quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

“O Poder e o Economista Útil”

No dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou no meu quarto uma borboleta, tão negra como a outra, e muito maior do que ela. Lembrou-me o caso da véspera, e ri-me; entrei logo a pensar na filha de Dona Eusébia, no susto que tivera, e na dignidade que, apesar dele, soube conservar. A borboleta, depois de esvoaçar muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela foi pousar na vidraça; e, porque eu sacudisse de novo, saiu dali e veio parar em cima de um velho retrato de meu pai. Era negra como a noite. O gesto brando com que, uma vez posta, começou a mover as asas, tinha um certo ar escarninho, que me aborreceu muito. Dei de ombros, saí do quarto; mas tornando lá, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo logar, senti um repelão dos nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.
Não caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça. Apiedei-me; tomei-a na palma da mão e fui depô-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.
-- Também por que diabo não era ela azul? disse eu comigo.
E esta reflexão, -- uma das mais profundas que se tem feito, desde a invenção das borboletas,-- me consolou do malefício, e me reconciliou comigo mesmo.
Joaquim Maria Machado de AssisMemórias Póstumas de Brás Cubas


“Álvaro! Deixa eu começar dizendo uma coisa. É... eu não tenho corrente de pensamento econômico como as  pessoas julgam que eu tenho aqui no Brasil. Lá fora quando você discute uma obra da envergadura da obra do Piketty, discorde você ou não dela e dos métodos que foram usados pra as conclusões a que ele chegou ou das teses que ele propõe para explicar o que aconteceu com a desigualdade ao longo dos últimos séculos, porque o livro tem esse fôlego, as pessoas discutem o que que elas acham que  ta certo e o que que acham que ta errado mas sem esse tipo de olhar que... se você é de esquerda, seja lá o que isso for, você tem que dizer uma coisa e se você é de direita você tem que dizer outra...” Mônica de Bolle RODA VIVA 24/10/2016 De 52:20 a 53:10


“Até onde pode ir a pretendida neutralidade da economia frente aos problemas da política e do poder? Discursando na reunião de 1972 da American Economic Association, na qualidade de presidente da organização, John Kenneth Galbraith discute o problema a partir de uma análise do fracasso da economia neoclássica.” Argumento Ano 1 N.º 2 Revista Mensal de Cultura Diretor Responsável: Barbosa Lima Sobrinho novembro 1973 p. 5






SINOPSE


Conta-se que, na década de 1970, ao tentar se livrar de uma superpopulação de coelhos, os ingleses adotaram uma política tão bem-intencionada quanto equivocada, que culminou com a extinção da borboleta- azul no sul do país. O triste fim da bela borboleta é a metáfora escolhida pela economista Monica Baumgarten de Bolle para descrever a desconstrução do Brasil durante os anos de Dilma Rousseff à frente da nação. Depois de o Plano Real reduzir a inflação a patamares suportáveis e permitir a implantação de um conjunto de políticas sociais mais inclusivas, a presidente chegou ao poder determinada a reformular tudo. Na prática, sua gestão levou a economia brasileira a uma situação catastrófica cujos efeitos se farão sentir por muito tempo.
Em texto fluente, Monica acompanha erros e desacertos da presidente, ano a ano, desvendando cada um de seus desatinos. Porém, no lugar de gráficos e tabelas, o leitor encontra drama, uma história de suspense e terror, com vilãs, vilões e pouquíssimos heróis, narrada com pitadas de surrealismo e saborosas citações a filmes e obras da literatura. A dura realidade ganha contornos humanos e compreensíveis mesmo para quem não tem nenhuma familiaridade com o chamado economês.


Domingo, 16/10/2016, às 17:04, por Luciano Trigo
A economia na era Dilma: Crônica de uma tragédia anunciada






A trajetória da economia durante a finada era Dilma lembra um filme de terror, com um trem desgovernado rumando velozmente para o precipício. O trem se chamava Brasil, e todos nós estávamos dentro dele. É esta a conclusão a que se chega após a leitura de “Como matar a borboleta-azul – Uma crônica da era Dilma”, da economista Monica Baumgarten de Bolle. O título evoca uma praga de coelhos que ameaçou destruir as plantações em fazendas no interior da Inglaterra, nos anos 70. A solução encontrada pelo governo foi espalhar um vírus que dizimou os coelhos. A diminuição da população de coelhos provocou o aumento das ervas daninhas, que por sua vez destruíram a grama que alimentava as formigas. As formigas protegiam os ovos da borboleta-azul: sem formigas, a espécie desapareceu.

A historinha lembra que, na economia, qualquer movimento impensado gera uma série de consequências e externalidades, algumas delas previsíveis, outras inesperadas. Frequentemente, para resolver um problema você cria outros dois. Por isso mesmo, os formuladores (e os executores) de políticas econômicas devem ser extremamente cuidadosos, ainda mais em um país com o histórico de crises do Brasil. Em seu livro, Monica de Bolle demonstra de forma cabal que, do primeiro dia do primeiro mandato de Dilma ao seu afastamento, imposto pelo processo de impeachment, a gestão da economia não foi apenas descuidada: foi irresponsável e suicida.








Professora da School for Advanced International Studies da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics, Monica faz um balanço dos desacertos que levaram o governo Dilma a matar a borboleta-azul do crescimento e levar o Brasil à pior recessão da sua história, com queda prevista de 7% do PIB no biênio 2015/2016. Gastança, intervenções erráticas, desonerações em série, medidas protecionistas equivocadas, controle artificial e populista de tarifas e maquiagem das contas públicas com objetivos eleitorais foram alguns dos ingredientes de uma receita infalível para o PIB negativo, a fuga de investidores e a volta do descontrole da inflação e do desemprego – que penalizam principalmente as camadas mais carentes da população, é necessário lembrar.

Monica demonstra que, diferentemente de outros países onde o debate econômico é focado na ponderação da eficácia de diferentes modelos de tamanho do Estado, na estrutura tributária, nos mecanismos de controle da inflação e outros temas, no Brasil a polarização ideológica fez com que também na economia o dogmatismo e a teimosia prevalecessem sobre a discussão racional sobre os melhores meios para se atingirem determinados fins. Só faltou tentar revogar na marra a lei da oferta e da demanda. E essa teimosia continua mesmo após o impeachment de Dilma, como fica patente na resistência do campo hoje na oposição à PEC do teto de gastos – resistência que não hesita em falsificar informações sobre a PEC e ignora o fato de que a alternativa inflacionária será muito pior para todos os brasileiros.

Ordenada de forma cronológica, ano a ano, de 2011 a 2016, a narrativa de ”Como matar a borboleta-azul” é pontuada por artigos da autora publicados no calor dos acontecimentos – o que mostra que não faltaram sinais de alerta. A racionalidade de decisões como a redução da tarifa de energia e a desoneração de itens da cesta básica foi questionada pela autora no momento em que elas foram tomadas. Mesmo deixando de lado qualquer condicionante político, esta foi a crônica de uma tragédia anunciada. Conclusão: depois que o Plano Real reduziu a inflação a patamares suportáveis, após décadas de instabilidade, permitindo a adoção de políticas sociais inclusivas pelos governos seguintes, a ex-presidente Dilma decidiu reinventar a roda. Na prática, sua gestão levou a economia brasileira a uma situação catastrófica, cujos impactos ainda se farão sentir por muito tempo. Parabéns aos envolvidos.


http://g1.globo.com/pop-arte/blog/maquina-de-escrever/post/economia-na-era-dilma-cronica-de-uma-tragedia-anunciada.html



Roda Viva | Monica de Bolle | 24/10/2016


DIÁLOGOS ESSENCIAIS


“O Poder e o Economista Útil”, por John Kenneth Galbraith (revisado em 26.10.2016)
20 de junho de 2015 · por Paulom · em CAMINHOS PARA A DIGNIDADE, ECONOMIA. ·
Compartilho versão revisada deste importante artigo de John Kenneth Galbraith. Eu li este artigo em 1973, quando cursava o terceiro ano da faculdade de economia da Universidade Federal Fluminense. Se o artigo foi relevante naquela ocasião agora,  passados 43 anos, tornou-se claro, óbvio. A derrota do poder dos sindicatos, a grande desigualdade de renda que emergiu do jogo das forças de mercado e a emergência da “financialização” como peça relevante no jogo de xadrez do poder, em vez de enfraquecerem, robustecem as teses centrais do artigo.
Assisti a entrevista de Mônica de Bolle no programa Roda Viva desta semana. Foi convidada para promover seu novo livro com críticas à política econômica do governo Dilma e para discutir a PEC 241, que põe uma camisa de força nos gastos públicos por 20 anos.
Questionada sobre a corrente de pensamento econômico à qual ela se filia, a economista respondeu, como costumam responder todos os economistas de sua matriz ideológica, que não pertencia a nenhuma escola de pensamento. Conhecedor de sua trajetória acadêmica e profissional, pulei na poltrona.
Este artigo de Galbraith deixa tudo claro. Já estava tudo escrito antes mesmo da economista e profissional Mônica de Bolle nascer.
Como alguém, com a inteligência , a vivacidade e as opiniões claramente políticas de Mônica de  Bolle, tem a coragem de vender neutralidade científica em pleno 2016?
Só mesmo citando Quintana, para encerar esta discussão:
Já trazes, ao nascer, a tua filosofia.
As razões? Essas vêm posteriormente,
Tal como escolhes, na chapelaria,
A forma que mais te assente…
A versão que apresentamos a seguir é a tradução, publicada na Revista Argumento – Ano I No. 2 – novembro 1973. A Revista Argumento teve apenas dois números e foi “inviabilizada” pela ditadura.
Com o debate interditado, bloqueado pela grande mídia empresarial, e com o Congresso comprado ou cooptado pelo novo consenso neoliberalizante, o texto de Galbraith, um liberal, na tradição norte-americana do termo, está atual. Neste tempos em que leigos instrumentalizados por ideologias capengas vão para as ruas pedir “privatizem tudo” sem se dar conta que as suas almas já estão privatizadas, este texto torna-se fundamental.
Paulo Martins
O PODER E O ECONOMISTA ÚTIL
“O discurso cerimonial do presidente da American Economic Association é uma forma artística que, como a maioria dos meus antecessores, creio eu, recapitulei minuciosamente. Por vezes, no passado, os discursos trataram de algum problema substantivo de nossa disciplina, ou de algum problema premente da economia.
Mais frequentemente, abordaram, sempre com uma ponta de crítica, a metodologia da ciência econômica. Ainda que aceitando as linhas gerais da ciência, faziam-se reparos a aspectos específicos de sua prática. A ciência econômica é insuficientemente normativa. A construção de modelos tornou-se um fim, não um meio.
Recentemente, por vários anos consecutivos, as críticas – envolvendo uma certa dose de introspecção pessoal – continham ataques particularmente severos à economia matemática. O estilo dessas alocuções, permitam-me notar de passagem, é tão característico quanto o tema. Espelha a solenidade concentrada de homens que sentem que estão falando para a posteridade.
Talvez valha a pena dedicar um momento, nessas grandes ocasiões, à lembrança de que a nossa é uma disciplina que leva a marca de expectativas frustradas.
Esta noite sinto-me tentado a abandonar os ritos estabelecidos. Gostaria de me deter em questões básicas de abordagem e estrutura. Se isso contraria a tradição, não contraria a tendência hoje vigente em nossa profissão. Reunimo-nos num momento em que as críticas são generalizadas – quando o corpo de teoria vigente em seu conjunto está sob um ataque extensivo.
De uns seis anos para cá, o que antes, no mundo não-socialista, chamava-se simplesmente ciência econômica, passou a ser designado como economia neoclássica, com as devidas aberturas para as contribuições keynesiana e pós-keynesiana. O que era uma teoria geral e aceita como comportamento econômico tornou-se uma interpretação particular e contestável desse comportamento.
Para uma nova e notavelmente articulada geração de economistas, as referências à economia neoclássica tornaram-se marcadamente pejorativas. Estou propenso a considerar, tanto quanto desejo, que a atual ofensiva será decisiva.
Ainda restam forças à teoria estabelecida. Ela dá margem a muito refinamento secundário que não levanta o problema de sua  validade ou utilidade globais. Sobrevive robustamente nos livros de textos, embora até nessa fortaleza sinta-se alguma ansiedade entre os autores mais progressistas ou comercialmente sensíveis. Talvez haja limites para a possibilidade de se fazer aceitar entre os jovens.
E os arranjos através dos quais a ortodoxia se mantém na vida acadêmica moderna continuam sendo formidáveis. Em seu primeiro meio século de existência como tema de ensino e pesquisa, a ciência econômica esteve sujeita à censura de leigos.
Os homens de negócios e seus prepostos políticos e ideológicos mantinham-se de olho nos departamentos de Economia e reagiam prontamente contra a heresia, sendo esta tudo o que ameaçasse os sagrados direitos de propriedade, os lucros, uma política tarifária adequada, um orçamento equilibrado, ou que implicasse em simpatia pelos sindicatos, pela propriedade estatal, pela regulamentação pública ou pelos pobres.
O poder e a autoconfiança crescentes do sistema educacional, a complexidade cada vez maior de nossa disciplina e, sem dúvida, a aceitabilidade crescente de nossas ideias, livraram-nos em boa medida dessa ingerência.
Nos principais centros de instrução, a liberdade de cátedra está ou assegurada ou em vias de o ser. Mas no lugar da antiga censura surgiu uma nova tirania.
Consiste ela em definir o mérito científico pela afinidade, em termos de crença e métodos, com a tendência acadêmica dos que já se encontram instalados nas instituições. Trata-se de uma atitude difusa e opressiva, não menos perigosa por ser, via de regra, tão farisaica quanto inconsciente.
