sexta-feira, 14 de julho de 2017

. UM ASSASSINATO ABSOLUTAMENTE BANAL

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- Nos sábados fechamos ao meio-dia - disse a loura do escritório da agência de imóveis. - Assim, se depois disso estiver ainda com a chave, por favor, deixe-a cair na caixa de correspondência. É a única que temos, e talvez outras pessoas queiram visitar o imóvel na segunda-feira. Assine aqui, por favor, senhor.

0 "senhor" fora pronunciado de má vontade, como um pensamento tardio. 0 tom dela era reprovativo. Não acreditava que ele fosse comprar o apartamento, não esse velho surrado, com seu ar de afetada e espúria distinção, a voz secarrona. