossa, baseada na exploração e na desigualdade entre as classes, os explorados e oprimidos têm permanente necessidade de se manter organizados à parte, para que lhes seja possível oferecer resistência séria à desenfreada sede de opressão e de privilégios das classes dominantes.
Mas sempre que as lideranças dos trabalhadores e oprimidos se lançam à tarefa de construir essa organização independente de sua classe, toda sorte de obstáculos se contrapõe a seus esforços.
Essa situação vivida milhares de vezes em todos os países do mundo vem acontecendo agora no Brasil. Começando a sacudir o pesado jugo a que sempre estiveram submetidos, os trabalhadores de nosso país deram início, em 12 de maio do ano passado (greve da Scania), a sua luta emancipadora. Desde então, o operariado e os setores proletarizados de nossa população vêm desenvolvendo uma verdadeira avalanche pela melhoria de suas condições de vida e de trabalho. A experiência dessas lutas tem como resultado um visível amadurecimento político da população trabalhadora e o crescimento, em quantidade e qualidade, de suas lideranças.
Esse rápido amadurecimento político pode ser visto claramente no aprimoramento das formas de luta de que os trabalhadores têm lançado mão. O início das lutas é marcado por um período de greves brancas nas fábricas. Já os embates mais recentes, dos quais a greve geral metalúrgica do ABCD é o melhor exemplo, mostram a retomada, em toda a linha, das formas clássicas de luta: grandiosidade das assembléias gerais, a ação decisiva dos piquetes e dos fundos de greve.
Os trabalhadores entenderam ao longo desse ano de lutas que suas reivindicações mais sentidas esbarravam em obstáculos cada vez maiores, e é por isso, dialeticamente, que vão sendo obrigados a construir organizações cada vez mais bem articuladas e eficazes. Diante da força da greve do ABCD, os patrões e o governo precisaram dar-se as mãos para impedir o fim da política do arrocho salarial e o fim das estruturas semifascistas que tangem nossos sindicatos. Os patrões usam de todos os meios a seu alcance para quebrar a unidade dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que se recusam a reconhecer os acordos obtidos no período das greves fabris. O governo desencadeia sua repressão: os sindicatos são invadidos e suas direções destituídas oficialmente, enquanto nas ruas a polícia persegue os piquetes e tenta impedir, pela violência, que os trabalhadores consigam local para se reunir.
Por seu lado, o apoio que os metalúrgicos conseguem dos demais trabalhadores, embora seja suficiente para impedir que a repressão se aprofunde e faça produzir um recuo parcial, carece de maior conseqüência, devido, é claro, não à inexistência de um espírito de solidariedade, mas sim devido às limitações do movimento sindical e à inexistência de sua organização política. Tanto isso é verdade que as lideranças da greve são obrigadas a se escorar no apoio, muitas vezes duvidoso, de aliados ocasionais, saídos do campo das classes médias e da própria burguesia.
Não puderam os trabalhadores expressar de modo mais conseqüente todo o seu apoio aos grevistas do ABCD, e essa impotência tenderá a continuar enquanto eles mesmos não se organizarem politicamente em seu próprio partido.
É por isso que a idéia de um partido dos trabalhadores, ressurgindo no bojo das greves do ano passado e anunciado na reunião intersindical de Porto Alegre, em 19 de janeiro de 1979, tende a ganhar, hoje, uma irresistível popularidade. Porque se trata, hoje, mais do que nunca, de uma necessidade objetiva para os trabalhadores.
Cientes disso também é que setores das classes dominantes se apressam a sair a campo com suas propostas de PTB. Mas essas propostas demagógicas já não conseguem iludir os trabalhadores, que, nem de longe, se sensibilizaram com elas. Esse fato comprova que os trabalhadores brasileiros estão cansados das velhas fórmulas políticas elaboradas para eles. Agora, chegou a vez de o trabalhador formular e construir ele próprio seu país e seu futuro. Nós, dirigentes sindicais, não pretendemos ser donos do PT, mesmo porque acreditamos sinceramente existir, entre os trabalhadores, militantes de base mais capacitados e devotados, a quem caberá a tarefa de construir e liderar nosso partido. Estamos apenas procurando usar nossa autoridade moral e política para tentar abrir um caminho próprio para o conjunto dos trabalhadores. Temos a consciência de que, nesse papel, neste momento, somos insubstituíveis, e somente em vista disso é que nós reivindicamos o papel de lançadores do PT.
O povo brasileiro está pobre, doente e nunca chegou a ter acesso às decisões sobre os rumos do país. E não acreditamos que esse povo venha a conhecer justiça e democracia sem o concurso decisivo e organizado dos trabalhadores, que são as verdadeiras classes produtoras do país.
É por isso que não acreditamos que partidos e governos criados e dirigidos pelos patrões e pelas elites políticas, ainda que ostentem fachadas democráticas, possam propiciar o acesso às conquistas da civilização e à plena participação política a nosso povo. Os males profundos que se abatem sobre a sociedade brasileira não poderão ser superados senão por uma participação decisiva dos trabalhadores na vida da Nação. O instrumento capaz de propiciar essa participação é o Partido dos Trabalhadores. Iniciemos, pois, desde já, a cumprir esta tarefa histórica, organizando por toda parte os núcleos elementares desse partido.
1. A sociedade brasileira vive, hoje, uma conjuntura política altamente contraditória e, sob muitos aspectos, decisiva quanto a seu futuro a médio e longo prazos. Vista do ângulo dos interesses das amplas massas exploradas, desde sempre marginalizadas material e politicamente em nosso país e principais vítimas do regime autoritário que vigora desde 1964, a conjuntura revela tendências extremamente promissoras de um futuro de liberdades e de conquistas de melhores condições de vida. Dentre as tendências auspiciosas, destaca-se a emergência de um movimento de trabalhadores que busca afirmar sua autonomia organizatória e política face ao Estado e às elites políticas dominantes. Esse é, sem dúvida alguma, o elemento inovador e mais importante da nova etapa histórica que se inaugura no Brasil, hoje.
Contudo, a par dos dados auspiciosos da conjuntura política, coexistem também perigosos riscos, que podem levar as lutas populares a novas e fragorosas derrotas. Aqui, cabe destacar que o processo chamado de abertura política está sendo promovido pelos mesmos grupos que sustentaram e defenderam o regime hoje em crise. Com a evidente exaustão de amplos setores sociais com o regime vigente no país e com a crise econômica que abalou a estabilidade dos grupos dominantes que controlam o aparelho de Estado, os detentores do poder procuram agora, e até este momento com relativo êxito, reformar o regime de cima para baixo. Vale dizer, pretendem reformar alguns aspectos do regime, mantendo o controle do Estado, a fim de evitar alterações no modelo de desenvolvimento econômico, que só a eles interessa e que se baseia, sobretudo, na superexploração das massas trabalhadoras, através do modelo econômico do qual sobressai o arrocho salarial.
Já está demais evidente que o novo governo militar pretende manter a continuidade dessa mesma política econômica ditada pelo capital financeiro internacional, agravada agora pelos planos de austeridade e recessão que já se esboçam. Isso significa que o sofrimento, a miséria material e a opressão política sobre a população trabalhadora tenderão a se manter e aprofundar.
 O que significa Estado de Direito com salvaguardas? O que pretendem com anistia restrita? O que visam com a propalada reforma da CLT [Consolidação das Leis do Trabalho] e a da Lei de Greve, urdidas secretamente? Qual o sentido da diminuição das penas previstas na Lei de Segurança Nacional e da preservação do espírito que informa essa mesma Lei? Esses e tantos outros fatos indicam que o regime busca reformar-se tentando atrair para seu campo de apoio setores sociais e segmentos políticos oposicionistas, com vista a impedir que as massas exploradas explicitem suas reivindicações econômicas e sociais e, o que é mais importante, sua concepção de democracia.
 Em poucas palavras, pretendem promover uma conciliação entre os de cima, incluindo a cúpula do MDB, para impedir a expressão política dos de baixo, as massas trabalhadoras do campo e da cidade.
 2. Essas afirmações não ignoram o fato de que o MDB foi utilizado pelas massas para manifestar eleitoralmente seu repúdio ao arbítrio. Tampouco pretendem ignorar a existência, entre seus quadros, de políticos honestamente comprometidos com as lutas populares.
 Isso, no entanto, não pode impedir e não nos impede de apontar as limitações que o MDB – partido de exclusiva atuação parlamentar – impõe às lutas populares por melhores condições de vida e por um regime democrático de verdadeira participação popular. O MDB, por sua origem, por sua ineficácia histórica, pelo caráter de sua direção, por seu programa pró-capitalista, mas sobretudo por sua composição social essencialmente contraditória, em que se congregam industriais e operários, fazendeiros e peões, comerciantes e comerciários, enfim, classes sociais cujos interesses são incompatíveis e nas quais, logicamente, prevalecem em toda a linha os interesses dos patrões, jamais poderá ser reformado. A proposta que levantam algumas lideranças populares de “tomar de assalto” o MDB é muito mais que insensata: é fruto de uma velha e trágica ilusão quanto ao caráter democrático de setores de nossas classes dominantes.
Aglomerado de composição altamente heterogênea e sob controle e direção de elites liberais conservadoras, o MDB tem-se revelado, num passado recente, um conduto impróprio para expressão dos reais interesses das massas exploradas brasileiras. Está na memória dos trabalhadores a conduta vacilante de parcelas significativas de seus quadros quando da votação da emenda Accioly, da lei antigreve e de outras medidas de interesse dos trabalhadores.
Apegado a uma crítica formalista e juridicista do regime autoritário, o MDB tem-se revelado impermeável aos temas sociais e políticos que tocam, de fato, nos interesses das massas trabalhadoras. Amplos setores das elites políticas e intelectuais das camadas médias da população têm afirmado que “não soou a hora” de se dividir a oposição articulada no interior do MDB, afirmando que a democracia não foi ainda conquistada.
Rechaçamos com veemência tal argumento. Primeiro, porque em momento algum podemos aceitar a subordinação dos interesses políticos e sociais das massas trabalhadoras a uma direção liberal conservadora, de extração privilegiada economicamente. Segundo, porque não podemos aceitar que a frente das oposições se mantenha à custa do silêncio político da massa trabalhadora, único e verdadeiro sujeito e agente de uma democracia efetiva.
Tampouco consideramos que a existência de partidos políticos populares venha a contribuir para romper uma efetiva frente da luta dos verdadeiros democratas. O PT considera imprescindível que todos os setores sociais e correntes políticas interessados na luta pela democratização do país e na luta contra o domínio do capital monopolista unifiquem sua ação, estabelecendo frentes interpartidárias que objetivem conquistas comuns imediatas e envolvam não somente uma ação meramente parlamentar, mas uma verdadeira atividade política que abranja todos os aspectos da vida nacional.
3. O Partido dos Trabalhadores denuncia o modelo econômico vigente, que, tendo transformado o caráter das empresas estatais, construídas pelas lutas populares, utiliza essas empresas e os recursos do Estado, em geral, como molas mestras da acumulação capitalista. O Partido dos Trabalhadores defende a volta das empresas estatais a sua função de atendimento das necessidades populares e o desligamento das empresas estatais do capital monopolista.
O Partido dos Trabalhadores entende que a emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores, que sabem que a democracia é participação organizada e consciente e que, como classe explorada, jamais deverão esperar da atuação das elites privilegiadas a solução de seus problemas.
O PT entende também que, se o regime autoritário for substituído por uma democracia formal e parlamentar, fruto de um acordo entre elites dominantes que exclua a participação organizada do povo (como se deu entre 1945 e 1964), tal regime nascerá débil e descomprometido com a resolução dos problemas que afligem nosso povo e de pronto será derrubado e substituído por novas formas autoritárias de dominação – tão comuns na história brasileira. Por isso, o PT proclama que a única força capaz de ser fiadora de uma democracia efetivamente estável é a das massas exploradas do campo e das cidades.
O PT entende, por outro lado, que sua existência responde à necessidade que os trabalhadores sentem de um partido que se construa intimamente ligado com o processo de organização popular, nos locais de trabalho e de moradia. Nesse sentido, o PT proclama que sua participação em eleições e suas atividades parlamentares se subordinarão a seu objetivo maior, que é estimular e aprofundar a organização das massas exploradas. O PT não surge para dividir o movimento sindical, muito ao contrário, surge exatamente para oferecer aos trabalhadores uma expressão política unitária e independente na sociedade. E é nessa medida que o PT se tornará, inevitavelmente, um instrumento decisivo para os trabalhadores na luta efetiva pela liberdade sindical.
O PT proclama também que sua luta pela efetiva autonomia e independência sindical, reivindicação básica dos trabalhadores, é parte integrante da luta pela independência política desses mesmos trabalhadores. Afirma, outrossim, que buscará apoderar-se do poder político e implantar o governo dos trabalhadores, baseado nos órgãos de representação criados pelas próprias massas trabalhadoras com vista a uma primordial democracia direta. Ao anunciar que seu objetivo é organizar politicamente os trabalhadores urbanos e os trabalhadores rurais, o PT se declara aberto à participação de todas as camadas assalariadas do país.
Repudiando toda forma de manipulação política das massas exploradas, incluindo, sobretudo as manipulações próprias do regime pré-64, o PT recusa-se a aceitar em seu interior, representantes das classes exploradoras. Vale dizer, o Partido dos Trabalhadores é um partido sem patrões!
As tentativas de reviver o velho PTB de Vargas, ainda que, hoje, sejam anunciadas “sem erros do passado” ou “de baixo para cima”, não passam de propostas de arregimentação dos trabalhadores para defesa de interesses de setores do empresariado nacional. Se o empresariado nacional quer construir seu próprio partido político, apelando para sua própria clientela, nada temos a opor, porém denunciamos suas tentativas de iludir os trabalhadores brasileiros com seus rótulos e apelos demagógicos e de querer transformá-los em massa de manobra para seus objetivos.
O PT não pretende criar um organismo político qualquer. O Partido dos Trabalhadores define-se, programaticamente, como um partido que tem como objetivo acabar com a relação de exploração do homem pelo homem.
O PT define-se também como partido das massas populares, unindo-se ao lado dos operários, vanguarda de toda a população explorada, todos os outros trabalhadores – bancários, professores, funcionários públicos, comerciários, bóia-frias, profissionais liberais, estudantes etc. – que lutam por melhores condições de vida, por efetivas liberdades democráticas e por participação política.
O PT afirma seu compromisso com a democracia plena, exercida diretamente pelas massas, pois não há socialismo sem democracia nem democracia sem socialismo. Um partido que almeja uma sociedade socialista e democrática tem de ser, ele próprio, democrático nas relações que se estabelecem em seu interior. Assim, o PT se constituirá respeitando o direito das minorias de expressar seus pontos de vista. Respeitará o direito à fração e às tendências, ressalvando apenas que as inscrições serão individuais. Como organização política que visa elevar o grau de mobilização, organização e consciência de massas, que busca o fortalecimento e a independência política e ideológica dos setores populares, em especial dos trabalhadores, o PT irá promover amplo debate de suas teses e propostas de forma a que se integrem nas discussões:
• lideranças populares, mesmo que não pertençam ao partido;
• todos os militantes, trazendo, inclusive, para o interior do debate partidário proposições de quaisquer setores organizados da sociedade e que se considerem relevantes com base nos objetivos do PT.
O PT declara-se comprometido e empenhado na tarefa de colocar os interesses populares na cena política e de superar a atomização e dispersão das correntes classistas e dos movimentos sociais. Para esse fim, o Partido dos Trabalhadores pretende implantar seus núcleos de militantes em todos os locais de trabalho, em sindicatos, bairros, municípios e regiões.
O PT manifesta alto e bom som sua intensa solidariedade com todas as massas oprimidas do mundo.

A Comissão Nacional Provisória
1º de Maio de 1979






O Partido dos Trabalhadores – trajetória, metamorfoses, perspectivas Daniel Aarão Reis Professor Titular de História Contemporânea, Núcleo de Estudos Contemporâneos/NEC, Universidade Federal Fluminense/UFF

O Partido dos Trabalhadores – trajetória, metamorfoses, perspectivas Daniel Aarão Reis Professor Titular de História Contemporânea, Núcleo de Estudos Contemporâneos/NEC, Universidade Federal Fluminense/UFF 1. A gênese Quando, em maio de 1978, os operários das indústrias automobilísticas de São Bernardo resolveram entrar em greve, demonstrando ousadia e coragem, desafiando a vontade dos patrões e a legislação vigente, poucos imaginariam que ali estava se iniciando um processo que levaria à formação do Partido dos Trabalhadores/PT. Entretanto, como em todas as realizações humanas de sucesso, as origens do Partido dos Trabalhadores/PT suscitam controvérsias. A contribuição, e o peso decisivo, dos movimentos operários de fins dos anos 70 e de suas lideranças, então emergentes, são indiscutíveis. Certo, em retrospecto, os juízos e as expectativas que então se formularam talvez possam ser considerados exagerados. As transformações radicais que muitos intelectuais e militantes revolucionários presumiram como inevitáveis acabaram não acontecendo. Da mesma forma, com o passar dos anos, o chamado novo sindicalismo (ou sindicalismo autêntico) pareceria, cada vez mais, enraizado em velhas tradições, não fosse ele próprio produto de uma cultura política forjada no interior de estruturas sindicais corporativas engendradas ainda nos anos 1940. Tudo isto é verdade, mas, mesmo assim, é impossível diminuir a importância histórica das ondas de choque das lutas sociais e políticas que se estenderiam, de modo surpreendente e ininterrupto, ao longo dos anos seguintes, entrando pela década de 1980, e projetando os trabalhadores brasileiros, naqueles anos, como dos mais combativos em escala mundial1 . A ditadura estava em franco declínio, seu aparelho repressivo, ainda intacto, e embora em atividade, intimidava cada vez menos. Mesmo entre as elites, principalmente entre elas, talvez, prevaleciam as tendências favoráveis à democratização do país. O contexto internacional também ajudava: o triunfo da revolução sandinista, em 1979; o declínio das ditaduras nas Américas ao sul do Rio Grande; e a 1 Nos anos 80, apenas os trabalhadores poloneses, construindo o Solidariedade, um misto de partido e de sindicato , ofereceriam um exemplo comparável de disposição de luta por melhores condições de vida e de trabalho e contra a opressão e a ingerência soviéticas. Para as origens do PT, cf. Berbel, 1991; Gadotti, 1989; Keck, 1991; Meneguello,1989 ; e Voigt, 1990 2 própria atitude do governo Carter nos EUA, que via com bons olhos o declínio dos regimes ditatoriais, desde que substituídos em boa ordem, e pelo alto, tudo isto favorecia propostas alternativas fundadas na imaginação e na criatividade. Foi num contexto como este que se estruturou o PT, ganhando rapidamente notoriedade os nomes dos líderes sindicais que, desde meados de 1978, iriam se decidir pela sua construção: Luis Inácio Lula da Silva,2 José Cicote, Henos Amorina, presidentes dos sindicatos de Metalúrgicos de São Bernardo, Santo André e Osasco; Paulo Skromov, do sindicato dos coureiros; Jacó Bitar, dos petroleiros de Campinas; Olívio Dutra, dos bancários de Porto Alegre; entre muitos outros, estes, principalmente, cedo depontariam como lideranças de um partido distinto e específico, de trabalhadores, para se opor à tradição de partidos que pretendiam falar em nome e pelos trabalhadores. Entretanto, não estariam só nesta aventura. Também desde o início, tomaram parte na iniciativa grupos revolucionários trotskistas, entre os quais, e principalmente, a Convergência Socialista, além de grupos remanescentes de organizações que haviam participado da luta contra a ditadura militar: Ala Vermelha do Partido Comunista do Brasil/Ala-PC do B, Ação Libertadora Nacional/ALN, Ação Popular MarxistaLeninista/AP-ML, Partido Comunista Brasileiro Revolucionário/PCBR, Movimento de Emancipação do Proletariado/MEP, todos ingressariam nas articulações que deram origem ao PT. Tendo sido derrotados em suas propostas de enfrentamento radical da ditadura (guerrilha urbana, foco guerrilheiro, insurreições de massa), e, em larga medida, redefinido concepções e métodos de trabalho, encontravam-se em processo de reestruturação desde os começos da segunda metade dos anos 70.3 Para toda esta gente, a fundação de um partido de trabalhadores pelos próprios trabalhadores representava a atualização de uma antiga utopia revolucionária, enunciada, e anunciada, desde o Manifesto Comunista de K. Marx, de 1848: a emancipação do proletariado haveria de acontecer por obra e graça dos próprios proletários. Um partido independente do jogo e das instituições legais, livre da tutela do Estado e das lideranças burguesas, que sempre haviam dominado o jogo político nacional, distinto também das principais tradições que haviam animado as lutas sociais e políticas dos trabalhadores brasileiros: o trabalhismo e o comunismo, acusados de 2 Sobre Lula, cf. especialmente, Betto, 1989; Luis Inácio Lula da Silva, 1980 e 1981; Morel, 1981; Paraná, 1996 3 Em relação à participação das organizações e partidos revolucionários na formação do PT, cf. Azevedo, 1981; Azevedo e Maués, 1997; Guimarães, 1990; Sader, 1986 e Souza, 1995 3 serem artífices de derrotas e, principalmente, de terem atrelado os trabalhadores a causas e a propósitos populistas4 e burgueses. Finalmente, uma terceira componente participaria igualmente da formação do novo Partido: os militantes da esquerda católica.5 Nas bases da sociedade, tinham sido eles agentes da verdadeira reviravolta registrada por importantes setores da Igreja Católica que, de uma posição favorável, ou neutra, à intervenção golpista de 1964, evoluíram, progressivamente, para a crítica e, depois, para o confronto com a ditadura militar. Organizavam-se nas comunidades eclesiais de base, as CEBs, que se espalhavam, dezenas de milhares, pelo país, animadas, muitas, pela fé militante da teologia da libertação, doutrina que tinha a ambição de elaborar uma síntese revolucionária anti-capitalista entre cristianismo e marxismo. Num crescendo, tais atitudes e idéias seriam incorporadas, e potencializadas, pela Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros/CNBB que exprimiria de modo articulado, e com repercussão nacional e internacional, críticas contundentes ao modelo econômico construído pelo regime militar, denunciado como injusto, desigual, opressivo e desumano.6 Assim, na fundação do PT, em 10 de fevereiro de 1980, no Colégio Sion, em São Paulo, encontraram-se reunidas, de mãos dadas, em aliança, lideranças sindicais autênticas, revolucionários marxistas-leninistas e militantes cristãos radicais. Um encontro inusitado. No fogo das lutas sociais, entre assembléias, movimentos e greves, tinham sido vencidos os questionamentos dos que desejavam manter a frente política em que se transformara o Movimento Democrático Brasileiro/MDB, argumentando que a frente deveria ser mantida até o último suspiro da ditadura militar, cujas legislações, o chamado entulho autoritário, apesar da revogação do Ato Institucional n° 5/AI-5 e dos demais Atos de exceção, ainda obstruíam os caminhos da democracia brasileira. Fundar um novo partido popular não contribuiria para enfraquecer o MDB, fazendo o jogo da ditadura? 4 Para a discussão deste conceito, consolidado por uma certa sociologia paulista, e de grande impacto nas ciências humanas e na política brasileiras, cf. Ângela de Castro Gomes: A invenção do trabalhismo, Rio de Janeiro, Relume Dumará, e Jorge Ferreira (org.) O populismo, história de um conceito. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001 5 Cf. Azevedo e Maués, 1997, especialmente o depoimento de Madre Cristina, p. 171, 1989 6 Numa notável metamorfose, a CNBB, que abençoara a vitória da ditadura em 1964, e participara ativamente do processo de organização e de mobilização das Marchas da Família com Deus e pela Liberdade, desde fins dos anos 60, iniciara uma lenta mudança de pele, tornando-se, ao longo dos anos 70, uma entidade de oposição aos governos ditatoriais que se sucederam no país, e, principalmente, de oposição e denúncia do modelo de desenvolvimento do mal chamado “milagre brasileiro”, designação então corrente dos “anos de ouro” – fins dos anos 60 e inícios dos anos 70, quando o país viveu momentos de intensa prosperidade econômica. Para uma análise da Teologia da Libertação, cf. M. Lowy, 2000. 4 Os velhos Partidos Comunistas – o Brasileiro e o do Brasil –, do alto de sua experiência, reforçavam os argumentos neste sentido: seria uma inconsequência, no momento delicado da última fase da transição democrática, alquebrar o MDB, o principal instrumento que, mal ou bem, fora construído pela sociedade brasileira em suas lutas contra a ditadura. Por outro lado, apareciam acenando no cenário político diversas alternativas, sedutoras e persuasivas. De um lado, a da construção de um partido socialista democrático, em que se empenhavam figuras políticas de prestígio e de tradição, como Almino Afonso, experiente e respeitado líder político da esquerda trabalhista anterior a 1964, Fernando Henrique Cardoso, eleito em 1978, com apoio das lideranças operárias de São Bernardo, suplente de senador na chapa encabeçada por Franco Montoro, além de outros deputados e lideranças autênticas do MDB.7 De outro, a proposta de Leonel Brizola, lançada ainda do exílio, em Lisboa, em 1979, antes da anistia, quando refundara o Partido Trabalhista Brasileiro/PTB, conservando, mas, ao mesmo tempo, atualizando, a tradição trabalhista, associando-a agora ao socialismo democrático europeu e a temáticas e a reivindicações novas, que passariam, desde então, a agitar as esquerdas brasileiras: o racismo na sociedade, a criança marginalizada e abandonada, a opressão da mulher, a questão, considerada decisiva, da educação. Era o socialismo moreno, aberto às realidades concretas do Brasil, potencializado pela notável capacidade de comunicação de Brizola. Contra estes ventos e marés, apesar deles, firmou-se a proposta de fundação e construção do PT, empreendida, como já referido, por forças diferenciadas. Como explicar esta articulação que, em outras circunstâncias, poderia parecer improvável, mas que se formara, no simbólico Colégio Sion, e agora estavam ali, celebrando o inesperado, o indesejado, e o imprevisto, tanto pelas elites que haviam imaginado a distensão “lenta, segura e gradual”, como pelas esquerdas tradicionais. Promovê-la não fora fácil, nem simples. Houve concessões mútuas. As lideranças sindicalistas, pelo seu papel protagônico nas lutas sociais, reconhecidas, a justo título, como hegemônicas, ganharam a presidência, a maioria dos cargos e os principais postos na primeira comissão provisória dirigente8 . Foi necessário passar ao largo de, ou esquecer, certas derrapagens, declarações imprecisas ou tiradas francamente estranhas às tradições de esquerda, atribuídas à inexperiência ou à franqueza proletária dos líderes operários, 7 O MDB autêntico remontava aos anos 70, reunindo então um grupo de deputados que, embora participando do jogo político legal, recusava atitudes subservientes à ditadura militar. Foram freqüentemente perseguidos e, alguns, cassados, por suas atitudes e idéias independentes, consideradas pela ditadura como contestatórias, um jargão repressivo da época para designar um tipo intolerável de oposição. Com a eleição de Franco Montoro, em 1982, governador de São Paulo, Fernando Henrique Cardoso assumiria o cargo de Senador pelo Estado de São Paulo. 8 Luis Inácio Lula da Silva foi eleito presidente. Jacó Bittar (petroleiros de Campinas), Secretário Geral, e Olívio Dutra (bancários de Porto Alegre), vice-presidente. 5 entre os quais o próprio Lula9 . Atitudes inesperadas também chamavam a atenção dos mais críticos, entre as quais uma irrecusável alergia ao debate político. Por outro lado, foi evacuada a questão maior de saber como, de estruturas corporativistas, que vinham de longe, e que forjavam líderes carismáticos, verticais e centralistas, além de adeptos da negociação, e não do enfrentamento, haviam surgido lideranças novas e autênticas, e, ainda por cima, adeptas de mudanças radicais. Entretanto, não houve rendição unilateral às lideranças sindicais. Estas igualmente renderam-se à retórica revolucionária, que impregnou a atmosfera, o ato e os textos de fundação. A dimensão internacionalista, a independência de classe, o anti-capitalismo explícito, o compromisso, convenientemente impreciso, com o socialismo, era o Verbo revolucionário cumprindo a função de silenciar os ruídos que poderiam advir de outras imprecisões, obscuridades e pontos cegos. Por exemplo: o partido declarava-se socialista, mas que tipo de socialismo exatamente pretendia? E através de que meios? Reforma ou revolução? E de que formas de luta? Pressões e movimentos sociais? Lutas institucionais? E a atitude em relação aos marcos legais? Respeito escrupuloso, ou infração, se, e quando, fosse o caso? Como se combinariam na prática a unidade de ação e a pluralidade de tendências constituintes? Como funcionaria a democracia interna? Questões candentes, não resolvidas cabalmente no ato de fundação. Outras lacunas iam sendo preenchidas com os meios de bordo. A teologia da libertação fazia a ponte entre marxistas e cristãos. O chamado consenso progressivo, defendido pelos militantes das CEBs, remediava as múltiplas contradições. Era necessário debater até alcançar o consenso. Mas a prática das lutas sociais em curso aglutinavam todos em torno dos líderes sindicais. E as antigas utopias cimentavam as esperanças naquele partido original, cheio de força jovem. Quanto às diferenças, visíveis, foram caracterizadas como pluralidade de veios, fontes de vida, e de força. Como acontece nestas circunstâncias, fez-se da necessidade, virtude. O PT não se deixaria emaranhar na tradição deletéria das esquerdas brasileiras, dividindo-se em torno de abstrações, ou de questões políticas gerais. As diferenças seriam equilibradas na prática, as respostas às grandes questões viriam da e na luta. Na apinhada assembléia do Colégio Sion, a emocionante chamada de intelectuais e militantes experimentados e respeitados para assinar a ata de fundação era o emblema da união das diferentes famílias de esquerda: os trotskistas Mario Pedrosa e Lelia Abramo, o socialista Antonio Candido, o comunista Apolônio de Carvalho, os cristãos Paulo Freire e Plínio de Arruda Sampaio. As lideranças sindicais, novas e autênticas, legitimadas pela tradição intelectual revolucionária. 9 Cf. Azevedo e Maués, 1997, especialmente o depoimento de L. Abramo sobre Lula, pp. 79, 80 e 82 6 Para alguns críticos, havia ali um ecletismo insustentável, de curto fôlego. Mas para os mais entusiasmados, estava nascendo o primeiro partido socialista do século XXI. 2. As metamorfoses Os anos 80 no Brasil, com ênfase em sua primeira metade, foram, como referido, anos de grande efervescência social. Como se a retirada da ditadura houvesse liberado forças represadas que, agora, exercendo liberdades por longo tempo coartadas, manifestavam com vigor demandas e reivindicações. Movimentos e greves multiplicavam-se incessantemente, aparecendo em quase todos, como protagonistas, os militantes e as lideranças do PT. De modo geral, as lutas eram de caráter sindical, mas não raro, efeito sobretudo da ação de grupos revolucionários, despontavam propostas ou palavras de ordem políticas anti-capitalistas. Com epicentro na periferia industrial próxima da cidade de São Paulo (São Bernardo, Santo André, São Caetano do Sul, Diadema – o ABCD), os movimentos sociais rapidamente se alastraram, ganhando a capital do Estado, outras periferias (Osasco), e demais cidades e estados do país. Como expressão forte do processo, formou-se, em 1983, a Central Única dos Trabalhadores/CUT, aliada sindical do PT, embora autônoma do ponto de vista orgânico.10 O vigor efetivo dos movimentos sociais levou muitos a afirmarem que este deveria ser o eixo principal de articulação e organização do PT. Nesta perspectiva as lutas político-eleitorais deveriam ocupar um lugar subordinado e auxiliar, aparecendo os deputados e vereadores eleitos como um braço parlamentar dos movimentos sociais. Em 1982, no entanto, na primeira experiência eleitoral, o PT demonstrou um apetite formidável para alcançar, através do voto, postos e posições em assembléias e governos de Estado. Lançou candidatos ao governo de quase todos os Estados da Federação, assim como centenas de militantes, por toda a parte, candidatavam-se a assentos nos diversos parlamentos – municipais, estaduais e federais – câmara e senado. Os resultados, considerando-se a inexperiência e a falta de recursos e de tradição, não foram medíocres. O PT elegeu oito deputados federais, 12 estaduais e 117 vereadores em todo o país, além 10 A crítica, propagada pelos que não aceitaram a criação do PT, segundo a qual a CUT não passava de um braço sindical do Partido, pressupunha uma espécie de subordinação política dos sindicatos ao partido, o que, de fato, não existia, prevalecendo, isto sim, uma identidade de interesses no quadro de uma aliança política e sindical. Por outro lado, sobretudo em seus inícios, inúmeros líderes sindicais eram também líderes políticos do Partido. Se preponderância houve então foi a dos líderes sindicais no partido. Mas também seria um exagero inverter a fórmula, figurando o PT como braço político da CUT. 7 de alcançar importantes votações para os governos dos Estados, destacando-se a votação de Lula, embora derrotado, para o governo do Estado de São Paulo.11 Um início alentador, embora muitos, na época, tivessem ficado decepcionados, por terem formulado expectativas demasiadamente ambiciosas, ou relativamente frustrados, por terem sido superados pelos dois partidos herdeiros da tradição trabalhista: o PDT e o PTB.12 Na época, analistas apressados, mesmo entre os petistas, chegaram a vaticinar que PT estaria destinado a ser um Partido fraco em termos político-eleitorais, embora com respaldo social de grande expressão. Era exatamente isto o que desejavam as correntes mais radicais, entre as quais destacava-se a Convergência Socialista, tendência trotskista militante, mais interessada nos confrontos sociais do que nos jogos institucionais que se desenrolavam nos plenários acarpetados das câmaras e assembléias. Em 1984-1985, um processo de grande envergadura tomaria corpo – a campanha das Diretas Já.13 A luta por eleições diretas imediatas para a presidência da república, quebrando a instituição das eleições indiretas, estabelecidas pela Ditadura através de ato de força, ainda em 1964, empolgou a sociedade, mesmo que, a princípio, tivesse sido recusada pelos conservadores e mesmo pelos políticos considerados realistas. O víeis anti-ditatorial, o caráter de massas, a participação das esquerdas na liderança do processo, onde se destacava o PT, levaram a que importantes setores da grande mídia, inclusive, se permitissem boicotá-la em toda uma primeira fase, rendendo-se, num momento seguinte, afinal, à evidência das multidões que participavam ativamente das concentrações e comícios, cada vez mais gigantescos14 . Para o PT a campanha foi de extraordinária importância. De um lado, porque o Partido a assumiu desde o início, engajando-se nela com grande decisão e entusiasmo. Assim, quando ela cresceu, e se tornou maciça, foi o PT que mais se beneficiou com os dividendos políticos daí 11 Os dados referidos, e os demais que o serão abaixo, salvo indicação em sentido contrário, foram extraídos de André Singer, 2001 12 Intrigas palacianas e jogadas jurídicas acabaram retirando de L. Brizola o controle da sigla histórica do Partido Trabalhista Brasileiro/PTB, refundado sob sua liderança em Lisboa, ainda em 1979. O nome ficou com Ivete Vargas, sobrinha de Getulio e líder política tradicional em São Paulo. Brizola, sem recursos, optou por atribuir ao partido que já se formara,liderado por ele, um novo nome, Partido Democrático Trabalhista/PDT. 13 A campanha começou de fato em novembro de 1983, quando houve o primeiro grande comício pelas Diretas-Já, no estádio do Pacaembu, sob o mote: “Presidente, quem escolhe é a gente”. 