Mas até esta forma de controle enfrenta problemas. A economia neoclássica ou neo-keynesiana, embora ofereça oportunidades ilimitadas de refinamento das pesquisas, tem uma debilidade básica. Ela não proporciona um instrumental adequado para abarcar os problemas econômicos que hoje afligem a sociedade moderna. E esses problemas são teimosos – não vão deitar-se e morrer em benefício de nossa profissão. Nenhum arranjo para a perpetuação do pensamento é seguro se este não toma contato com os problemas que presumivelmente deveria resolver.
Esta noite não deixarei de mencionar os fracassos da teoria neoclássica.
Mas também quero sublinhar os meios pelos quais poderemos nos reassociar à realidade. Em parte isso corresponderá a um resumo de argumentos já conhecidos, mais um livro que está para ser publicado. Nesse ponto, até o mais conservador dos meus ouvintes há de sentir-se tranquilizado. Sejam quais forem as outras extravagâncias do autor, falar bem dos próprios escritos é um costume consagrados em nossa tradição profissional.
As características mais batidas da economia neoclássica ou neo-kenesiana são os pressupostos de que o poder, e com ele a política, é alheio ao objeto da ciência econômica.
A empresa está subordinada às disposições do mercado e, nessa medida, ao indivíduo ou ao grupo doméstico. O Estado está subordinado às disposições do cidadão. Há exceções, mas estas confirmam a regra geral e imperativa, e é sobre a regra que se apóia firmemente a teoria neoclássica.
Se a empresa está subordinada ao mercado – se este é seu amo e senhor -, então ela só tem poder de expansão enquanto isso beneficiar o mercado e o consumidor. E, fora as tentativas vitoriosas de influenciar ou manipular fraudulentamente os mercados, ela não tem de onde extrair poder de pressão sobre o Estado, pois lá se encontra, vigilante, o cidadão.
A grande debilidade da economia neoclássica e neo-keynesiana não é o erro dos pressupostos pelos quais elide a questão do poder. Afinal errar é humano, especialmente quando o erro vai de mãos dadas com a conveniência.
Acontece que, ao elidir a questão do poder – ao tornar a economia uma disciplina não-política -, a teoria neoclássica destrói, pelo mesmo processo, sua relação com o mundo real. Como se isso não bastasse, os problemas deste mundo estão crescendo, tanto em número quanto na profundidade de sua premência social. Em consequência, a economia neoclássica e neo-keynesiana está empurrando seus campeões para fora da arena social, onde eles ou se abstém de jogar ou apostam em lances perdidos.
Especificamente, a exclusão do poder e da dimensão política resultante leva a ciência econômica a prognosticar somente dois problemas econômicos intrínsecos e importantes.
Um deles é o problema microeconômico das imperfeições do mercado – mais especificamente, o do monopólio ou oligopólio em mercados de produtos ou fatores – conduzindo a aberrações na distribuição dos recursos e da renda.
O outro é o problema macroeconômico do desemprego ou da inflação – da falta ou excesso na procura global de bens e serviços, incluindo as implicações monetárias desses fenômenos. Tanto num caso como no outro, o fracasso é dramático. A teoria neoclássica leva a uma falsa solução do problema microeconômico, e a nenhuma solução do problema macroeconômico. Enquanto isso, deixa em boa medida intocada toda uma constelação de outros temas econômicos urgentes.
Hoje em dia, a sociedade como um todo, e até os economistas quando livres dos antolhos profissionais, tem consciência de que as mais importantes áreas de oligopólio — automóveis, borracha, produtos químicos, plásticos, álcool, tabaco, detergentes, cosméticos, computadores, falsos remédios, aventura espacial — são áreas não de baixo mas de alto desenvolvimento; não de insuficiente, mas de excessiva utilização de recursos. E há uma sensação generalizada de que em algumas áreas de monopólio ou oligopólio, na produção de armamentos e sistemas de armamentos, a utilização de recursos é perigosamente ampla.
Em mais uma contradição com as conclusões microeconômicas estabelecidas, assistimos a uma crescente reação por parte da sociedade contra o uso deficiente de recursos em indústrias que, ao menos em escala e estrutura de empresa, aproximam-se do modelo de mercado. Habitação, saúde e transportes locais estão entre os casos mais destacados. Em suas manifestações não-doutrinárias, os economistas também consideram ponto pacífico os inconvenientes sociais e os desconfortos decorrentes da baixa performance desses ramos.
Naturalmente, o defensor da doutrina estabelecida não deixará de argumentar que o excesso e a escassez na utilização de recursos nas áreas que acabamos de mencionar refletem a opção do consumidor. E nas áreas de escassez ele pode, com razão, insistir que a culpa é de empresas que, embora pequenas, são monopólios locais ou refletem o poder monopolista dos sindicatos. Essas explicações sugerem duas perguntas das mais óbvias: por que o consumidor moderno tende crescentemente à insanidade, insiste crescentemente na auto-flagelação ? E por que os pequenos monopólios funcionam mal, e os grandes tão bem ?
Na verdade, o modelo neoclássico não oferece explicação para o mais importante problema microeconômico de nossa época. Não explica por que, em desafio a toda a doutrina, as indústrias de grande poder de mercado apresentam um desenvolvimento muito mais favorável do que as indústrias de pequeno poder de mercado (1).
(1) É possível argumentar que o desempenho da agricultura, um ramo no qual a empresa tem pouco poder de mercado, não é mau. Mas deve-se notar também que em nenhum outro ramo o poder sobre os preços foi tão completamente transferido para as autoridades públicas, nem há um esforço tão grande de controle coletivo dos custos ou de uma socialização mais abrangente da tecnologia.
O fracasso no plano macroeconômico foi, se isso faz alguma diferença, ainda constrangedor.
Salvo em sua manifestação estritamente mística, em um dos ramos da teoria monetária, a validade e aplicabilidade da moderna politica macroeconômica depende do mercado neoclássico. Este mercado, seja competitivo, monopolistico ou oligopolístico, é o guia supremo e impositivo para a empresa que procura maximizar seus lucros.
Quando a produção e o emprego são deficientes, os preceitos de política econômica mandam que se aumente a demanda global; isso corresponde a um estímulo sobre o mercado, ao qual, por sua vez, as empresas reagem. Quando a economia atinge ou está perto de atingir a plena utilização do equipamento e da força de trabalho e o inconveniente social relevante é a inflação, inverte-se o tratamento. A demanda é comprimida; o resultado é, ou um efeito inicial sobre os preços, ou um efeito retardado à medida em que a mão-de-obra excedente procura emprego, as taxas de juros caem e a diminuição dos custos dos fatores leva a preços estáveis ou mais baixos.
Estas são as bases aceitas da política econômica, fielmente decorrentes da fé neoclássica no mercado. As consequências práticas de sua observância dispensam maiores comentários. Nos últimos anos, todos os países desenvolvidos as experimentaram. Em geral o resultado foi desemprego politicamente inaceitável, inflação persistente e (na minha opinião) socialmente perniciosa ou, frequentemente, as duas coisas ao mesmo tempo. O fracasso extremo ocorreu — o que não é de surpreender — no país industrialmente mais avançado, os Estados Unidos. Mas a experiência recente da Grã-Bretanha foi quase igualmente decepcionante.
E podemos supor que hoje muitos políticos canadenses estão convencidos de que uma combinação de desemprego e inflação não é a melhor plataforma para se disputar uma eleição geral.
Quanto a isso, não nos privemos de tudo o que a história recente dos Estados Unidos tem de instrutivo e hilariante. Há quatro anos, Mr. Nixon tomou posse firmemente comprometido com a ortodoxia neoclássica. E nisso contava com o apoio de alguns dos mais dignos e fervorosos expoentes da ciência econômica do país. A descoberta subsequente de que ele era um keynesiano não o levou a um abandono precipitado ou radical de sua fé. A descoberta ocorreu trinta e cinco anos depois de The General Theory; como acabei de observar, toda a política econômica neo- keynesiana baseia-se firmemente no papel supremo do mercado. Mas, então, um ano e meio atrás, preparando-se para a reeleição, Nixon descobriu que o comprometimento de seus economistas com a ortodoxia neoclássica, embora admirável em abstrato, era um luxo que ele não podia mais patrocinar. O presidente renegou o controle de salários e preços; com exemplar flexibilidade de espírito, o mesmo fizeram seus economistas, embora indubitavelmente esta aceitação do mundo real ainda deva passar pelo teste decisivo, qual seja a volta dos apóstatas aos computadores e salas de aula. Mas nossa admiração por essa maleabilidade não nos deve impedir de lembrar que, quando o presidente mudou de rumo, nenhum economista americano, em lugar algum, estava trabalhando sobre a política econômica que as circunstâncias o forçaram a adotar. E é ainda mais inquietante que mesmo agora poucos estejam trabalhando sobre a política econômica que fomos forçados a seguir.
Na verdade, há mais economistas dedicando-se ao esforço de conciliar as medidas de controle com o mercado neoclássico. Isto implicou numa pouco compensadora mistura de economia e arqueologia com wishful thinking. Sustenta-se que, em função do financiamento — ou subfinanciamento — da guerra do Vietnã, gerou-se um impulso inflacionário durante a segunda metade da década dos 60. E a expectativa inflacionária tornou-se parte dos cálculos das empresas e sindicatos. O impulso e a expectativa ainda sobrevivem. Até que estes se dissipem, os controles são necessários.
Depois o mundo neoclássico e neo-keynesiano será restaurado, juntamente com todo o sereno conforto dos bons preceitos de política  econômica. Podemos estar certos de que isso não acontecerá. Nem poderíamos esperar que acontecesse, caso levássemos em conta o papel do poder e da decisão política no comportamento econômico moderno.
Devemos admitir que, atualmente, cerca de metade da produção de nossa economia se dá, não mais num sistema de mercado, mas num sistema de poder ou planificação. (O último termo parece-me mais descritivo, menos pejorativo e, por isso, preferível).
Nos Estados Unidos, o sistema de planificação é constituído por no máximo 2 mil grandes corporações. Em operação, elas têm um poder que transcende o mercado. Elas rivalizam com o poder do Estado, quando não se aproveitam dele. Meus pontos de vista a esse respeito serão familiares ao menos para alguns, e renunciarei ao prazer da repetição. Não posso admitir que o poder da moderna corporação, os propósitos para os quais ele é usado, ou o poder correlato do sindicato moderno pareçam ímplausíveis, ou mesmo muito novos, não estivessem eles em conflito com a doutrina econômica dominante.
Assim, admitimos que a moderna corporação, por si mesma ou associada a outras, exerce uma influência extensiva na determinação de seus preços e custos principais.
Alguém duvidaria que ela usa outros recursos, além dos preços e do mercado, para persuadir seus fregueses? Ou que vai além de seus custos para organizar a oferta? Ou que, a partir de seus lucros e da posse de subsidiárias financeiras, controla suas próprias fontes de capital ? Ou que seu poder de persuasão sobre o consumidor, associado ao esforço semelhante de outras empresas — e com as bênçãos mais que casuais da pedagogia neoclássica —, ajuda a estabelecer os valores da sociedade, notadamente a associação entre o bem-estar e o consumo crescente de seus produtos ?
E como cidadãos, senão como acadêmicos, não negaríamos que a moderna corporação exerce uma excepcional influência sobre o Estado moderno. Suas necessidades em termos de pesquisa e desenvolvimento, pessoal tecnicamente qualificado, obras públicas, apoio financeiro de emergência, transformam-se logo em política oficial.
É o caso das despesas militares, que garantem a demanda para inúmeros de seus produtos. É o caso, talvez, da política exterior, que justifica as despesas militares. E os meios pelos quais o poder empresarial pressiona o Estado são amplamente aceitos. É preciso uma organização para tratar com outra organização. E entre as burocracias Pública e privada — entre a General Motor e o Departamento de Transportes, a General Dynamics e o Pentágono — há uma relação profundamente simbiótica. Uma a uma dessas organizações pode fazer muito pela outra. Há mesmo, entre elas, um amplo e contínuo intercâmbio de pessoal executivo.
Dando o toque final a este exercício de poder, e em posição de destaque, estende- se a auréola brilhante da boa reputação. Os homens que conduzem a moderna corporação, incluindo as sumidades financeiras, legais, técnicas, publicitárias e outras autoridades sacerdotais, são os membros mais renomados, respeitáveis e ricos, da comunidade nacional. Eles são o establishment. Seus interesses tendem a confundir-se com os interesses públicos. São interesses que até alguns economistas acham confortável e compensador abençoar.
Tais interesses, não é preciso que se diga, estão decididamente voltados para o poder — para a conquista da aceitação, por outras pessoas, das metas coletivas ou corporativas. Eles não desaprovam os lucros. Estes são importantes para garantir a autonomia da administração — o que eu chamei de tecnoestrutura — e para estender o controle da empresa à oferta de capital. Os lucros também são fonte de prestígio e, portanto, de influência. Mas tem importância primordial o objetivo muito mais diretamente político do crescimento. O crescimento traz consigo uma estimulante recompensa econômica; magnifica diretamente os salários, gratificações e oportunidades de promoção dos membros da tecnoestrutura. E consolida e magnifica a autoridade. Ele o faz em benefício do indivíduo — o homem que agora comanda uma organização maior do que antes, ou uma parte maior de uma organização. E aumenta a influência da corporação como um todo.
A economia neoclássica não carece de instinto de sobrevivência. Com razão, vê na soberania incontrolada do consumidor, na suprema soberania do cidadão e na maximização dos lucros, com a consequente subordinação da empresa ao mercado, as três pernas do tripé em que se apóia. São essas três proposições que excluem o papel do poder no sistema. Todas as três supoem uma grande dose de fé.
