quinta-feira, 18 de maio de 2017

O ÚLTIMO CUBA-LIBRE

97. O ÚLTIMO CUBA-LIBRE




Os romances de Conan Doyle me deram o desejo de empreender alguma façanha no gênero das de Sherlock Holmes. Pareceu-me que deles se concluía que tudo estava em prestar atenção aos fatos mínimos. Destes, por uma série de raciocínios lógicos, era sempre possível subir até o autor do crime.
Quando acabara a leitura do último dos livros de Conan Doyle, meu amigo Alves Calado teve a oportuna nomeação de delegado auxiliar. Íntimos, como éramos, vivendo juntos, como vivíamos, na mesma pensão, tendo até escritório comum de advocacia, eu lhe tinha várias vezes exposto minhas idéias de "detetive". Assim, no próprio dia de sua nomeação ele me disse:
- Eras tu que devias ser nomeado!
Mas acrescentou, desdenhoso das minhas habilidades:
- Não apanhavas nem o ladrão que roubasse o obelisco da Avenida!
Fi-lo, porém, prometer que, quando houvesse algum crime, eu o acompanharia a todas as diligências. Por outro lado levei-o a chamar a atenção do seu pessoal para que, tendo notícia de qualquer roubo ou assassinato, não invadisse nem deixasse ninguém invadir o lugar do crime.
- Alta polícia científica - disse ele, gracejando.
Passei dias esperando por algum acontecimento trágico, em que pudesse revelar minha sagacidade. Creio que fiz mais do que esperar: cheguei a desejar.
Uma noite, fui convidado por Madame Guimarães para uma pequena reunião familiar. Em geral, o que ela chamava "pequenas reuniões" eram reuniões de vinte a trinta pessoas, da melhor sociedade.
Dançava-se, ouvia-se boa música e quase sempre ela exibia algum "número" curioso: artistas de teatro, de "music-hall" ou de circo, que contratava para esse fim. O melhor, porém, era talvez, a palestra que então se fazia, porque era mulher inteligente e só convidava gente de espírito. Fazia disso questão.
A noite em que eu lá estive entrou bem nessa regra.
Em certo momento, quando ela estava cercada por uma boa roda, apareceu Sinhazinha Ramos. Sinhazinha era sobrinha de Madame Guimarães; casara-se pouco antes com um médico de grande clinica. Vindo só, todos lhe perguntaram:
- Como vai seu marido?
- Tem trabalho por toda a noite, com uma cliente.
- É admirável como os médicos casados têm sempre clientes noturnas.
- Má língua! - replicou ela. - Ele sempre os teve. Outra senhora, Madame Caldas, acudiu:
- Os maridos, quando querem passar a noite fora de casa, acham sempre pretextos. Voltei-me para o Dr. Caldas, que era advogado, e interpelei-o:
- Tem a palavra o acusado!
O Dr. Caldas não gostou da afirmação da mulher. Resmungou apenas:
- Tolices de Adélia. ..
O embaraço dele se dissipou, porque Madame Guimarães perguntou à sobrinha:
- Onde deixaste tua capa?
- No automóvel. Não quis ter a maçada de subir.
A casa era de dois andares e Madame Guimarães, nos dias de festas, tomava a si arrumar capas e chapéus femininos no seu quarto:
- Serviço de vestiário é exclusivamente comigo.
Não quero confusões. Fechado esse parêntesis, a conversa voltou ao ponto em que estava. Declarei, então, que tinha pensado em casar-me. Antes, porém, procurara obter um lugar na Inspetoria de Iluminação. Mesmo de graça, me servia.
- Nunca a iluminação se veria tão bem fiscalizada... Pelo menos seria isso que teria sempre para dizer a minha mulher. Concluí melancolicamente:
- Não arranjei o lugar, não me casei.
Houve quem sorrisse. Sempre se encontram, felizmente, pessoas polidas, que fingem achar espirituosas mesmo as coisas mais insípidas.