14 Em abril de 1984, cerca de 1,5 milhão de pessoas se reuniriam pelas Diretas-Já no Vale do Anhangabaú. 8 advindos, embora outros políticos e lideranças, mesmo aderindo num segundo momento, tenham também se projetado, ou consolidado sua projeção, através da campanha.15 No plano interno, a campanha das Diretas-Já, sintetizando os movimentos sociais e as lutas político-eleitorais, contribuiu para unificar as tendências do PT, colocando entre parênteses, ao menos temporariamente, possíveis dissenções e contradições que já se desenhavam entre os que priorizavam as lutas eleitorais, as reformas e as negociações, e os que entendiam que o primado deveria pertencer às lutas sociais, ao confronto e, no limite, à revolução. No conjunto, porém, fortaleceram-se no Partido as tendências mais radicais. E isto ficou manifesto quando da expulsão dos parlamentares petistas que, contrariando decisão partidária, votaram na chapa constituída por Tancredo Neves-José Sarney, no Colégio Eleitoral, depois da derrota política, no Congresso, da emenda que restabelecia as eleições diretas. Apesar do prestígio, e da notória militância, os deputados foram punidos por não haver cumprido o papel de braço parlamentar do Partido e dos movimentos sociais. Na seqüência, agora sob a liderança das correntes mais radicais da CUT, o PT se envolveria em reiteradas tentativas de desencadeamento de greves setoriais amplas e, mesmo, de greves gerais no país, destacando-se aí os trabalhadores da função pública e os vinculados a empresas estatais.16 Tiveram êxito controvertido, apesar da mobilização dos setores mais ativos, o que só evidenciou o declínio da grande vaga iniciada em fins dos anos 1970 com as grandes greves de São Bernardo.17 Entretanto, a partir de fins dos anos 1980, e daí para a frente, os dados pareciam ser outros, e outros ânimos começaram a prevalecer na sociedade. O neo-liberalismo, em escala internacional, ganhava força e intensidade. Nos EUA, R. Reagan, e suas políticas agressivas, substituíra Carter. Em aliança com M. Thatcher, retomava uma postura de ofensiva política, diplomática, militar. Na América Latina, o cerco à revolução sandinista exprimia uma reação dura às alternativas radicais. Elas teriam que se desdobrar para garantir 15 Casos, entre outros, de Ulysses Guimarães e de Tancredo Neves, políticos moderados, que se aproximaram dos movimentos populares durante a campanha. Leonel Brizola também consolidaria ainda mais popularidade e projeção, já alcançadas por sua surpreendente vitória nas eleições para o governo do Estado do Rio de Janeiro em 1982. Para uma interpretação da campanha como fator de unidade partidária, cf. Keck, 1991 16 Interessante registrar que houve aí, de certa forma, uma retomada das tradições anteriores a 1964, especialmente as que se firmaram na segunda metade dos anos 50 e primeira metade dos anos 60, quando as greves e movimentos de maior vulto eram protagonizadas pelos funcionários das empresas estatais, autarquias e afins. Houve quatro tentativas de greve geral no país, desencadeadas pela CUT: 1983, 1986, 1987 e 1989, com sucesso desigual, mas aglutinando milhões de trabalhadores. Com o tempo, transformaram-se, cada vez, em movimentos de resistência, de defesa de conquistas já alcançadas, do que ofensivas em busca de novas conquistas. 17 Os assalariados da função pública manteriam seus movimentos grevistas, principalmente certas categorias, como as da educação, saúde e previdência social, beneficiando-se do dispositivo constitucional que, não regulamentado, garantia a original e estranha instituição, única em escala mundial, das greves com garantia de salários. No entanto, estas greves que mobilizavam cada vez menos, não escaparam de uma curva de declínio, visível nos anos 90. 9 espaços no futuro imediato. Do outro lado do mundo, a URSS, afundada desde 1979 na guerra sem saída do Afganistão, dava sinais de esgotamento. A ascensão de M. Gorbatchev, no início, em 1985, se parecera um novo começo, um atestado de vitalidade, cedo se revelaria uma transição para o caos, uma deriva sem fim, colocando em questão os fundamentos considerados mais sólidos da alternativa socialista soviética, padrão geral do socialismo do século XX. Na Europa Ocidental, partidos e governos social-democratas pareciam impotentes diante da crítica e das pressões neoliberais, abandonando ou revendo para baixo os princípios e as políticas do Estado do Bem-Estar Social. Fora exemplar, deste ponto de vista, a reviravolta do líder socialista francês, F. Mitterand, cuja eleição suscitara tanto entusiasmo nos inícios dos anos 80. A virada iria se acentuando em fins dos anos 80, com a queda do Muro de Berlim, em 1989, a desagregação do socialismo na Europa Central, a crise do socialismo de bem-estar em Cuba, e, pouco depois, em 1991, para culminar, o surpreendente desmantelamento da antes considerada inexpugnável União Soviética. Uma vertigem. As esquerdas em todo o mundo, mesmo os setores não identificados com o socialismo realmente existente, passavam para uma posição de defensiva estratégica. No Brasil, e depois da morte súbita de Tancredo Neves, uma cruel ironia: uma das grandes lideranças políticas do período ditatorial, José Sarney, assumiu a presidência, como para marcar bem o caráter de transição pelo alto da ditadura para a democracia. O PT e a CUT estiveram na linha de frente das denúncias e dos protestos. O Plano Cruzado18, no entanto, e seu sucesso inicial, renderiam ampla popularidade a Sarney e a suas bases políticas. Depois, mesmo com a derrocada das ambições maiores do Plano, não foi mais possível, como referido, manter a onda social ofensiva que havia caracterizado a primeira metade dos anos 80 e cujo último ato, simbólico, fora a fundação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra/MST, em 1985. Enquanto isto, porém, o PT registrava crescentes sucessos na frente político-eleitoral. Em 1985, elegeu Maria Luiza Fontenelle, a primeira prefeita petista de uma grande capital, Fortaleza19 . No ano seguinte, nas eleições para a Constituinte, o PT dobrou sua bancada na Câmara de 18 Plano econômico concebido e executado pelo governo Sarney. No início, teve grande impacto, promovendo a queda da inflação e um processo notado de redistribuição de renda, suscitando grande entusiasmo e levando a popularidade de Sarney às alturas. Pouco tempo depois, porém, seria impotente para controlar efeitos que terminaram por inviabilizá- lo, retornando, em alta, a inflação, e o processo de desigualdades sociais, marca registrada da prosperidade econômica dos anos 70 sob a ditadura. 19 A administração de Fontenelle em Fortaleza, ainda muito dependente dos recursos federais e estaduais, controlados pelo Presidente Sarney e pelo Governador T. Jereissatti, e ainda dividida pelas contradições internas do PT, foi um desastre político. 10 Deputados, elegendo 16 deputados federais, com Lula obtendo uma consagradora votação, além de 40 deputados estaduais. No processo constituinte, a pequena bancada petista fez lembrar os deputados comunistas constituintes de 1946, compensando o pequeno número com uma presença ativa e eficaz, surpreendendo as forças de direita, dispersas num primeiro momento, até se organizarem no chamado Centrão. Juntamente com os demais deputados de esquerda, do PSB, do PC do B e do PDT, foi possível conferir à Constituição finalmente aprovada um caráter progressista, comprometida com o Estado de Bem Estar Social e com as concepções nacional-estatistas tradicionais entre as esquerdas brasileiras, consagrando juridicamente avanços que, apesar do ceticismo dos mais radicais de plantão, transformar-se-iam com o tempo em bandeiras, até hoje eixos de luta dos movimentos sociais populares. Surgiram dali, entre os deputados petistas, nomes que se destacariam nos anos 90, como José Genoíno, Vladimir Palmeira e José Dirceu, entre outros. No encerramento da década de 80, ocorreu uma outra grande campanha política no país: as primeiras eleições diretas para a presidência da República, afinal realizadas em 1989. Previstas pela Constituição aprovada em 1988, aguardadas com imensa expectativa, que teria agora condições de se realizar, superando as frustrações provocadas pela derrota da luta empreendida em 1984-1985 e concretizando aspirações reprimidas há décadas. Com efeito, a última vez que o povo brasileiro escolhera um presidente datava de 1960, quando da eleição de Jânio Quadros, ou seja, há quase 30 anos. As eleições, marcadas por manifestações e comícios grandiosos, debates entre os candidatos nas televisões, mobilizaram amplamente a sociedade. O PT lançou, naturalmente, seu líder de maior expressão, Lula, como candidato à presidência. Era uma espécie de anti-candidatura, mais para marcar posições do que para disputar efetivamente o posto máximo da República. De fato, as propostas tinham um caráter reformista-revolucionário20, ancoradas nas tradições nacionalestatistas mais radicais das esquerdas brasileiras. Previa-se a anulação da dívida externa, uma reforma agrária radical, o questionamento profundo das bases do modelo econômico imposto pela Ditadura, entre outras referências. Naquelas condições, dificilmente se poderia supor que amplas maiorias estivessem dispostas a sustentar a realização de um programa tão radical, nem era 20 O conceito fora cunhado por Carlos Nelson Coutinho, em meados dos anos 80. Procurava pertinentemente combater a separação radical entre reforma e revolução, mostrando o entrelaçamento que pode ocorrer, e freqüentemente ocorre, segundo as circunstâncias políticas e históricas, entre os dois termos. O autor também se destacaria por ser uma expressão do movimento entre as esquerdas pela ênfase nos valores democráticos não mais concebidos como meros “instrumentos” de “acúmulo de forças”. Cf. Coutinho, 1984 e 1994. 11 presumível que as circunstâncias internacionais e nacionais pudessem permitir tais aventuras, principalmente tendo-se em vista a experiência e os níveis de organização e de disposição demonstrados pelo PT. Assim, a campanha serviria mais para acumular forças, divulgar o programa, provocar discussões, constituir uma corrente de opinião de esquerda, além, é claro, de popularizar as lideranças do PT, Lula em especial, e o próprio partido. No outro extremo da cena política, despontou Fernando Collor. Abraçando as bandeiras neoliberais, e com grande capacidade de comunicação com as camadas populares da sociedade, aglutinaria rapidamente as direitas e as elites sociais. Entre Collor e Lula, a figura de Leonel Brizola, com propostas reformistas mais moderadas e tradição reconhecida no campo das esquerdas, parecia uma candidatura fadada a disputar com Collor o segundo turno das eleições.21 Entretanto, houve a surpresa. A capacidade de comunicação de Lula, o entusiasmo da militância do PT, entre outros fatores, contribuíram para fazê-lo superar, por pouco, a votação de Brizola, habilitando-se, assim, a disputar a presidência com Collor.22 A hipótese da vitória de Lula, e do programa nacional-estatista radical que ele então encarnava, alvoroçou e assustou as elites sociais e políticas. Mobilizaram-se como um monolito em torno de Collor, embora muitos o desprezassem. Utilizaram todos os meios, inclusive a difamação pessoal, para afastar o fantasma da hipótese de reformas radicais. Por outro lado, Lula e setores do PT também pareciam inquietos com a eventual vitória, o que ficou visível na performance do candidato no último debate com Collor. A derrota de Lula, no entanto, não o desmoralizou.23 Ao contrário. Consolidou-se na posição de principal líder das oposições. E não perderia o lugar, apesar de muitos percalços, até conquistar a presidência, em 2002. Em 1991, o PT realizou, afinal, seu primeiro congresso nacional, na simbólica São Bernardo.24 Manteve vagos compromissos com o socialismo, que eram os seus desde a fundação, 21 A Constituição de 1988 previra a instauração do segundo turno nas eleições presidenciais, sempre e quando um candidato não alcançasse 50% mais um dos votos num primeiro turno de votação. 22 No primeiro turno, Lula recebeu um surpreendente votação: 11.622.673, 17,1% dos votos, superando por pouco L. Brizola. 23 Lula alcançou no segundo turno um pouco mais de 31 milhões de votos, 47% dos votos válidos. Uma bela retrospectiva da campanha pode ser vista em Singer, 1990. Cf. igualmente, para a recuperação da atmosfera da época, Carvalho e alii, 1989. 24 O que não significa dizer que o PT tivesse uma dinâmica anti-democrática. Ao contrário. Para os padrões brasileiros, e mesmo internacionais, o partido foi marcado, principalmente em sua primeira década, por intensos debates em todas as instâncias, fruto da valorização dos princípios democráticos e do relativo equilíbrio que existia entre tendências diversas. Tais debates marcavam os Encontros Nacionais que, preparados desde as bases, realizavam-se quase todos os anos (7 Encontros Anuais de 1982 a 1990). 12 mas derrotou todos os que desejavam definições mais precisas, seja na defesa do socialismo realmente existente que, literalmente, estava deixando de existir, seja na condenação de aspectos considerados negativos da experiência do socialismo do século XX: inexistência de liberdades políticas, críticas à burocratização do sistema, ausência de compromissos internacionalistas, ou/e de auxílio ao processo das revoluções sociais em escala mundial, etc.25 Por outro lado, reflexões que procuravam incorporar inovações então discutidas em várias partes do mundo também não foram aprovadas. Mantinha-se uma certa ambigüidade em relação ao socialismo soviético e afins. De um lado, e desde o início, o PT afirmara sua autonomia, colocando-se como o partido do socialismo do século XXI. De outro lado, no entanto, não deixou de manter relações relativamente intensas com os Estados socialistas, particularmente com a ditadura fidelista em Cuba.26 Assim, o acordo em relação ao socialismo permaneceria como sempre fora: suficientemente vago para abrigar todas as tendências – a experiência concreta, dizia-se, é que iria apontar os rumos, como se dela pudesse, quase que espontaneamente, emergir definições e conceitos esclarecedores.27 O Congresso foi um encontro de consolidação, quase nada aduzindo em termos do Programa defendido durante a Campanha de 1989. No entanto, seria de registrar, e o fato começou a ser apontado desde aquela época, um processo de centralização e de enrijecimento das instâncias partidárias.28 De um lado, para fazer frente às organizações revolucionárias,29 que potencializavam sua influência através da ação concertada de seus militantes e quadros, formou-se, desde os anos 1980, um agrupamento, dirigido pelas principais lideranças sindicais, para manter o controle do Partido: a chamada Articulação, encabeçada pelo próprio Lula. Politicamente moderada, alérgica a dogmas de qualquer natureza, vocacionada a exercer o poder interno, polarizada pelas personalidades de seus chefes, pouco afeitos a debates políticoteóricos, sem princípios muito claros, salvo controlar o poder, mas adeptos de negociações, e com grande sintonia com as bases populares do Partido, a Articulação cedo se impôs como centro 25 Varias propostas no sentido de críticas ao socialismo realmente existente, inclusive criticando a ditadura política em Cuba, foram derrubadas e, por meio de manobras, nem chegaram a ser consideradas pelo Plenário. 26 Quando da derrubada do Muro de Berlim, em 1989, foi surpreendida uma delegação do PT em Berlim Oriental, participando de um curso de formação política (sic). Não faltavam na época, ao lado de declarações críticas ao modelo soviético socialista, outras vozes, e respeitáveis, que ressaltavam “os avanços” do socialismo – educação e saúde públicas, políticas igualitaristas, resistência às ofensivas “imperialistas”, etc. 27 As reflexões sobre as formulações, e as evoluções políticas do PT baseiam-se em Partido dos Trabalhadores, 1998. 