Em principio, ninguém nega que o consumidor moderno é objeto de um maciço esforço de controle por parte do produtor. Os métodos de tal controle são, por sua própria natureza, embaraçosamente visíveis. Pode-se quando muito argumentar que de algum modo eles se anulam uns aos outros.
Hoje em dia, a subordinação do Estado aos interesses das corporações é um dos temas das disputas eleitorais nos Estados Unidos e no Canadá.
Como eleitores, os economistas aceitam a validade desse tema. Apenas sua atividade docente a nega. Mas o empenho da moderna burocracia das corporações em sua própria expansão é, talvez, o fato mais evidente. Não há quem acredite que o conglomerado moderno sempre visa o lucro, mais do que a expansão. Tornou-se um lugar-comum nos últimos anos, claramente refletido nos preços dos seguros, que a conglomeração sempre foi apta para o crescimento mas frequentemente inepta para os lucros.
Continua a existir na economia moderna — e isto eu enfatizo — um mundo de pequenas firmas onde as disposições do mercado são soberanas, onde os custos são dados, onde o Estado é um ente remoto e sujeito às pressões tradicionais dos grupos de interesse econômicos, através das legislaturas, e onde a maximização dos lucros por si só é compatível com a sobrevivência. Sería um erro ver aí a parte classicamente competitiva do sistema — em contraste com o setor monopolístico ou oligopolístico a partir do qual formou-se o sistema de planificação. Antes disso, em sua combinação de estruturas competitivas e monopolísticas, ele se assemelha ao modelo neoclássico global.
Nós temos, repetindo, dois sistemas. Em um o poder ainda é, como sempre, circunscrito pelo mercado. Em outro, ainda em processo de formação, o poder se estende de forma incompleta mas abrangente aos mercados, às pessoas que os patrocinam, ao Estado e, nessa medida, finalmente, à utilização de recursos. A coexistência desses dois sistemas torna-se, por sua vez, uma das chaves principais para o desempenho econômico.
Sendo o poder tão extensamente empregado num vasto setor da economia global, somente a título de passatempo ou evasão intelectual deliberada os economistas podem continuar estabelecendo uma separação entre economia e política.
Quando a moderna corporação adquire poder sobre os mercados, poder na sociedade, poder sobre o Estado, poder sobre as crenças, ela passa a ser um instrumento político, diferente em forma e grau — mas não em gênero — do próprio Estado. Insistir no contrário — negar o caráter político da moderna corporação — não é meramente fugir à realidade. É falsear a realidade. As vítimas dessa falsificação são aqueles que induzimos ao erro. Os beneficiários são as instituições cujo poder dissimulamos. Que não haja dúvidas: a ciência econômica enquanto for ensinada desse modo, torna-se consciente ou inconscientemente parte de um arranjo pelo qual o cidadão ou o estudante é impedido de ver como é ou como será governado.
Isso não implica que de hoje em diante a Economia passe a ser um ramo da ciência política. Esta é uma perspectiva que com razão repeliríamos. A ciência política também é prisioneira de seus estereótipos — incluindo o do controle do Estado pelo cidadão. E mais: enquanto pelo menos em princípio a ciência econômica estimula a reflexão, a ciência política invariavelmente reverencia o homem que só sabe o que foi feito antes dele. A Economia não se torna uma parte da ciência política. Mas a política sim, torna-se — e deve tornar-se — uma parte da ciência econômica.
Haverá medo de que, uma vez abandonada a presente teoria, com seus procedimentos intelectualmente refinados e seu crescente instinto para a mensuração, perderemos o filtro graças ao qual os acadêmicos se distinguem dos impostores e fanfarrões. Esse é sempre um risco que se corre, mas é mais arriscado ainda aferrar-se a um mundo que não é real. E creio que a clareza e consistência intelectual com que veremos o mundo será surpreendente, uma vez que o poder político seja integrado ao nosso sistema. Gostaria agora, de me voltar para essa visão.
A visão neoclássica da economia permite supor uma identidade global de interesses entre a empresa e a sociedade.
A empresa estaria sujeita às disposições da sociedade, seja através do mercado ou das urnas. As pessoas não poderiam estar em nenhum conflito fundamental consigo mesmas — sempre dando por suposta uma razoável equanimidade na distribuição da renda. Uma vez que no sistema de planificação  a empresa aparece dotada de amplos  poderes para perseguir seus próprios interesses, essa suposição torna-se insustentável. Pode ser que incidentalmente seus interesses coincidam com os do público, mas não há razão orgânica para que isso aconteça. Na ausência de prova em contrário, deve-se supor divergência de interesses, não identidade.
A natureza do conflito também se torna previsível.
Sendo o crescimento um dos principais objetivos do sistema de planificação, ele será maior onde o poder for maior. E no setor de mercado da economia crescimento será deficiente, ao menos em termos comparativos. Isso não acontecerá, como sustenta a doutrina neoclássica, porque as pessoas têm uma conveniente tendência a interpretar mal suas necessidades. Acontecerá porque o sistema está constituído de modo a atender mal aos interesses das pessoas, e em seguida obter maior ou menor aquiescência com o resultado.
Não é de surpreender que o sistema vigente acabe levando a uma produção excessiva de automóveis, a um esforço disparatado para cobrir de asfalto as áreas economicamente desenvolvidas do planeta, a um empenho algo lunático na exploração espacial, a um investimento fantasticamente vultuoso e potencialmente suicida em mísseis, submarinos, bombardeiros e porta-aviões. Estes são ramos da indústria com poder para dirigir recursos para o crescimento. E, como é fácil intuir, pôr um freio a essas indústrias é um ponto central para a defesa do público — para uma utilização conveniente de recursos.
Assim a introdução do poder como um aspecto abrangente do nosso esquema permite corrigir os equívocos atuais. Não deixemos de notar que essas são exatamente as indústrias nas quais uma singela visão neoclássica do monopólio e do oligopólio e da maximização dos lucros, através de uma utilização ideal dos recursos, sugeriria, acima de tudo, uma expansão da produção. Quantos erros nos foram permitidos!
A contrapartida da utilização excessiva de recursos no sistema de planificação, onde o poder é amplamente empregado, é uma utilização relativamente deficiente de recursos, onde o uso do poder é circunscrito. Isso é o que acontece na parte da economia onde prevalecem a competição e o monopólio empresarial, que não se confunde com a grande corporação. E se o produto ou serviço estiver diretamente ligado ao conforto ou à sobrevivência, o descontentamento será considerável.
Sabe-se que a habitação, os serviços de saúde, os transportes locais e alguns serviços domésticos são hoje áreas de graves insuficiências. É nesses ramos que todos os governos modernos procuram expandir a utilização dos recursos. Aqui, em desespero de causa, até os defensores fervorosos da livre empresa reconhecem a necessidade de intervenção social, quando não de socialismo.