Nisto, uma das senhoras presentes veio despedir-se de Madame Guimarães. Precisava de seu chapéu. A dona da casa que, para evitar trocas e desarrumações, era a única a penetrar no quarto que transformara em vestiário, levantou-se e subiu para ir buscar o chapéu da visita, que desejava partir.
Não se demorou muito tempo. Voltou com a fisionomia transtornada:
- Roubaram-me. Roubaram o meu anel de brilhantes. ..
Todos se reuniram em torno dela. Como era? Como não era? Não havia, aliás, nenhuma senhora que não o conhecesse: um anel com três grandes brilhantes de um certo mau gosto espetaculoso, mas que valia de 60 a 80 contos.
Sherlock Holmes gritou dentro de mim: "Mostra o teu talento, rapaz!"
Sugeri logo que ninguém entrasse no quarto. Ninguém. Era preciso que a polícia pudesse tomar as marcas digitais que por acaso houvesse na mesa de cabeceira de Madame Guimarães. Porque era lá que tinha estado a jóia.
Saltei ao telefone, toquei para o Alves Calado, que se achava de serviço nessa noite, e preveni-o do que havia, recomendando-lhe que trouxesse alguém, perito em datiloscopia. Ele respondeu de lá com a sua troça habitual:
- Vais afinal entrar em cena com a tua alta policia cientifica?
Objetou-me, porém, que a essa hora não podia achar nenhum perito. Aprovou, entretanto, que eu não consentisse ninguém entrasse no quarto. Subi então com todo o grupo para fecharmos a porta a chave. Antes de se fechar, era, porém, necessário que Madame Guimarães tirasse as capas que estavam no seu leito. Todos ficaram no corredor, mirando, comentando. Eu fui o único que entrei, mas com um cuidado extremo, um cuidado um tanto cômico de não tocar em coisa alguma. Como olhasse para o teto e para o assoalho, uma das senhoras me perguntou se estava jogando "o carneirinho-carneirão, olhai p'ra o céu, olhai p'ra o chão".
Retiradas as capas, o zum-zum das conversas continuava. Ninguém tinha entrado no quarto fatídico. Todos o diziam e repetiam.
Foi no meio dessas conversas que Sherlock Holmes cresceu dentro de mim. Anunciei:
- Já sei quem furtou o anel.
De todos os lados surgiam exclamações. Algumas pessoas se limitavam a interjeições: "Ah!" "Oh!". Outras perguntavam quem tinha sido.
Sherlock Holmes disse o que ia fazer, indicando um gabinete próximo:
- Eu vou para aquele gabinete. Cada uma das senhoras aqui presentes fecha-se ali em minha companhia por cinco minutos.
- Por cinco minutos? - indagou o Dr. Caldas.
- Porque eu quero estar o mesmo tempo com cada uma, para não se poder concluir da maior demora com qualquer delas, que essa foi culpada. Serão para cada uma cinco minutos cronométricos.
O Dr. Caldas voltou, gracejando:
- Mas V. veja o que faz. Não procure namorar minha mulher, senão eu lhe dou um tiro. Houve uma hesitação. Algumas diziam estar acima de qualquer suspeita, outras que não se submetiam a nenhum inquérito policial. Venceu, porém, o partido das que diziam "quem não deve não teme". Eu esperava, paciente. Por fim, quando vi que todas estavam resolvidas, lembrei que seria melhor quem fosse saindo, despedir-se e partir.
E a cerimônia começou. Cada uma das senhoras esteve trancada comigo justamente os cinco minutos que eu marcara.
Quando a última partiu, saiu do gabinete, achei à porta, ansiosa, Madame Guimarães:
- Venha comigo - disse-lhe eu.
Aproximei-me do telefone, chamei o Alves Calado e disse-lhe que não precisava mais tomar providência alguma, porque o anel fora achado.
Voltando-me para Madame Guimarães entreguei-o então. Ela estava tão nervosa que me abraçou e até beijou freneticamente. Quando, porém, quis saber quem fora a ladra, não me arrancou nem uma palavra.