28 O processo de burocratização, ou seus perigos, começaram, cedo, a serem criticados. Cf. o depoimento de F. Fernandes in Azevedo e Maués, 1997, pp 238-240; e Sader, 1986 29 No momento da fundação do PT, as organizações revolucionárias continuavam imaginando-se como vanguardas, no sentido leninista do termo, concebendo o Partido como uma frente política, um campo de influência e de recrutamento, destinado a ser dirigido politicamente por elas. 13 dirigente. Por ela, e desde então, teriam que passar as grandes decisões que orientariam a vida partidária e a ação do PT na sociedade. De outro lado, as organizações revolucionárias, apesar delas mesmas, e contrariando prognósticos e expectativas, foram sendo fagocitadas no interior do partido, aspiradas pelas pugnas internas e pelas disputas político-eleitorais, quando não pelos cargos que se multiplicavam e que urgia ocupar. Em suma, institucionalizavam-se. A maioria desapareceu quase sem deixar vestígios30 . Assim, embora o PT tivesse participado ativamente, e mesmo, em certo sentido, liderado, em 1992, a campanha pelo impeachment de Fernando Collor, empunhando com grande entusiasmo uma bandeira que lhe fora cara desde a fundação: a luta pela defesa da moralidade e da ética no trato da coisa pública, era visível um processo de acomodamento, pervasivo, que se manifestava pela importância crescente das preocupações institucionais e político-eleitorais. À conjuntura das grandes lutas sociais dos anos 1980, sobretudo de sua primeira metade, sucedia-se uma outra, marcada na sociedade por um ânimo conciliador, moderado, reformista. O PT, cada vez mais concentrado na busca do próprio fortalecimento institucional, polarizado pelas disputas eleitorais que se sucediam em todas as instâncias da sociedade, via-se sugado por esta dinâmica, que ele não havia previsto, e parecia não controlar. Os militantes amadores, que tinham sido a marca registrada do Partido em seus inícios escasseavam a olhos vistos, substituídos por funcionários, assessores, executivos de todos os tipos, do próprio Partido ou membros de cargos/funções públicas,vinculados às administrações que se constituíam, e se multiplicavam, em função das vitórias eleitorais. De fato, em 1988, o PT conquistara as prefeituras de São Paulo (Luiza Erundina), de Santos (Telma de Souza), de Porto Alegre (Olívio Dutra), e de Vitória, entre outras 33 cidades, iniciando ali um ciclo longo de governos municipais.31 Dois anos depois, em 1990, o PT elegeria o primeiro senador, 35 deputados federais e 81 deputados estaduais. Segmentos de extrema-esquerda perceberam a deriva, a concentração considerada excessiva nas disputas eleitorais e a denunciaram com força. O PT, argumentavam, transformava-se: de um partido de reformadores radicais, ou de revolucionários, em um partido eleitoralista, de gestores das Administrações Públicas e do sistema capitalista. Aonde aquilo iria parar? Mas não tiveram 30 Foi o caso, entre outras, da Ação Libertadora Nacional/ALN, da Ação Popular Marxista-Leninista/AP-ML, da Ala Vermelha do PC do B/ALA do PcdoB, etc. 31 O ciclo, em Porto Alegre, foi o mais longo, e se prolongaria por quatro eleições, só se encerrando (provisoriamente?) nas rercentes eleições de 2004. Para as experiências das administrações municipais petistas, cf. Bittar, 1992; Magalhães e alii, 1999; Genro e Souza, 1998 14 força para reverter a corrente e acabaram expulsos: foram os casos do Partido da Causa Operária/PCO, já em 1990, e da Convergência Socialista/CS , em 1992.32 Os anos 1990 foram assim anos de crescimento e de estabilização do PT. Em 1992, perderia o controle da administração da cidade de São Paulo, de grande importância, mas ganhariam as de Belém, de Belo Horizonte, de Goiânia, de Rio Branco e de mais 49 cidades. Sofreria, é verdade, mais duas derrotas nas disputas presidenciais, agora para Fernando Henrique Cardoso. Mas Lula recebera, em 1994, um pouco mais de 17 milhões de votos, 27% dos votos válidos. Neste ano, o Partido elegeu 4 senadores, 50 deputados federais e 92 deputados estaduais, além de 2 governadores, no Distrito Federal e no Espírito Santo. Nas municipais de 1996, o PT venceria em 111 cidades, confirmando-se como partido hegemônico em Porto Alegre, ganhando a prefeitura de Belém, além de aparecer com candidatos fortes num sem número de importantes centros urbanos, uma verdadeira cornucópia de cargos e de responsabilidades administrativas. Em 1998, nova derrota nas eleições presidenciais, mas, além de Lula ter recebido agora 31,7% dos votos válidos, houve resultados convincentes numa série de outras posições, como as vitórias para os governos do Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Acre. Elegeram-se ainda 3 senadores, 59 deputados federais e 90 estaduais. Crescendo, o PT tornara-se largamente dominante no âmbito das esquerdas, passando, cada vez mais, a polarizar o PDT, de Brizola;33 o PSB, de Arraes; e do PC do B, objeto de um processo de aggiornamento, que o levara a superar, sem renegar, o passado stalinista. Começaram, é certo, a aparecerem vozes dissonantes. Houve as denúncias de Paulo de Tarso Venceslau, ainda em 1993. Experimentado militante da ALN e do PT, amigo íntimo de Lula, revelara evidências incontestáveis sobre métodos corruptos e corruptores adotados pelo partido em São Paulo, envolvendo pessoas próximas de Lula. Demitido de suas funções na Prefeitura petista de São José dos Campos, em setembro daquele ano, Paulo de Tarso iniciaria um via-crucis em defesa do esclarecimento de suas denúncias. O processo se arrastou até 1998, quando, apesar de absolvido por uma Comissão de Ética partidária, Paulo de Tarso acabou sendo expulso do Partido, por exigência de Lula, num processo que fez lembrar o que havia de pior nas tradições do socialismo 32 A CS converteu-se, mais tarde, em 1994, no Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado/PSTU, organização política revolucionária que se tem mantido desde então na contra-corrente, tentando radicalizar o debate e a ação dos movimentos sociais. 33 Em 1998, Lula teve como companheiro de chapa o presidente do PDT, Leonel Brizola, marcando, por parte deste último, o reconhecimento da liderança de Lula e do PT no âmbito das esquerdas brasileiras. 15 autoritário. As esquerdas petistas de então alegaram que era preciso fazer calar o denunciante, por inoportuno, consideradas as exigências da conjuntura eleitoral de 1998.34 Em 1995, dois anos depois das denúncias formuladas por Paulo de Tarso, houve outras, desta feita formuladas em pleno X Encontro Nacional do PT, quando César Benjamin, importante assessor de Lula na campanha de 1994, apontou publicamente um processo de corrupção generalizada no PT, envolvido em jogos escusos, abandonando princípios éticos, ainda formalmente venerados, mas já desrespeitados alegremente na prática. Vaiado e ameaçado de agressão, o denunciante preferiu sair do Partido antes de sofrer um processo de expulsão. Muitos já admitiam que germinavam verdadeiras máfias à sombra de prefeituras petistas do interior de São Paulo, fazendo todo o tipo de negócios e de negociatas, como licitações fraudadas, extorsões e propinas de diversos tipos, freqüentemente ligadas às concessões de serviços públicos (coleta de lixo, linhas de transporte urbano, etc.) para carrear finanças para o Partido. Alegava-se que era um mal inevitável, um tributo ao realismo político, a submissão a leis de bronze do jogo pesado da grande política, onde todos eram obrigados a fazer as mesmas coisas, sob pena de incorrer em atitudes ingênuas e amadoristas, fadadas à derrota política. Assim, as denúncias e outras restrições foram como pedras leves arremessadas. Abriam pequenos círculos, logo absorvidos pelo largo lago em que se transformara o PT, convertido em poderosa máquina partidária, desde 1995. Desempenharia papel decisivo neste sentido o deputado José Dirceu, eleito então presidente do Partido. Também ele antigo militante da ALN, notabilizara-se por ocasião de sua atuação na CPI que levara ao impeachment de Collor. Agora, exercendo seus conhecidos talentos de organizador, ao lado da liderança de Lula, conduziriam, ambos, o PT, finalmente, à vitória nas eleições presidenciais de 2002. O que o PT de 2002 tinha a ver com o PT dos inícios dos anos 1980? Um pouco mais de 20 anos haviam se passado. No itinerário, muitas metamorfoses. Das periferias industriais de São Paulo, estendera-se a todo o país, constituindo em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul, núcleos ainda mais fortes do que o formado originalmente em São Paulo. De um partido pequeno, transformara-se numa poderosa máquina nacional.35 34 Escrevi em 1997 artigo detalhando o processo,: A crônica de um escândalo anunciado, publicado em página inteira pelo Estado de São Paulo, em 13 de julho de 1997, p D3, antes que a expulsão se consumasse. O artigo suscitou como resposta o mais completo silêncio. 35 Em 2001, o PT anunciava ter cerca de 500 mil filiados, organizados em 4.098 municípios, governava três estados e 187 cidades, entre elas seis das mais importantes do país, cf. Singer, 2001 16 De partido de militantes a partido de funcionários. Do protagonismo dos operários ao papel cada vez mais preponderante das classes médias assalariadas, particularmente ao dos assalariados da função pública.36 De um conglomerado de tendências passara à firme hegemonia de uma delas, a Articulação. Dos compromissos com os movimentos sociais, à dinâmica absorvente dos calendários político-eleitorais. De um partido de líderes sociais a um partido de parlamentares, de prefeitos, de executivos, de assessores.37 Do amadorismo romântico das oposições utópicas, ao profissionalismo da grande política comprometida com as possibilidades. Da revolução à reforma, à administração, à gestão da República. Do nacional-estatismo radical, com perspectivas socialistas, à moderação dos propósitos, ainda que mantendo laços com a retórica de confronto. Não se quer afirmar que estas metamorfoses tivessem se realizado de forma integral. Que as características presentes na gênese do PT tivessem se dissolvido no ar. Mas é como se as novas referências relacionadas acima estivessem agora predominando, conferindo à dinâmica do Partido um rumo distinto, diferentes e imprevistos horizontes. Eram elas, de fato, que davam o tom e a cor do Partido.38 E foi este Partido – emergindo de dentro do anterior – que se preparou para o triunfo eleitoral de 2002. O triunfo A campanha de 2002 ocorreu em condições particularmente favoráveis ao PT. Havia o desgaste dos dois mandatos de FHC. Apesar dos êxitos do Plano Real, efetivos, e ainda proclamados, era visível a erosão da popularidade do presidente, de suas políticas e de suas bases de sustentação. Além disso, era claro que não nutria uma simpatia particular pelo candidato do próprio partido, PSDB, José Serra. Ao contrário, às vezes, parecia comprazer-se com a hipótese de passar a faixa presidencial a Lula, que seria o “primeiro presidente operário da América Latina”. Desde o início da campanha, fiados na idéia de que Lula era sempre um candidato forte, mas destinado a perder, mesmo que no segundo turno, os demais candidatos subestimaram sua força, 36 Leoncio Martins Rodrigues flagrou o processo em estudo sobre os partidos políticos brasileiros, cf. Rodrigues, 2002 37 Cf. depoimento de Vladimir Palmeira in Azevedo e Maués, 1997, pp. 319 e 320 38 As metamorfoses no interior do PT tem suscitado estudos de diversos ângulos, cf. Furtado, 1996. De certo modo, a análise de certas contradições do partido já estavam, no contexto das circunstâncias da época, analisadas por Keck, 1991. Também as analisei em artigo publicado em 2005. 17 atestada pelas pesquisas de opinião pública, e passaram a trocar entre si fogo pesado.39 Enquanto se enfraqueciam mutuamente, crescia a popularidade de Lula. Mas o candidato do PT não apenas se beneficiou dos erros dos adversários e das circunstâncias favoráveis da conjuntura. O que fez sua força foi uma série de providências e decisões que o tornariam imbatível, pelo menos do ponto de vista eleitoral que, no caso, era o que contava. O PT preparou-se profissionalmente para a campanha de 2002. Na condição de grande partido, que já era, arrecadou finanças consideráveis. Em seguida, moderou o discurso político, um processo que já vinha se desdobrando, desde a campanha de 1994, mas que alcançaria, em 2002, com a Carta aos Brasileiros,40 um novo patamar. Finalmente, articulou assessoria de marketing que viabilizaria a proposta do candidato através dos meios de comunicação, além de tratar do seu visual, despindo Lula de quaisquer vestígios que o pudessem assimilar a uma liderança radical – o lema Lulinha paz e amor exprimiu bem esta mudança, sobre a qual, aliás, o próprio candidato referia-se sem constrangimento aparente.41 A vitória foi um coroamento. Finalmente, depois de três campanhas frustradas, a conquista da Presidência da República pelo voto, o triunfo. Lula e o PT chegavam lá.42 A euforia tomou o país, empolgando, principalmente, é claro, os eleitores de Lula e do PT, que se consagrou como o maior partido no Congresso Nacional.43 No começo, entretanto, foi necessário enfrentar uma atmosfera pesada de pressões e de desconfianças, que ameaçava descontroles do câmbio e retomada do processo inflacionário. Mas o novo governo, constituído por Lula, deu as garantias necessárias, cumprindo, estritamente, os compromissos anunciados na campanha, além de se comprometer a não empreender nenhuma caça às bruxas em relação aos governos de FHC. Posteriormente, no entanto, para desespero e amargura dos setores mais radicais, principalmente os situados entre os funcionários públicos e das empresas estatais, ao invés de uma 39 O exemplo mais emblemático deste feroz tiroteio foi o escândalo da Lunus, que envolveu a candidata Roseana Sarney, quando milhões de reais, não declarados, e em espécie, apareceram vinculados ao financiamento de sua candidatura. Os maços do dinheiro, devidamente fotografado, foram amplamente divulgados por todos os meios de comunicação. 40 Documento político básico da campanha de 2002, publicado ainda antes das eleições , e que revisava numa perspectiva moderada os objetivos, as metas e o programa de governo. Essencialmente, comprometia-se ali o candidato a respeitar os contratos firmados pelo governo anterior, sinalizando uma proposta de estabilidade e de paz social e de não-reversão das principais políticas adotadas por FHC, entre as quais as privatizações de empresas estatais. 41 Cf. o filme Entreatos, de João Moreira Salles, onde Lula enfatiza a mudança de retórica e de objetivos programáticos. 42 Lula foi eleito, no segundo turno, batendo José Serra, do PSDB, com 52,4 milhões de votos. O PT elegeu a maior bancada do Congresso Nacional – 91 deputados federais, projetando a figura do parlamentar mais votado do país, o senador Aluízio Mercadante, com cerca de 10,5 mlhões de votos. 43 Cf. Sader, 2003. 18 ampla agenda reformista, o governo limitou-se a propor as reformas já enviadas à consideração do Congresso por FHC (reformas da previdência e tributária). Na saúde e na educação, setores considerados prioritários pela tradição nacional-estatista, não houve nenhuma iniciativa importante, decepcionando expectativas e esperanças. O ministro da Educação, Christovam Buarque, ex-reitor da Universidade de Brasília e ex-governador de Brasília, experiente na área, e de quem se esperavam propostas ousadas, nada fez, ou propôs, ou realizou de significativo, além de formular sugestões como se ainda estivesse na Oposição.44 Foi de uma inapetência emblemática, mas não isolada. Parecia que o PT e o Governo tivessem assumido o poder sem um programa, sem propostas concretas, que reformassem o país numa direção determinada, ou em qualquer direção. Prevalecia, na maioria das áreas, com a honrosa exceção da política externa, uma perspectiva de gestão – sem imaginação, nem audácia. A base política no Congresso era assegurada por uma estranha aliança com partidos fisiológicos ou francamente conservadores (PTB, PL e PP).45 Muito timidamente, no início, com mais agressividade em seguida, Lula e o PT passariam a ser acusados de traição por pensadores, setores e organizações políticas mais radicais, e também por políticos como Leonel Brizola, que não se conformavam com o abandono do programa e das tradições nacional-estatistas, compartilhadas em campanhas anteriores.46 A partir de 2005 o governo seria engolfado por escândalos em série, despejados por um de seus melhores aliados no Congresso, Roberto Jefferson, líder do PTB, que acusava o governo de pagar propinas mensais a dezenas de deputados em troca de apoio e de votos – o mensalão. A fúria do moralismo udenista, enterrada em 1964, pareceu retomar direito de cidade, e tomou conta da República. Deu-se uma notável inversão de temperatura e pressão. O PT, que, embora já comprometido por denúncias várias,47 ainda mantinha, alta, a bandeira da ética na política, insistindo em sua condição de partido de mãos limpas, surgiu envolvido num mar de lama de negociatas,compras e vendas de votos, uma mixórdia inimaginável. Por outro lado, partidos conservadores e moderados, notórios por suas práticas corruptoras e corruptas, apareceram em cena 44 Depois de um ano, Cristóvão foi demitido do cargo, melancolicamente. Uma proposta de reforma universitária, formulada por Tarso Genro, só seria proposta bem mais tarde, em 2005. Nem chegou, porém, a ser discutida no Congresso Nacional, em virtude de razões que passarão a ser apresentadas e discutidas. 45 Cf. Aarão Reis, Daniel. 2005 46 Em 2004, houve a perda da Prefeitura da cidade de São Paulo (derrota de Martha Suplicy, eleita em 2000, e que tentava a reeleição), e de outras importantes cidades do Estado de São Paulo ( Campinas, Ribeirão Preto), mas o PT demonstraria, ainda assim, imprevista vitalidade, reelegendo o prefeito de Belo Horizonte, recuperando sua primeira prefeitura, a de Fortaleza, e aumentando o número de prefeitos de 187 para 411. Nas circunstâncias, um inegável êxito, embora boa parte destas cidades não fosse de grande expressão. Mas o Partido sobrevivera ao primeiro grande teste eleitoral governando o país. 47 Além das referidas acima que, apesar de sua gravidade, alcançaram pouca repercussão, mencione-se o escândalo Valdomiro Diniz, asssessor direto de José Dirceu, chefe da Casa Civil do Governo, flagrado em tráficos escusos com bicheiros do Rio de Janeiro já em 2004. 19 como vestais da política. Tradicionais políticos, envolvidos em todos os tráficos, apareceram como se honrados e impolutos homens públicos fossem, travestidos de Catões. A grande mídia, articulando-se, articulada, desencadeou uma campanha que fez lembrar a protagonizada contra Getulio Vargas, levando-o ao suicídio, em 1954. Formou-se feroz e estranha aliança, onde se irmanaram direitas iracundas e rançosas, liberais honestíssimos, esquerdistas frustrados com o desempenho do governo e de Lula48, em particular. Jornalistas, políticos, empresários, formadores de opinião, todos brandindo a honestidade no trato da coisa pública como valor supremo, como se na terra de Macunaíma fosse um inusitado acontecimento o malbarato dos dinheiros públicos.49 Formaram-se Comissões Parlamentares de Inquérito/CPIs que se transformaram em grandes circos romanos eletrônicos, palcos iluminadíssimos, estimulando a delação premiada, mostrando as entranhas pavorosas da República, num espetáculo que fazia as delícias das virtuosas classes médias, e todos queriam ali aparecer, denunciando, espumando virtudes, condenando vícios, expondo a lama execrável e insuportável de sindicalistas e homens de origem popular que haviam ousado fazer o que os maiorais da república sempre haviam feito, mas com a descrição que a experiência ensina a observar. Um espetáculo de ódio de classe que há muito não se via, jorrava agora com a força das fúrias represadas e dos sentimentos recalcados. O PT e Lula desgastaram-se enormemente. Em meados de 2005, as pesquisas apontavam um tal decréscimo no patamar de popularidade do Presidente que o impeachment, que chegara, em certo momento, a ser cogitado pelas oposições, foi deixado de lado, ao menos temporariamente. Ninguém imaginava que Lula, naquelas condições, fosse ousar a reeleição. Se o tentasse, seria massacrado. Mais valia, ao invés de derrubá-lo, deixá-lo apodrecer. Mas ocorreu, mais uma vez, o improvável. Já no início de 2006, a surpresa. A popularidade de Lula recuperava níveis perdidos, subia, e não parava de subir. Por incrível que pareça, o mesmo acontecia com o PT, embora em escala não tão marcante. 48 No processo, formou-se, um novo partido soit-disant de extrema-esquerda, o Partido Socialismo e Liberdade, o PSOL, mas onde se aglutinaram, em curiosa mescla, organizações ultra-radicais, nacionalistas revolucionários e políticos moderados, sob o denominador comum da virtude na política, e da honestidade no trato da coisa pública. 49 Pesquisas recentes, realizadas pelo DataFolha, constataram que 83% da população consideram que Lula tem responsabilidade nos casos de corrupção e que 75% consideram que há corrupção do Governo (cf. O Globo, 24/09/06, p. 9). Ou seja, se a popularidade de Lula não caiu, apesar disso, não quer dizer que a população seja corrupta ou cínica, como querem alguns desencantados, mas porque outros critérios estão sendo considerados mais relevantes, como veremos a seguir, inclusive porque a corrupção é vista como algo pervasivo,contaminando todos os partidos, particularmente aqueles onde se encontram os principais acusadores de Lula e do PT. 20 Para a compreensão do fenômeno, é preciso considerar, de forma combinada, um conjunto de fatores. Na cúpula do governo, Lula, eximindo-se de responsabilidades, sacrificou, em escândalos sucessivos, os ministros mais importantes: José Dirceu e Antonio Palocci, reconstituindo um núcleo coerente de poder. No mesmo sentido, o PT afastou importantes lideranças, inclusive seu presidente, José Genoíno. No Congresso, acionando linhas de defesa corporativas, e também porque eram raríssimos os que não tinham recorrido ao famoso caixa 2, 50 todos escaparam, mas caíram José Dirceu e Roberto Jefferson, eleitos bodes expiatórios de um mal-feito de que poucos, muito poucos, poderiam ser inocentados. Um pouco mais tarde, em outubro de 2005, o PT, em pleito direto, e revelando já aí uma vitalidade insuspeitada, elegeria uma nova direção política, encabeçada por Ricardo Berzoini, fiel escudeiro de Lula e membro da Articulação, que mantinha assim as rédeas do Partido. Por outro lado, numa dimensão maior, e passada a fase mais agressiva em que lavrou o denuncismo moralista, contribuíram decisivamente para a recuperação política de Lula e do PT os efeitos de certas políticas públicas com grande impacto social: o Bolsa-Família, o crédito consignado, o aumento do salário mínimo em proporção maior que a inflação, a diminuição dos impostos sobre os gêneros da chamada cesta básica e também dos que incidiam sobre materiais de construção (cimento). Além disso, é preciso considerar a curva ascendente do emprego, formal e informal,51 propiciado pela retomada, embora modesta, do desenvolvimento econômico, e as políticas de estímulo e de financiamento, adotadas nas áreas de cultura e da ciência e tecnologia, atenuando críticas e reivindicações das comunidades envolvidas. Sem ter aplicado um programa coerente de reformas sociais, estas políticas públicas, em seu conjunto, haviam provocado, nas condições do país, importante redistribuição da renda nacional. Assim, segundo Marcelo Néri, chefe do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas/FGV, que preparou estudo específico, foi como se o país tivesse conhecido, ao longo do governo Lula, uma espécie de segundo Plano Real. Com efeito, o primeiro Plano Real, de acordo 50 Expediente através do qual os candidatos driblam a legislação financiando as campanhas com recursos não declarados (os declarados, sempre subestimados, constituem o caixa 1, ou caixa legal). A imensa maioria – de todos os partidos - , faz uso do expediente, que se encontra tão disseminado que o professor de Comunicação da Universidade de São Paulo, Guadêncio Torquato, recentemente, permitiu-se dizer que “o caixa 2 faz parte do DNA da cultura política brasileira”. In O Globo, Rio de Janeiro, 24/09/2006, p. 4 51 Os dados da Relação Anual de Informações Sociais/RAIS, publicados em 2006, atestam elevação do salário médio dos trabalhadores e redução da disparidade de renda entre homens e mulheres. Ao mesmo tempo, revelam que, em 2005, teria havido um crescimento de 5,83% de empregados com carteira assinada, segundo melhor desempenho em vinte anos da série histórica do RAIS. Entre janeiro de 2003 e agosto de 2006 (período do governo Lula), teriam sido abertas 5,762 milhões de vagas, muito abaixo dos 10 milhões de empregos prometidos na campanha eleitoral, mas expressivo resultado nas condições brasileiras, considerados os últimos anos. Cf. O Globo, 28/09/06, p. 29 21 com os dados, teria reduzido a miséria social em 18,47%, enquanto as políticas empreendidas pelo Governo Lula, acima referidas, teriam provocado uma redução de 19,18%, ou seja, em número absolutos, cerca de 8,6 milhões de pessoas teriam deixado o universo dos miseráveis no período entre 2003-2005.52 Contudo, nem só de pães vivem os seres humanos. Seria impossível deixar de sublinhar também, ou principalmente, os ganhos simbólicos auferidos pelas camadas intermediárias e baixas da sociedade com a eleição de Lula. Algo que está para além da ascensão de milhares de lideranças populares que passaram a fazer parte de dispositivos de poder, para além de benesses e vantagens materiais imediatas. Reconhecidas por Lula, enaltecidas através de sua notável capacidade de comunicação, multidões passaram a ver nele um índice de sucesso próprio, a se reconhecer nele como expressão de conquistas longamente aneladas. Assim, constituíram-se linhas de resistência, garantindo autonomia de avaliação e decisão para amplas camadas, inclusive das próprias classes médias, que passaram a relativizar o denuncismo moralista da grande mídia, a perceber suas contradições, sua fúria seletiva, sua irrelevância num contexto maior.53 Contra estas linhas de resistência tem quebrado os dentes a aliança entre as direitas e segmentos de extrema esquerda, que insistem sobretudo nos defeitos e vícios morais e éticos de Lula e do PT. Às vésperas das eleições, um novo escândalo, envolvendo compra de dossiers que, supostamente, comprometeriam o prefeito José Serra, candidato do PSDB, e dado como vitorioso na disputa pelo governo do Estado de São Paulo, voltou a evidenciar o papel das máfias que se originaram do PT de São Paulo – sua audácia, autonomia e estupidez. Mais uma vez, como em 2005, avolumou-se o denuncismo moralista, exacerbado, avassalador. Os meios de comunicação, a imprensa escrita sobretudo, não mediram mãos, dedicando imensos espaços às denúncias, tratadas de forma grosseiramente unilateral.54 Seus objetivos, 52 Cf. matéria detalhada publicada pelo insuspeito O Globo, de 23 de setembro de 2006 (p. 31). Os resultados da Pesquisa Nacional por amostra de domicílio/PNAD, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/IBGE, referente a 2005, e publicada em 2006, têm sido, por óbvias razões, abundantemente citados por Lula e o PT na campanha eleitoral deste ano. 53 Em 2005, por ocasião do plebiscito sobre o direito de possuir armas, já a presumida capacidade da grande mídia moldar as opiniões na sociedade havia sido rudemente golpeada. Foi então amplamente vencida a posição defendida, quase sem falhas, pelos principais meios de comunicação, contrários, como se sabe, ao direito, sob certas condições, de portar armas – garantido pela atual legislação -, que foi, afinal, mantido. 54 Destacaram-se O Globo e a Folha de São Paulo, perdendo seus editores e proprietários as referências que, minimamente, devem ser respeitadas por uma mídia que se queira isenta e objetiva. 22 embora esbarrando no senso crítico, subestimado pelas elites, mas real, das camadas beneficiadas material e simbolicamente pelas realizações de Lula e de seu governo, não deixaram de ser alcançados,ao menos em parte. As eleições de 2006 Com efeito, os resultados das eleições realizadas em 1 de outubro de 2006 impuseram a necessidade de um segundo turno para o pleito presidencial, contrariando as expectativas otimistas dos petistas e do próprio Lula. O presidente teve um pouco mais de 46.500 mil votos, 48,6% do total de votos válidos. Geraldo Alkmin, do PSDB, alcançou quase 40 milhões de sufrágios, 41,63% dos votos. Os outros dois candidatos de maior visibilidade, Heloísa Helena, do PSOL, e Cristovam Buarque, do PDT, alcançaram, juntos, 9,50%.55 Há que se considerar que 23,78% dos eleitores abstiveram-se, ou preferiram o voto em branco, ou nulo.56 A distância entre Lula e Alkmin era considerável, mas a partida não poderia ser, nem foi, dada como ganha. Como dizem os especialistas e estudiosos dos processos eleitorais, eleições de segundo turno são, sempre, outras eleições, sobretudo se a diferença entre o primeiro e o segundo colocados é inferior a 10% dos votos, ou/e se não houver possibilidade de prever com grande margem de acerto a migração de votos dados a outros candidatos. Ora, as primeiras avaliações aferidas por pesquisas indicaram que os votos de Heloísa Helena e Cristovam Buarque, embora muitos os analisem como de esquerda , não migrariam necessariamente para Lula.57 Por outro lado, havia um imenso contingente eleitoral que não exercera o direito do voto, ou votara branco ou nulo, e que poderia ser atraído pelo segundo turno, sobretudo se a polarização tendesse a se acirrar, o que se anunciava como provável. Neste caso, para onde iriam estes votos? 55 Resultados oficiais divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral/TSE, in O Globo, p. 1, 2/10/2006. 56 Houve, segundo as apurações divulgadas pelo Tribunal Superior Eleitoral/TSE 20.642.265 abstenções (16,76%), 5.845.429 votos nulos (4,75%) e 2.800.313 votos em branco (2,27%). Cf. in O Globo, p. 4, 2/10/2006 57 Pesquisa DataFolha, realizada em 29-30 de setembro de 2006, às vésperas do primeiro turno, indicava que 53% dos eleitores de Heloísa Helena estariam dispostos a votar em Alckmin num eventual segundo turno, e apenas 29% em Lula. Outros 15% anulariam o voto, permanecendo indecisos 3%. Os votos de Cristovam, segundo a mesma pesquisa, tenderiam a ir majoritariamente também para Alckmin (52%), distribuindo-se assim os restantes: Lula, 26%; nulos, 18%; e indecisos, 4%. Cf. in O Globo, p. 2, Coluna Tereza Cruvinel, 3/10/2006. Claro, no contexto da campanha do segundo turno, estes dados sempre são passíveis de alteração, sem falar no questionamento que a pesquisa pode suscitar, dada a parcialidade com que têm se comportado a grande mídia escrita, particularmente a Folha de São Paulo e O Globo. 23 Tudo parecia depender da qualidade e da adequação de cada campanha no segundo turno, das alianças que se realizassem, dos debates que se travassem entre Lula e Alckmin, e de eventuais fatos novos, que pudessem alterar o curso normal do processo eleitoral. Nas eleições parlamentares e para governadores, o PT demonstrou notável e surpreendente vitalidade: elegeu 83 deputados federais (segunda maior bancada, atrás apenas da do PMDB, com 89 deputados eleitos), 2 senadores e também 4 governadores no primeiro turno (Bahia, Acre, Piauí e Sergipe).58 O Partido disputaria ainda o segundo turno em mais dois estados (Rio Grande do Sul e Pará; perdeu-as, mas com votações significativas), sem falar em expressivas votações, embora minoritárias, colhidas em outros Estados (Pernambuco, Rio de Janeiro, Minas Gerais, entre outros). Em suma, no primeiro turno, não se concretizaram as previsões catastróficas de que o PT era um partido morto, destinado ao museu da história republicana. Considerando-se as circunstâncias que foram as suas ao longo dos anos de 2005-2006, acossado pelas direitas e pelos segmentos de extrema esquerda com as acusações, já referidas, de desvios morais e éticos, não poucos previam o fim de um ciclo , o do PT e o de Lula. Não foi o que aconteceu. Por outro lado, vale registrar que se fortaleceram tendências alternativas no interior do PT, não comprometidas com as crises que abalaram o Partido, que levaram de roldão figuras tradicionalmente vinculadas à Articulação (Dirceu, Palocci, Silvio Pereira, Delúbio Soares, Genoíno, etc.) que saiu, obviamente, enfraquecida. O segundo turno, realizado em 29 de outubro de 2006, consagrou a liderança de Lula, eleito com 58.248.001 votos, quase 61% dos votos, confirmando sua popularidade no eleitorado de baixa renda e avançando mesmo nas camadas intermediárias. Quanto a Alkmin, para a surpresa de muitos de seus adeptos, e de não poucos analistas, não apenas não conseguiu incorporar votos novos, como perdeu posições conquistadas no primeiro turno: teve 37.526.847 votos, um pouco mais de 39% dos votantes59 . 58 No Senado, o PT passará a ter 11 parlamentares (contra 14, em 2002). Na Câmara, na legislatura anterior, o PT chegou a ter 91 parlamentares, mas este número havia caído para 81, depois de defecções causadas pelas sucessivas crises (morais e políticas), abertas a partir de 2005. Observe-se ainda que o PT foi o partido com mais votos nas recentes eleições para deputados: 13.989.859 votos contra 13.580.517 votos dados ao PMDB. Apesar disso, pelas distorções do sistema eleitoral brasileiro, o PMDB elegeu 6 deputados a mais do que o PT. Cf. dados do Tribunal Superior Eleitoral/TSE, in O Globo, 4/10/2006, p. 13 59 Cf. O Globo, 30 de outubro de 2006, p. 21. Houve ainda 1.351.044 votos em branco (1,33%), 4.805.968 votos nulos (4,71%), e mais 18,99% de abstenções, totalizando 25,03% do eleitorado que não escolheu nenhum dos dois candidatos. 24 Enquanto Lula incorporava quase 12 milhões de eleitores a seu balaio de votos, Alkmin perdia um pouco mais de 2 milhões...60 Foram grandes trunfos de Lula a habilidade de articular alianças e de definir um perfil político mais claro – comprometido com as causas populares, com o atendimento das demandas materiais e simbólicas dos pobres das cidades e dos campos, com políticas políticas distributivas e atenuadoras das trágicas desigualdades que caracterizam a sociedade brasileira. Também lhe valeram a notória capacidade de comunicação – sobretudo com as camadas populares - e as qualidades, sempre enfatizadas por ele e pelo PT, de um líder que sabe negociar, aberto ao diálogo e à discrepância, construtor de consensos. Não se quer aqui discutir se estas qualidades são efetivas, mas o fato de que a imagem delas gravou-se na imaginação de grande parte do eleitorado. Quanto a Alkmin, perdeu-se, mais uma vez, na retórica do moralismo, das cobranças contundentes e agressivas, e da falta de clareza de seus compromissos e propostas, o que o fez, inclusive, como se observou acima, perder votos e proporção no eleitorado. Após o segundo turno, podia-se confirmar o que já se esboçara no primeiro: Lula e o PT sobreviveram ao poderoso cerco de aniquilamento que se estruturara contra eles. Em grande medida, esta sobrevivência parece assegurada, pelo menos a médio prazo. Assim, um pouco mais de 25 anos depois do lançamento da aventura petista, nada indica que Lula e o PT possam ser eliminados da cena política nacional, ao contrário, mais do que nunca parecem enraizados na sociedade brasileira. Com seus defeitos e suas virtudes, afiguram-se como produtos, componentes e fatores da república democrática que a sociedade brasileira está construindo desde fins dos anos 1970 do século passado. Daniel Aarão Reis 8 de março de 2007 Bibliografia AARÃO REIS, Daniel. “O governo Lula: das utopias revolucionárias à política como arte do possível”. In Revista USP, São Paulo, março/abril/maio de 2005 60 Observe-se que o percentual alcançado por Lula supera o de todos os presidentes eleitos por voto direto depois da ditadura militar, menos o seu próprio, de 2002, quando chegou a 63% (Collor teve 53% no segundo turno, em 1989; Fernando Henrique Cardoso teve 54,3% e 53% em 1994 e 1998, respectivamente – é verdade que suas vitórias foram alcançadas em primeiro turno). Cf. O Globo, 30 de outubro de 2006, p. 4 25 AZEVEDO, Clovis Buenoi. Leninismo e social-democracia: uma investigação sobre o projeto político do Partido dos Trabalhadores. São Paulo, dissertação de mestrado FFLCH/Universidade de São Paulo, 1981. AZEVEDO, Ricardo de e MAUÉS, Flamarion. Rememória. Entrevistas sobre o Brasil do século XX. São Paulo, Fund. Perseu Abramo, 1997 BERBEL, M. R. Partido dos Trabalhadores: tradição e ruptura na esquerda brasileira (1978- 1980). São Paulo, dissertação de mestrado, FFLCH/Universidade de São Paulo, 1991. BETTO, Frei. Lula, biografia política de um operário. Estação Liberdade, São Paulo, 1989. BITTAR, Jorge. (org.) “O modo petista de governar”. São Paulo, Teoria e Debate, 1992. CARVALHO, Apolônio, e alii. PT: um projeto para o Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1989. COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal. Rio de Janeiro, Salamandra, 1984. _______________________. A dualidade de poderes e outros ensaios. São Paulo, Ed. Cortez, 1994. FURTADO, Olavo Henrique Pudenci. Trajetos e perspectiva social-democratas: do modelo europeu para o PSDB e o PT no Brasil. 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Se fôssemos fundar um novo partido deveríamos nos debruçar sobre a elaboração de dois documentos: um programa e um estatuto. Acredito que o mesmo vale para a refundação. O programa deve enunciar os princípios do partido e a sua finalidade, ou seja, a que sociedade aspira e como se propõe a lutar por ela nas circunstâncias históricas em que se encontra o Brasil. O estatuto deve regular toda vida política e administrativa do partido e adquire importância maior por causa dos graves desvios de conduta a que o estatuto e seu possível desrespeito nos levaram. Proponho, a seguir, possíveis tópicos de discussão do futuro programa e do futuro estatuto do PT refundado.