Mais uma vez, como podemos notar, o erro dos economistas é pernicioso. .Ainda que como cidadãos advoguemos restrições sobre as áreas de excessiva utilização de recursos, não o fazemos enquanto acadêmicos. E embora como cidadãos encareçamos a necessidade da intervenção social, onde as empresas se aproximam do marco neoclássico, enquanto acadêmicos não o fazemos. Neste último caso, não somente disfarçamos o poder das grandes corporações, mas também caracterizamos como anormal a ação terapêutica nas áreas de habitação, assistência médica, transportes etc. — fruto de um erro sui generis que nunca é devidamente explicado. Isso é de lamentar, pois aí estão tarefas que exigem imaginação, dignidade e determinação.
Quando incluímos o poder em nossos cálculos, nossos apuros macroeconômicos também desaparecem. A ciência econômica torna plausível o que, na prática, os governos são obrigados a fazer. As corporações têm poder em seus mercados.
O mesmo acontece, e em parte como consequência, com os sindicatos. A maneira mais cômoda de atender às reivindicações dos sindicatos é transferir o custo dos acordos para o público. As medidas para deter esse exercício de poder, limitando a procura agregada, devem ser severas. E, como era de se esperar, o poder do sistema de planificação tem sido mobilizado para impedir essas medidas macroeconômicas que o afetariam diretamente. Assim, a política monetária é inteiramente permissiva; isto se explica, ao menos em parte, porque seu efeito imediato recai sobre o empresário neoclássico, que precisa tomar dinheiro emprestado. A contenção monetária é muito menos penosa para a grande corporação estabelecida, a qual, como uma medida elementar de poder, conta com um suprimento de capital proveniente de seus lucros, ou de associados financeiros ou de bancos moralmente associados. O poder do sistema de planificação conseguiu livrar-se também dos gastos públicos importantes para si mesmo — auto-estradas, pesquisa industrial, empréstimos de resgate, defesa nacional. Estes têm a sanção de uma finalidade coletiva superior.
Um esforço semelhante, ainda que não tão bem sucedido, está sendo feito em relação aos impostos sobre pessoas jurídicas e físicas. Desse modo, a política fiscal também foi amoldada aos interesses do sistema de planificação.
Daí a inevitabilidade dos controles. Somente restrições fiscais e monetárias das mais severas poderão subjugar o poder combinado das grandes corporações e dos sindicatos. As restrições disponíveis têm um efeito relativamente benigno sobre quem dispõe de poder, mas pesam negativamente sobre os eleitores. Quando não há eleições a vista, talvez essas medidas sejam viáveis. Serão aplaudidas por sua respeitabilidade. Mas não poderão ser toleradas por quem quer que tenha de levar em conta sua repercussão popular.
Ao lado da necessidade de intervenção e organização social no setor de mercado há muitas razões pelas quais os economistas fariam bem em aceitar a inevitabilidade do controle dos salários e dos preços. Isso ajudaria a evitar que os políticos, respondendo ao eco de suas próprias disposições anteriores, encarassem os controles como perniciosos, antinaturais e nessa medida temporários, a serem abandonados tão logo parecessem estar funcionando. Esta é uma maneira medíocre de desenvolver uma administração consistente. E isso levaria os próprios economistas a indagar como o controle pode tornar-se exequível  e como seu efeito sobre a distribuição da renda poderia ser mais equânime.
Admitidos os controles, este último efeito torna-se um problema sério. O mercado deixa de ser um disfarce para a desigualdade, por mais clamorosa que seja, na distribuição da renda. Boa parte da desigualdade deve ser encarada como resultado das relações de poder.
Quando fazemos do poder uma parte do nosso esquema, temas de considerável atualidade são iluminados. Assim, as diferenças sistemáticas entre o desenvolvimento dos setores planificado e de mercado têm como contrapartida diferenças sistemáticas na distribuição setorial da renda. No esquema neoclássico supõe-se, em termos gerais, que a mobilidade dos recursos iguala a distribuição dos lucros entre os diferentes ramos de atividade econômica. Se há desigualdade, ela resulta de barreiras à mobilidade dos fatores. Agora percebemos que, dado seu poder abrangente sobre o mercado, o sistema de planificação pode resguardar-se de movimentos adversos nos termos de intercâmbio.
O mesmo poder permite-lhe aceitar os sindicatos, pois ele não precisa absorver, nem temporariamente, as suas reivindicações. No sistema de mercado, excluídas algumas áreas de monopólio ou controle sindical, não há controle similar sobre os termos de intercâmbio. Dada a inexistência de poder sobre o mercado, não pode haver esse tipo de concessões aos custos da mão-de-obra, porque não há certeza de que possam ser
transferidos. (É devido ao caráter da indústria que procura organizar, não ao seu poder inato, que Cesar Chavez é visto portanto como o novo Lênin). E, no sistema de mercado, os que trabalham por conta própria têm a possibilidade — inexistente no sistema de planificação — de diminuir seus próprios salários (e às vezes os das famílias ou empregados próximos) para sobreviverem.
Assim, há uma desigualdade intrínseca na distribuição da renda entre os dois sistemas. Daí também a campanha por legislação de salário mínimo, apoio aos sindicatos na agricultura, legislação de defesa dos preços e, talvez o mais importante, um piso para a renda familiar, como antídoto para essa desigualdade intersetorial.
Ainda uma vez, esta visão do problema ajusta-se às nossas preocupações atuais.
Legislação de salário mínimo, legislação de defesa dos preços e apoio às negociações coletivas são pontos de controvérsia política permanente, na medida em que se aplicam à pequena empresa e à agricultura. Não são temas importantes nos ramos de produção altamente organizados — no sistema de planificação. E a questão de um piso para a renda familiar, um problema intensamente discutido nos círculos políticos, dividiu recentemente os trabalhadores do sistema de planificação, que não seriam beneficiários, e os do sistema de mercado, que seriam. Ainda uma vez, reforça-se a confiança numa visão da economia que nos prepare para a política do nosso tempo.
A inclusão do poder no cálculo econômico também nos prepara para o grande debate sobre o meio ambiente. A economia neoclássica chama a si a honra de haver previsto possíveis consequências do desenvolvimento econômico sobre o meio ambiente — de haver adotado há algum tempo o conceito de deseconomias externas de produção e, implicitamente, de consumo. Ai de nós, é uma reivindicação modesta! Durante muito tempo a não inclusão das deseconomias externas foi vista como um defeito secundário do sistema de preços — assunto para uma hora de discussão em sala de aula. Nos livros de texto, como notou E. J. Mishan, o tema era largamente ignorado. Tampouco agora a noção de deseconomias externas oferece uma solução útil. Ninguém pode supor, ou supõe realmente, que mais do que uma pequena parcela de estrago — especialmente o que afetou a beleza e tranquilidade do nosso ambiente — possa ser compensada de maneira significativa pela internalização das deseconomias externas.