No quarto, ao ver Sinhazinha Ramos entrar, tínhamos tido, mais ou menos, a seguinte conversa:
- Eu não vou deitar verdes para colher maduros, não vou armar cilada alguma. Sei que foi a senhora que tirou a jóia de sua tia.
Ela ficou lívida. Podia ser medo. Podia ser cólera. Mas respondeu firmemente:
- Insolente! É assim que o senhor está fazendo com todas, para descobrir a culpada?
- Está enganada. Com as outras converso apenas, conto-lhes anedotas. Com a senhora, não; exijo que me entregue o anel.
Mostrei-lhe o relógio para que visse que o tempo estava passando.
- Note - disse eu - que tenho uma prova. Posso fazê-Ia ver a todos. Ela se traiu, pedindo:
- Dê sua palavra de honra que tem essa prova!
Dei. Mas o meu sorriso lhe mostrou que ela, sem dar por isso, confessara indiretamente o fato.
- E já agora - acrescentei - dou-lhe também a minha palavra de honra que nunca ninguém saberá por mim o que fez.
Ela tremia toda.
- Veja que falta um minuto. Não chore. Lembre-se que precisa sair d'aqui com uma fisionomia jovial. Diga que estivemos falando de modas.
Ela tirou a jóia do seio, deu-m'a e perguntou:
- Qual é a prova?
- Esta - disse-lhe eu, apontando para uma esplêndida rosa-chá que ela trazia.
- É a única pessoa, esta noite, que tem aqui uma rosa amarela. Quando foi ao quarto de sua tia, teve a infelicidade de deixar cair duas pétalas dela. Estão junto da mesa de cabeceira.
Abri a porta. Sinhazinha compôs magicamente, imediatamente, o mais encantador, o mais natural dos sorrisos e saiu dizendo:
- Se este Sherlock fez com todas o mesmo que comigo, vai ser um fiasco absoluto. Não foi fiasco, mas foi pior.
Quando Sinhazinha chegara, subira, logo. Graças à intimidade que tinha na casa, onde vivera até a data do casamento, podia fazer isso naturalmente. Ia só para deixar a sua capa dentro de um armário. Mas, à procura de um alfinete, abriu a mesinha de cabeceira, viu o anel, sentiu a tentação de roubá-lo e assim fez. Lembrou-se que tinha de ir para a Europa daí a um mês. Lá venderia a jóia. Desceu então novamente com a capa e mandou pô-Ia no automóvel. E como ninguém a tinha visto subir, pôde afirmar que não fora ao andar superior.
Eu estraguei tudo.
Mas a mulherzinha se vingou: a todos insinuou que provavelmente o ladrão tinha sido eu mesmo, e vendo o caso descoberto antes da minha retirada, armara aquela encenação para atribuir a outrem o meu crime.
O que sei é que Madame Guimarães, que sempre me convidava para as suas recepções, não me convidou para a de ontem... Terá talvez sido a primeira a acreditar na sobrinha.

MARCOS REY (1925 –1999 I Brasil)

Pioneiro indiscutível do policial no Brasil, numa época em que se desconhecia o gênero entre nós ou se lhe torcia o nariz, coube a um literato e membro da Academia Brasileira de Letras, apaixonado pelas histórias de Conan Doyle, escrever (aliás, o primeiro livro brasileiro de contos policiais) Se eu Fosse Sherlock Holmes. Medeiros e Albuquerque tem presença na nossa antologia com estas histórias que casam policial e ficção política, outra raridade entre nós. Medeiros e Albuquerque também coordenou e foi um dos autores junto com Coelho Neto, Viriato Corrêa e Afrânio Peixoto, do primeiro romance policial brasileiro: O Mystério, editado por Monteiro Lobato, em 1920.

Referência

file:///C:/Users/User/Desktop/Os%20100%20Melhores%20Contos%20de%20Crime%20e%20Mist%C3%A9rio%20da%20Literatura%20Universal%20-%20Fl%C3%A1vio%20Moreira%20Da%20Costa.pdf

https://pbs.twimg.com/media/Bc3Fa0gCEAAcvGJ.jpg

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