O programa
1) Os princípios. Esta é uma discussão filosófica, tem a ver com valores e visão de mundo. Como somos socialistas, os valores primordiais serão inevitavelmente a liberdade, a igualdade e a justiça e sua aplicação à realidade mundial e nacional. O valor atribuído à preservação da natureza terá de ser considerado, assim como à diversidade cultural, com destaque à liberdade de opção sexual e à preservação das culturas tradicionais. Acho que o programa não deveria tomar posição sobre questões de consciência, como a do aborto ou das células-tronco, por razões óbvias.

Para mim, uma discussão de princípio é o limite entre a liberdade individual e o interesse coletivo, concretizado no relacionamento entre estado e mercado. Eu vejo na liberdade de iniciativa individual, familiar e coletiva um valor hoje central ao socialismo. E, pensando nas ONGs e no terceiro setor, o princípio também encontra aplicação contemporânea na questão do “público não-estatal”. A este respeito, os 25 anos de experiência do PT têm muito a nos ensinar.

Haverá certamente outros temas que as muitas cabeças que participarão deste esforço vão suscitar.

2) O socialismo. Este é o nome da sociedade que queremos. Trata-se de discussão que nunca cessa, pelo menos desde a Revolução Russa, e gira ao redor da aplicação de nossos princípios à realidade futura, pela qual lutamos. Estou convencido de que já estamos construindo o socialismo no Brasil (e nos outros países, em medida muito diversa), embora o processo esteja sujeito a avanços e recuos.