Se o crescimento é o objetivo central e recompensador da empresa, e se esta dispõe de amplos poderes para impor sua meta à sociedade, as possibilidades de conflito entre crescimento privado e objetivos coletivos, no que diz respeito ao meio ambiente, é imediatamente plausível. Da mesma forma, como este poder baseia-se amplamente na persuasão em vez da força, torna-se plausível o esforço de fazer a poluição parecer aceitável ou compensadora, incluindo o esforço de substituir a implementação pela propaganda das soluções. E esta é a solução que todos os países industrializados têm sido forçados a adotar. Não se trata, primariamente, de internalizar as deseconomias externas. Trata-se, mais do que isso, de especificar os parâmetros legais dentro dos quais o crescimento pode ser procedente ou — como no caso do uso do automóvel nas grandes cidades, do uso do avião sobre as áreas urbanas, de apropriação industrial, comercial e residencial de zonas rurais ou das margens das rodovias — as formas de crescimento incompatíveis com o interesse público. Boa parte da deterioração do nosso meio ambiente teria sido evitada se nossa ciência econômica sustentasse, desde o início, que essa era a consequência previsível das atuais metas econômicas, e não o resultado excepcional de uma aberração peculiar do sistema dc preços.
Seria melhor, em todo caso, dispor de um marco adequado para o futuro, pois esta orientação é objeto de uma forte campanha conservadora. Enquanto os economistas brincam, sem resultado, com as deseconomias externas, outros argumentam que o próprio crescimento é o vilão. Propõe-se a sua abolição. Ver os estragos do meio ambiente com uma consequência natural do poder e dos objetivos do sistema de planificaçao e, consequentemente, afirmar a necessidade de confinar o crescimento dentro de parâmetros compatíveis com o interesse público, pode ser importante para assegurar a continuidade do crescimento econômico.
Finalmente, quando o poder torna-se parte do nosso esquema, o mesmo acontece com Ralph Nader. Estamos preparados para entender a explosão do tema hoje chamado “consumidorismo”. Se o consumidor é a suprema fonte de autoridade, o abuso contra ele cometido é uma falha acidental. Ele não pode estar fundamentalmente em oposição a um sistema econômico sob seu comando. Mas se a empresa produtora tem amplos poderes e objetivos próprios, há toda a probabilidade de conflito. A tecnologia subordina-se então à estratégia de persuasão do consumidor. Os produtos são transformados, não para se tornarem melhores, mas para se tirar partido da crença de que o que é novo e melhor. Há uma alta taxa de malogro quando se projeta não o que é melhor, mas o que é mais vendável. O consumidor — mal persuadido ou desiludido — rebela-se. Não se trata de uma rebelião contra questões secundárias de fraude ou informação deturpada. Trata-se de uma ampla reação contra todo um emprego de poder pelo qual faz-se do consumidor o instrumento de objetivos que não são os seus.
Há duas conclusões que se impõem desse exercício intelectual de incorporação do poder ao nosso esquema.
A primeira é, em certo sentido, animadora: o trabalho dos economistas ainda está por fazer: apenas começou. Se aceitarmos a realidade do poder como parte do nosso esquema, teremos anos de trabalho proveitoso pela frente. E como estaremos sintonizados com temas reais, e como temas reais inspiraram paixões, nossa vida será mais uma vez agradavelmente plena, talvez proveitosamente arriscada.
A outra conclusão diz respeito ao Estado. Pois quando fazemos do poder, e portanto da política, uma parte do nosso esquema, não podemos mais eludir ou disfarçar o caráter contraditório do Estado moderno. O Estado é o principal objeto do poder econômico. Ele se encontra aprisionado. Contudo, em todos os problemas que enumeramos — restrições ao uso excessivo de recursos, organização para contrabalançar a utilização inadequada de recursos, controles, ação para compensar as desigualdades sistemáticas, proteção ao meio ambiente, defesa do consumidor, a ação corretiva cabe ao Estado. A raposa é a administradora todo-poderosa do galinheiro. A elas as galinhas devem pedir providências.
Aí está talvez a nossa principal questão. É possível emancipar o Estado do controle do sistema de planificação ? Ninguém sabe. E, na ausência de conhecimento, na certa ninguém há de sugerir que isso será fácil. Mas há um sopro de esperança. Como sempre, as circunstâncias tomam a nossa dianteira.
As últimas eleições nos Estados Unidos foram disputadas, quase exclusivamente, em torno de pontos de divergência entre os objetivos do sistema de planíficação, ou de seus principais integrantes, e os objetivos do público.
Um desses pontos é a questão dos gastos de defesa. A questão da reforma fiscal é outro. A carência de habitações, transportes de massa, assistência médica, serviços urbanos, um terceiro. A questão de uma renda mínima garantida é outro desses pontos. Este, como já sublinhei, diz respeito às rendas fora do sistema de planificação — aos explorados no sistema de mercado, aos que são rejeitados por ambos os sistemas. O meio ambiente também é um ponto de divergência — com o conflito entre a meta de crescimento da tecnoestrutura e o interesse público.
Somente o controle dos salários e dos preços não foi debatido nas últimas eleições. Na certa, isso aconteceu porque os economistas de tendência ortodoxa de ambos os lados consideraram embaraçoso demais discutir o problema.
Não menciono esses temas com outra preocupação que a de mostrar como são presentes e reais os problemas que vêm à tona quando fazemos do poder parte de nossos cálculos. É quase desnecessário lembrar que as questões políticas não são criadas pelos partidos nem pelos políticos, mas pelas circunstâncias.
Uma vez que o poder seja incorporado ao nosso esquema, naturalmente não fugiremos ao desafio político decorrente da discussão de problemas reais. Com isso chego ao último ponto desta exposição.
Não proponho partidarismo em nossa economia, mas neutralidade. Deixemos claro, porém, o que é neutralidade. Se o Estado deve ser emancipado dos interesses econômicos, uma ciência econômica neutra não negaria essa necessidade. E isso é o que a ciência econômica faz atualmente. Diz ao jovem e suscetível e ao velho e vulnerável que a vida econômica nada tem a ver com poder e política, porque a empresa está firmemente subordinada ao mercado e ao Estado, vale dizer, ao consumidor e ao cidadão. Tal ciência econômica não é neutra. E uma aliada importante e inestimável daqueles cujo poder depende da existência de um público submisso. Se o Estado é o comitê executivo da grande corporação e do sistema de planificação, em parte é porque a economia neoclássica é seu instrumento para neutralizar a suspeita de que assim seja. Falei da emancipação do Estado dos interesses econômicos. Para o economista, não pode haver dúvida quanto ao ponto de partida dessa tarefa. Ela começa pela emancipação das convicções econômicas.


https://dialogosessenciais.com/2015/06/20/o-poder-e-o-economista-util-john-kenneth-galbraith-2/


O Novo Regime Fiscal
Monica de Bolle
10 Outubro 2016 | 09h49
ESTADÃO ECONOMIA
A PEC do Teto é marco importante para nosso pobre País desmantelado. A PEC do Teto traz esperanças de que possamos começar a resolver nosso eterno problema de falta de controle sobre o gasto público. Mas, como qualquer outro esforço humano, a PEC do Teto tem qualidades e defeitos, vantagens e desvantagens. Urge discuti-las abertamente com toda a sociedade de forma clara, não apenas com os homens do Congresso Nacional.
Tenho algo a confessar: depois que a Nova Matriz Econômica quebrou o Brasil no governo Dilma, qualquer iniciativa que carregue o adjetivo “novo”ou “nova” me dá calafrios.
O Presidente Temer nos diz que em breve teremos um Novo Regime Fiscal no Brasil. Que com esse Novo Regime Fiscal iremos consertar o País de vez, vez por todas. Que sem esse Novo Regime Fiscal o país quebra de vez, vez por todas. Que quem se opuser ao Novo Regime Fiscal está fazendo oposição aberta ao País — aqui, o Presidente chegou desconfortavelmente perto das atitudes de sua antecessora, que costumava dizer que quem criticava suas políticas só podia ser espécie esquisita, o tal “pessimista adversativo”.
Até recentemente, o que chamavam de PEC do Teto, a proposta de emenda constitucional que prevê limite de velocidade para o aumento dos gastos, parecia uma boa iniciativa, ainda que contivesse alguns furos — teto com goteiras, como afirmei em uma de minhas colunas sobre o assunto. Contudo, na semana passada me dei conta — com certo atraso já que borboletas e reuniões do FMI têm ocupado boa parte de meu tempo — de que o texto enviado para a aprovação da Comissão Especial da Câmara é mais do que singelo teto. É Novo Regime Fiscal.
O Novo Regime Fiscal é ambicioso. Prevê duas décadas de controle ferrenho sobre os gastos com regra automatizada, regra que impede que a despesa primária total do governo cresça acima da inflação por todo esse tempo. Que o governo brasileiro é viciado em gastos é algo que já sabemos há tempos. Que o Novo Regime Fiscal tente consertar isso colocando o governo em espécie de rigoroso programa de desintoxicação parece condizente com o que se recomenda aos dependentes de “gastocaína”. Mas, por 20 anos? Serão 20 anos em que a política fiscal será colocada em piloto automático, sem que a sociedade possa ter palavra sequer sobre escolhas de políticas públicas que recairão sobre as gerações futuras? São apenas perguntas, ainda não explicadas à população, concentradas que estão nossas autoridades em assegurar os votos no Congresso.
Mas, disso já sabiam os que estavam familiarizados com o texto original da PEC do Teto. O que não sabíamos — não todos, ao menos — é que o Novo Regime Fiscal em sua forma revisada e parruda prevê que o salário mínimo seja a variável de ajuste para qualquer excesso de velocidade da despesa durante os próximos vinte anos. No texto revisado, o Novo Regime Fiscal propõe que, se o governo extrapolar seu limite, ele passa a não poder tomar qualquer medida que aumente a despesa obrigatória acima da inflação do ano anterior enquanto o excesso não for corrigido. Aumentos do salário mínimo acima da inflação poderiam ter esse efeito, já que parte relevante das despesas é vinculada ao salário mínimo — os benefícios previdenciários, por exemplo. Diz o Novo Regime Fiscal que, quando as despesas totais superarem o limite estabelecido, o salário mínimo só pode ser reajustado pela inflação. Pausa para respirar.
No Brasil, o salário mínimo é reajustado anualmente, desde 2006, a partir da inflação do ano anterior e do crescimento de dois anos antes. A lei que estabeleceu essa regra está longe do ideal: mantém os ganhos reais do salário mínimo e de todas as despesas a ele vinculadas sem levar em conta a realidade fiscal do País naquele momento. Recomendável seria desvincular essas despesas do salário mínimo. Mas, isso é difícil. Tão difícil que exige contenciosa discussão sobre a reforma da previdência. Portanto, porque não alterar diretamente o reajuste do salário mínimo, atropelando a lei mal-concebida de 2006, no bojo no Novo Regime Fiscal?
Com a introdução de algumas palavras no item VIII do Artigo 104, o Novo Regime Fiscal abre flanco para que, nos próximos 20 anos, quando o governo for pressionado pelos poderosos lobbies do funcionalismo público, o custo do ajuste recaia sobre o trabalhador assalariado.
Sem qualquer juízo de valor, cabe refletir se o Novo não tem cheiro de velho demais. Deixo isso para os leitores.



http://economia.estadao.com.br/blogs/monica-de-bolle/o-novo-regime-fiscal/

Nenhum comentário:

Postar um comentário