Esta convicção nasce da idéia de que o socialismo é obra coletiva dos inúmeros movimentos que resistem ao capitalismo e criam instituições alternativas na sociedade, na economia, na cultura e na política. O papel do estado nesta construção é muito variável. Em determinadas circunstâncias é crucial (quando por exemplo se reconquista a democracia), em outras é adjetivo. Positivo ou negativo, o papel do estado nunca é insignificante, mas tão pouco é decisivo. Ou seja, o estado não consegue construir o socialismo sem as iniciativas revolucionárias de classes, setores e agrupamentos sociais. O socialismo real ensinou-nos que o estado não pode substituir as iniciativas revolucionárias da sociedade, isto é, iniciativas estatais nunca são realmente revolucionárias.

É claro que estas são minhas idéias e tenho certeza que outras idéias surgirão no debate. Não estou querendo impô-las, só as apresento aqui porque elas exemplificam o tipo de discussão que acredito que será necessária. A importância deste tema está no fato de que o programa oferecerá um norte à ação do partido, para a definição de prioridades e de objetivos intermediários.

3. O agente histórico. Estamos pensando num programa de longo prazo, válido por toda vida do partido (ao menos na pretensão). Por isso, a visão do agente histórico implica numa análise da atual fase histórica do capitalismo e o tipo de sociedade de classes que ela suscita: transformação nas relações de produção e de trabalho, mudanças no papel do estado, privatização do sistema de seguridade, de saúde, de educação e a preservação do meio ambiente. E o papel do Brasil no capitalismo mundial globalizado com todas suas contradições.

Acho que a discussão do agente histórico tem que levar ao posicionamento programático do partido frente aos sindicatos de trabalhadores assalariados do campo e da cidade, dos trabalhadores por conta própria (camponeses, artesãos, pequenos comerciantes etc.), da intelectualidade e dos aparelhos ideológicos: mídia, indústria cultural e de entretenimento, rede escolar, sistema nacional de pesquisa científica e os movimentos da contra-cultura.

Não penso que seja útil reproduzir o velho debate sobre a noção marxista do papel revolucionário do proletariado. Prefiro um debate mais próximo da realidade atual, que foque no partido e o seu relacionamento com outros partidos (sobretudo de esquerda), com movimentos sociais, com entidades associativas das classes trabalhadoras e com os aparelhos ideológicos. Tenho por provável que o agente histórico que estamos procurando seja um amálgama como este, em que o partido deve estar inserido sem qualquer pretensão de liderança.  

4) Programas específicos

Sobre ciência e tecnologia, saúde pública e liberdade individual, educação pública e privada, seguridade social e renda cidadã, proteção à criança, à mulher, ao idoso, ao deficiente. Seriam programas gerais, orientações para formulação de programas concretos de alcance imediato.

O estatuto
1) democracia interna. Duas questões me parecem prioritárias. Uma é a preservação de espaço nas instâncias diretivas para o militante comum amador, que vive de trabalho externo ao partido. Neste contexto, acho que deveremos discutir deveres e direitos dos assalariados do partido, do presidente ao faxineiro; normas de assalariamento, sobretudo prazos máximos de permanência nesta situação.

Será preciso enfrentar o dilema: eficiência x representatividade. A profissionalização tem a favor de si que ela torna o aparelho do partido mais eficiente, embora exija muito dinheiro. O amadorismo é essencial para resguardar a representatividade das instâncias partidárias. O profissional acredita, muitas vezes, que preserva para sempre a identidade social de sua origem. Ignora que somos determinados tanto pelo passado como pelo futuro, que prevemos para nós. O petista profissionalizado pelo partido é influenciado pelo que aprendeu antes de se profissionalizar, mas também pelo que aspira e pelo que teme em relação ao seu futuro pessoal. Por isso, representantes de entidades associativas de trabalhadores, de movimentos sociais, econômicos, culturais etc., cujo futuro independe das posições que assumem dentro do partido, teriam que ser maioria nas instâncias diretivas do partido.

A outra é a questão financeira. Acho que a refundação deve fazer penitência pelos erros e desvios éticos cometidos em nome do PT e inserir no estatuto limites severos à captação de contribuições ao partido. Não deveríamos aceitar contribuições de pessoas jurídicas e nem contribuições de indivíduos altas demais, que possam implicar a compra de favores de qualquer espécie. O limite poderia ser um múltiplo da contribuição média anual do filiado.

O essencial seria que a refundação sinalizasse uma mudança de atitude, que até agora parece ter sido “quanto mais dinheiro melhor”. Deveríamos substituí-la por “apenas o dinheiro necessário para cobrir despesas essenciais”. O orçamento anual do partido, no plano nacional, estadual e municipal deveria estar aberto à discussão e resolução dos militantes. Depois de aprovado, a execução do orçamento e a prestação de contas deveriam ser acompanhadas por representantes da militância. Não ignoro que haverá necessidade dum Conselho Fiscal, que terá um papel mais formal, o de cuidar que a gestão financeira, administrativa e política do partido se paute por regras e resoluções aprovadas pelas instâncias partidárias. O orçamento participativo seria um elemento de democracia direta, acompanhando a execução financeira do ponto de vista substantivo. Por isso ele seria essencial ao funcionamento efetivo da democracia na vida interna do PT.  

A discussão do estatuto abordará com certeza muitas outras questões, que não sou capaz de antecipar. Mas, estas que aqui foram delineadas, me parecem essenciais à refundação.






Antonia de Abreu Sousa1 1
RESUMO
O conceito de “revolução passiva”, “revolução-restauração” ou “transformismo” é categoria fundamental que Gramsci utiliza para compreender a formação do Estado burguês moderno na Itália (partindo dos fatos do Risorgimento, que culminaram na unificação nacional), para definir os traços fundamentais da passagem do capitalismo italiano para a etapa de capitalismo monopolista e para apontar o fascismo como forma de “revolução passiva”. É a partir desse entendimento que utilizaremos o conceito de “revolução passiva” para discutir a modernização capitalista no Brasil, haja vista que este conceito se aplica a diversos episódios da nossa história, bem como de um modo mais geral, a transição do País para a modernidade capitalista e ao capitalismo monopolista de Estado.
PALAVRAS-CHAVE
Estado – Gramsci – Revolução
ABSTRACT
The concept of "passive revolution", "revolution-restoration" or "evolutionism" is crucial category that Gramsci uses to understand the formation of modern bourgeois state in Italy (on the facts of the Risorgimento, which culminated in the national unification), to define the fundamental features of the passing of Italian capitalism to the stage of monopoly capitalism and fascism as a point of "passive revolution". It is from this understanding that we will use the concept of "passive revolution" to discuss the capitalist modernization in Brazil, considering that this concept applies to several episodes of our history, as well as more generally, the transition to the Country capitalist modernity and the monopolistic state capitalism.
KEYWORDS
State – Gramsci – Revolution
1 Doutora em Educação Brasileira na Universidade Federal do Ceará; pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Trabalho e Qualificação Profissional – LABOR; pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Educação Profissional – NUPEP; professora no Instituto Federal de Educação,Ciência e Tecnologia do Ceará.

Introdução
O conceito de “revolução passiva” é categoria fundamental que Gramsci utiliza para compreender a formação do Estado burguês moderno na Itália.
No Brasil, Coutinho (1985), defende que o conceito gramsciano de “revolução passiva”, é imprescindível para entendermos a trajetória de constituição do modelo de capitalismo brasileiro, protagonizado pelo Estado. Este conceito enfatiza a predominância do momento supra-estrutural, ou seja, do instante político, ultrapassando as visões meramente economicistas que dominaram esta discussão durante muito tempo no País 2 .
2 Gramsci e a “revolução passiva”: entendimento
 O conceito de “revolução passiva” “revolução-restauração” ou “transformismo” foi trabalho por Gramsci em sua obra O Risorgimento. A partir desse estudo, Gramsci faz uma crítica à filosofia de Benedetto Croce (1866- 1952), por esta tratar da Restauração dos Bourbons, a História da Europa no século XIX (1932), deixando de lado os tumultos econômicos e militares da Revolução Francesa e das guerras napoleônicas, e a História da Itália em 1871, sem enfatizar as discussões sobre as lutas do Risorgimento. A crítica de Gramsci dirigia-se também à opção que Benedetto Croce, em 1920, fez ao aderir o liberalismo na Itália fascista.
Para Gramsci, o movimento conhecido como Risorgimento pode ser definido como formação das condições concretas, incluindo as relações internacionais, que possibilitaram a unificação do Estado italiano a partir da união das forças nacionais, mas este fato deve ser apreendido no mesmo processo histórico vivenciado pelos europeus. Ressalta, todavia, que este fenômeno não é desvinculado dos acontecimentos internos da Itália (2002).
2 No Brasil foi feito um esforço de autores como Carlos Nelson Coutinho, Luiz Werneck Viana e outros tentando trazer à discussão o conceito leninista de revolução como uma possibilidade de interpretação da constituição do modelo moderno de capitalismo brasileiro, à luz do marxismo, este não foi suficiente, pois prioriza sempre os aspectos infra-estruturais (economicistas do desenvolvimento capitalista). A partir das Leituras de Gramsci de Coutinho (1985), compreende que o conceito, de “revolução passiva” trabalhado por Gramsci complementa o que estava faltando na teoria leninista (os aspectos supra-estruturais).
Dessa forma, o Risorgimento, na análise gramsciana, aborda de maneira minuciosa, aspectos de um desenvolvimento europeu mais geral, que, para melhor compreensão, dividimos em quatro momentos: no primeiro, trata da Reforma Francesa, no segundo, da Revolução Francesa e, no terceiro, da consolidação do liberalismo como filosofia, ou seja, modo de vida. Além dos aspectos gerais, é preciso entender os aspectos nacionais, aqui considerados como o quarto momento, nas palavras de Gramsci:
como retomada de vida italiana, como formação de uma nova burguesia, como consciência crescente de problemas não só municipais e regionais mas nacionais, como sensibilidade a certas exigências ideais (...) a novas idéias, a novas atividades, a novo ordenamento político. (2002,p.19).
O Risorgimento, porém, para Gramsci, só se consolida a partir do momento em que ele se transforma em ação, ou seja, mesmo existindo as condições objetivas, internacionais e nacionais, esta “se torna consciente em grupos de cidadãos dispostos à luta e ao sacrifício”. (2002, p.22). É a partir desse entendimento, das forças presentes na consolidação do Risorgimento, momento de concretude de unificação italiana, que Gramsci busca a elaboração de suas reflexões históricas.
O Risorgimento é caracterizado, portanto, pela hegemonia das forças moderadas e democráticas presentes naquele contexto histórico. Gramsci ressalta a hegemonia do grupo dos moderados como sendo capaz de atrair um papa (Pio IX – Giovanni Mastai Ferreti) para que este aceitasse o movimento liberal. Vejamos:
(...) que o movimento liberal tenha tido êxito em suscitar a força católico-liberal e fazer com que o próprio Pio IX se pusesse, ainda que brevemente, no terreno do liberalismo (o suficiente para desagregar o aparelho político-ideológico do catolicismo e tirar-lhe a confiança em si mesmo) – eis a obra-prima política do Risorgimento e um dos pontos mais importantes de desatamento dos velhos nós que haviam impedido, até então, pensar concretamente na possibilidade de um Estado unitário italiano. (2002, p. 21).
Na análise gramsciana, a fraqueza do grupo dos democráticos residia no Partido de Ação que não tinha sequer um programa de governo que despertasse credibilidade da população. Chamou, porém, a atenção de Gramsci o fato de o Partido de Ação ter como bandeira a categoria histórica de “jacobinos3 ”, porém os democráticos não foram capazes de se opor aos moderados e organizar o movimento popular de massas, especificamente, o movimento dos camponeses do sul da Itália, alijando assim a revolução burguesa na Itália.
Para Gramsci, portanto, o fracasso do Partido de Ação foi o grande responsável pela exclusão das massas no quadro da Itália unificada e abriu as portas para o corporativismo burguês que legitimou este Estado armado.
Cabe ressaltar que Gramsci acreditava em uma revolução do tipo jacobino para a Itália. Queria um movimento que fosse capaz de utilizar o Estado para realizar a transformação nacional que a burguesia não tinha feito. Assim, Gramsci traz à tona duas questões fundamentais para discussão do marxismo: o papel das elites e a função das alianças de classe.
Para Gramsci, as classes governantes podiam ser dirigentes ou, somente, dominantes. No Risorgimento, o novo governo do Piemonte4 assumiu o comando de uma Itália unificada, sem um verdadeiro consenso nacional. Além do mais, a elite política do Reino, era mais dominante do que dirigente e incorporou as alas mazzinianas (Giuseppe Mazzini – 1805/1872) e garibaldinas (Giuseppe Garibaldi – 1807/1882) à força de “transformismo” – política de compromisso com a finalidade de privar os partidos de oposição da sua liderança pelo recurso de atraí-los para o ‘sistema’.
A este fato Gramsci denomina transformismo, que é, portanto, uma forma complexa do processo sociopolítico, chamada de “revolução passiva”, identificada por ele de duas maneiras: na primeira, ocorre uma revolução sem participação das massas, como o Risorgimento, e, na segunda sucede um progresso dissimulado de classes sociais impedidas de avançar abertamente,
3 Os jacobinos era um grupo urbano organizado que na França revolucionária conquistou os camponeses para a sua causa. 4 Segundo Gramsci (2002, P. 328-329), a função do Piemonte no Risorgimento italiano “é a de uma “classe dirigente”. Na realidade, não se trata do fato de que, em todo território da península, existissem núcleos de classe dirigente homogênea, cuja irresistível tendência à unificação tenha determinado a formação do novo Estado nacional italiano. Estes núcleos existiam, indubitavelmente, mas sua tendência à união era muito problemática e, o que mais conta, nenhum deles, cada qual em seu âmbito, era “dirigente”. O dirigente pressupõe o “dirigido”, e quem era dirigido por estes núcleos? Estes núcleos não queriam “dirigir” ninguém, isto é, não queriam harmonizar seus interesses e aspirações com os interesses e aspirações de outros grupos. Queriam “dominar”, não “dirigir”, e mais ainda: queriam que fossem dominantes seus interesses, não suas pessoas, isto é, queriam que uma força nova, independente de qualquer compromisso e condição, se tornasse o árbitro da Nação: esta força foi o Piemonte e, daí a função da monarquia”.
como a burguesia na França da Restauração, daí a rotulação posta por Gramsci de “revolução-restauração”.
Dessa forma, podemos entender que o conceito de “revolução passiva” trabalhado por Gramsci, diferentemente de uma revolução popular, feita “de baixo para cima”, do tipo jacobina, pressupõe sempre a presença de dois momentos: o da “restauração” (na medida em que é uma reação à possibilidade de uma efetiva e radical transformação “de baixo para cima”) e o da “renovação” (portanto muitas demandas populares são atendidas pelas velhas camadas dominantes). Gramsci entende que no desenvolvimento capitalista italiano faltava uma iniciativa popular unitária, assim como se verificou que este desenvolvimento era uma reação das classes dominantes a subversão elementar e desorganizada das massas populares, ante a movimentos de “restaurações” vindos de baixo, ou seja, de “revoluçõesrestaurações” ou “revoluções passivas”.
O elemento restaurador, no conceito gramsciano, não invalida o fato de ocorrerem também modificações efetivas. A este respeito, Gramsci (2002) exprimiu:
Pode-se aplicar ao conceito de revolução passiva (e pode-se documentar no Risorgimento italiano) o critério interpretativo das modificações moleculares, que, na realidade, modificam progressivamente a composição anterior das forças e, portanto, transformam-se em matriz de novas modificações. (P. 317).
Havia, ainda, em Gramsci uma convicção de que o fascismo era uma forma transitória de governo da burguesia. Com base nesse suposto, aplica exploratoriamente o conceito de “transformismo” ou “revolução-passiva” ao regime instituído por Mussolini na Itália, como instrumento para explicar a passagem do capitalismo italiano de sua fase concorrencial ao período monopolista. De acordo com o Gramsci (2006), com o fascismo,
(...) ter-se-ia uma revolução passiva no fato de que, por intermédio da intervenção legislativa do Estado e através da organização corporativa, teriam sido introduzidas na estrutura econômica do país modificações mais ou menos profundas a fim de acentuar o elemento “plano de produção”, isto é, teria sido acentuada a socialização e a cooperação da produção, sem com isso tocar (ou limitando-se apenas a regular e controlar) a apropriação individual e grupal do lucro. No quadro concreto das relações sociais italianas, esta pode ter sido a única solução para desenvolver as forças produtivas da indústria sob a direção das classes dirigentes tradicionais, em concorrência com as mais avançadas formações industriais de países que monopolizam as matérias-primas e acumularam gigantescos capitais. (P. 299).
Gramsci discerne, portanto, uma ‘função de tipo Piemonte’ nas revoluções passivas, as quais significam mudanças políticas e sociais conduzidas pelo Estado na ausência de classes sem condições para mobilizar o apoio das massas populares. Nestes casos, existe governo e até governo forte; mas não existe liderança.
Esta situação pode ser pensada para o caso brasileiro, resguardando a diferença fundamental entre o Risorgimento italiano e a história do Brasil. Na Itália, um Estado particular desempenhou o papel definidor da formação de um novo Estado nacional unitário, enquanto o Estado que desempenha no Brasil a função de protagonista das revoluções passivas já é um Estado unificado. (COUTINHO, 1985). Deixando de lado, porém, esta diferença, o correto é asseverar que o Estado brasileiro teve historicamente o mesmo papel que Gramsci atribuiu ao Piemonte, de substituto das classes sociais em sua função de conduzir a transformação e assumir a tarefa que é “dirigir” politicamente as próprias classes economicamente dominantes, tendo função de ‘domínio’ e não ‘direção’. (COUTINHO, 1985).
No Brasil, as transformações sempre resultaram do deslocamento da função hegemônica de uma para outra fração das classes dominantes, sendo que estas classes, em seu conjunto, nunca desempenharam uma função hegemônica diante das massas populares. Sempre delegaram ao Estado – aos militares ou aos burocratas –, ao qual coube a função de “controlar” e, de acordo com as necessidades, reprimir as massas subalternas. Esta foi a forma encontrada pela burguesia brasileira para fazer a transição para o capitalismo, o modelo de “revolução passiva”.
3 O Estado brasileiro e a “revolução passiva”
O conceito gramsciano de “revolução passiva” aplicado ao caso brasileiro pressupõe o entendimento acerca do fortalecimento do Estado em favor das forças hegemônicas e a prática do transformismo como modalidade de desenvolvimento histórico que exclui as massas populares desse processo.
Assim sendo, a modernização capitalista brasileira – industrialização, urbanização e estrutura social complexa – foi implementada pelo Estado. Não houve uma “revolução burguesa”, este fato aconteceu mesmo com o grande latifúndio e a dependência do capital imperialista.
A propriedade latifundiária transformou-se, rapidamente, em empresa agrária e o capital estrangeiro no acelerador da industrialização. O povo brasileiro não tomou parte nessa empreitada, melhor expressando, os trabalhadores do campo e os da cidade não tiveram participação neste processo, haja vista que não existiu uma burguesia revolucionária no País. A transformação capitalista sucedeu a partir de acordos entre frações das classes que dominavam economicamente, à exclusão dos movimentos populares, do emprego dos aparelhos repressivos e da intervenção econômica do Estado.
Em todos os momentos importantes da história do Brasil, ligados ou não aos períodos de transição, para as fases capitalistas, foram encontradas formas de excluir o povo e de as elites se recomporem ou fazerem alianças para continuar no poder, ou seja, de fazer uma “revolução passiva”.
Dessa forma, a leitura gramsciana sobre a “revolução passiva” é fundamental para o entendimento do papel do Estado brasileiro no desenvolvimento econômico, político e social. Destacaremos, inicialmente, o período varguista e a culminância com a instalação da ditadura em 1937. Esta é uma reação às tentativas de organização dos movimentos populares, que se inicia em 1922, ano em que foi fundado o Partido Comunista Brasileiro – PCB e eclodiu a primeira manifestação armada militar comandada pelos tenentes.
Nesse período, o movimento operário levantava a bandeira dos direitos civis e sociais, enquanto as camadas urbanas emergentes lutavam pelo direito uma participação maior na vida política do País. Esses movimentos, que faziam pressão de “baixo para cima”, fizeram com que as oligarquias agrárias dominantes se reorganizassem, costurassem alianças, ligadas à produção para o mercado interno, assumindo o controle da Revolução de 1930.
A vitória da Revolução de 1930 possibilitou a constituição de um novo bloco de poder, no qual a fração oligarquia vinculada a agricultura de exportação foi posta numa posição inferior, ao mesmo tempo em que se tentava “cooptar a ala moderada da liderança político-militar das camadas médias (os tenentes)”. (COUTINHO, 1985, P.04). O estilo elitista desse novo grupo, no entanto, fazia com que os setores populares continuassem a margem do poder. Eles ainda não estavam; eram representados pelo frágil Partido Comunista e por um pequeno grupo de tenentes de esquerda que não haviam participado da Revolução. (COUTINHO, 1985).
Diante dessa situação, os comunistas e os tenentes de esquerda, tentaram protestar. Organizaram o levante comunista de 1935 – a chamada Intentona – transformado num desastre e reprimido, rapidamente, pelo governo, tornando-se o principal motivo para instauração da ditadura Vargas.
A ditadura Vargas, com seu caráter repressivo e ideológico de tipo fascista, não poupou os comunistas. Nesse período, todavia, também chamado de “Estado Novo”, alavancou-se uma acelerada industrialização do País, contando com o apoio industrial da burguesia nacional e internacional e de parte da camada militar. Para acalmar os anseios das camadas populares e atender as suas reivindicações, Vargas promulgou um conjunto de leis de proteção ao trabalho (salário mínimo, férias pagas, direito à aposentadoria, licença-maternidade etc.), porém impôs uma legislação sindical corporativa, de inspiração fascista, que atrelava os sindicatos ao aparelho estatal e liquidava com a autonomia. A ditadura Vargas se enquadrava conceito de “revolução passiva” ou “revolução-restauração”.
Do período que compreende de 1937 a 1945, ressaltamos o início de um fenômeno que se incorporou à política brasileira, o chamado “populismo” – modalidade de legitimação carismática, mas que se desenvolveu plenamente o período liberal-democrático, que se estendeu de 1945 a 1964, retomado novamente nos anos 2000, mas precisamente no ano de 2002, com o governo de Luís Inácio Lula da Silva. O populismo deve ser interpretado como tentativa de incorporar ao bloco de poder, em posição subalterna, os trabalhadores do campo e da cidade, mediante a concessão dos direitos, benefícios sociais, ou seja, vantagens econômicas. Aqui utilizaremos o conceito gramsciano de transformismo para discutir o período de 1945 a 1964.
A ação transformista utilizada pela burguesia, no período de 1945 a 1964, não teve êxito, pois encontrou forte resistência nos setores mais combativos da classe trabalhadora, mas a causa principal foi a impossibilidade de os governos garantirem ao conjunto de trabalhadores, em razão das fortes crises econômicas, as condições mínimas exigidas para o funcionamento do pacto populista. (COUTINHO, 1985).
O sucesso do “populismo” neste período pode ser encontrado no segundo governo de Getúlio Vargas e no de Juscelino Kubitschek e este êxito decorreu do amplo consenso conquistado pela política nacionaldesenvolvimentista, caracterizada por acelerados processos de industrialização com base na substituição de importações.
Fora do pacto populista estavam os assalariados agrícolas e os camponeses, que continuavam sem seus direitos sociais e trabalhistas e – ainda eram analfabetos – do direito do voto. Esta exclusão tornava possível a manutenção, no bloco de poder, da velha oligarquia latifundiária e servia também à burguesia industrial, pois ampliava significativamente o exército industrial de reserva. Desta forma, pressionava para baixo o valor dos salários dos trabalhadores urbanos. (COUTINHO, 1985).
O período da ditadura militar instituída no Brasil a partir de 1964 pode ser compreendido quando Gramsci exprime que o fascismo é um tipo de “revolução passiva” por via do Estado, que pôs em prática profundas modificações, com a finalidade de não mexer nos lucros individuais e dos grupos instalados no poder e desenvolver a indústria, tendo como dirigentes as classes tradicionais.
O regime ditatorial militar de 1964 não pode ser considerado como um regime fascista de modelo “clássico”, como foi o fascismo italiano, mas os objetivos de política econômica guardam fortes semelhanças, que podemos assim inventariar:
• desenvolvimento intenso das forças produtivas, por via de intervenção do Estado, com o claro objetivo de favorecer e consolidar a expansão do capitalismo monopolista;
• transformação da estrutura agrária, tornando-a predominantemente capitalista, mesmo conservando o latifúndio como eixo central;
• os militares, na qualidade de tecnocratas que se apoderaram do aparelho estatal, controlaram e limitaram a ação do capital privado, submetendo os interesses dos muitos capitais ao capital em seu conjunto, mas mantiveram e reforçaram o lucro privado e conservaram o poder das classes dominantes tradicionais, seja a burguesia industrial e financeira (nacional e internacional), sejam os latifundiários que se tornaram paulatinamente cada vez mais capitalistas.
O regime militar conquistou, nos primeiros momentos, amplo consenso entre setores das camadas médias, conseguindo isso a partir do instante em que se impôs como protagonista da modernização capitalista brasileira, mesmo que esta tenha conservado elementos de “atraso”, despertando esperanças e criando expectativas nos grupos sociais, fornecendo algumas respostas aos estratos conservadores da sociedade brasileira.
O Estado brasileiro, que sempre esteve na linha de frente das grandes transformações capitalistas, ou seja, foi com freqüência o protagonista da “revolução passiva”, não se utiliza apenas da coerção, pois também se louva do consenso. Gramsci, em seus estudos, indicou este fato e também o modo pelo qual se obtém esse consenso no caso dos processos de transição “pelo alto”, a burguesia faz a cooptação das frações rivais das próprias classes dominantes – assimilação pelo bloco de poder – e chega até mesmo a cooptar setores inteiros das classes subalternas.
Gramsci elenca na história italiana dois tipos de transformismo. O primeiro ocorreu de 1860 a 1900, denominado de transformismo “molecular”, no âmbito do qual personalidades políticas singulares, orientadas pelos partidos democráticos de oposição, se incorporavam individualmente à ‘classe política’ conservadora-moderna – caracterizada pela aversão a qualquer intervenção das massas populares na vida estatal, a qualquer reforma orgânica que substitua o domínio ditatorial por uma hegemonia. O outro foi iniciado em 1900, transformismo de grupos radicais, que passaram para o campo moderado.
Os dois tipos de transformismo permeiam a história brasileira. Podemos dizer que o tipo “molecular”5 teve sempre mais freqüência, utilizando
5 No Brasil o transformismo “molecular” desempenhou papel negativo, mas decisivo, na vida cultural do País, pois com a incorporação de significativas parcelas dos
como incorporação ao bloco de poder, políticos de oposição, prática que se encontra arraigada desde o Brasil-Império se estendendo até os dias atuais.
No período da história brasileira que se inicia em 2002, tivemos um caso típico de transformismo de grupos ou classes sociais de oposição. Este representa a vitória eleitoral do Partido dos Trabalhadores – PT, da candidatura presidencial de Luís Inácio Lula da Silva, depois de três sucessivas derrotas.
O PT foi criado em 1980, diante da crise política da “abertura” da ditadura militar como resposta do movimento operário e camponês, e em decorrência da greve centrada nas montadoras do ABC paulista, tendo as principais lideranças desse movimento grevista se transformado nas lideranças do próprio PT. O líder político e, presidente eleito, Lula da Silva, em 2002, nasceu nesse contexto.
Após a primeira derrota do PT em 1989, este começa a ser cooptado pela burguesia, surgem as alianças para tornar o PT “aceitável” e confiável para o empresariado nacional, internacional, Fundo Monetário Internacional – FMI e as “classes médias”. O PT chega, então, ao governo com o apoio da “fração reacionária da burguesia brasileira, boa parte de seus políticos tradicionais e uma vasta legião de arrivistas”. (COGGIOLA, 2004, p 12).
A vitória do PT, em 2002, decorreu da concretização do processo de cooptação geral deste grupo, haja vista que direção do Partido se comprometeu com o superávit primário, pagamento da dívida externa, total submissão ao Fundo Monetário Internacional – FMI e com as leis de “responsabilidade fiscal”, agradando o capital nacional e internacional.
O PT e Lula da Silva se consolidavam, no imaginário popular, por serem considerados representantes dos interesses da classe operária, dos camponeses e dos pobres em geral. Na verdade, este governo acalma os setores populares do Brasil, com medidas populistas, focalizadas, mas, sobretudo, defende os interesses capitalistas, “colaboração de classes”, nas palavras de Coggiola (2004), “criar um fator de contenção da emergência do movimento operário e camponês da América Latina” (P.31).
intelectuais pelo Estado que representavam, os valores das classes populares enfraquecia sempre qualquer movimento opositor ás camadas dominantes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COGGIOLA, Osvaldo. Governo Lula: da esperança à realidade. São Paulo: Xamã, 2004.
COUTINHO, Carlos Nelson. As Categorias de Gramsci e a Realidade Brasileira. In: Crítica Marxista, Roma, Editori Riuniti, n. 5, ano 23, 1985, pp.35- 55.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. V. 5, edição e tradução de Luiz Sérgio Henriques; co-edição, Carlos Nelson Coutinho e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
______. Cadernos do Cárcere. V. 1, edição e tradução de Luiz Sérgio Henriques; co-edição, Carlos Nelson Coutinho e Marco Aurélio Nogueira. 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
1 Doutora em Educação Brasileira na Universidade Federal do Ceará; pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Trabalho e Qualificação Profissional – LABOR; pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Educação Profissional – NUPEP; professora no Instituto Federal de Educação,Ciência e Tecnologia do Ceará.Email: tônia_abreu@hotmail.com.
ARTIGO RECEBIDO EM 13.09.2010.
APROVADO EM 28.09.2010.




Eu não creio que o público saiba o que deseja; é a conclusão que tirei da minha própria carreira. CHARLES CHAPLIN

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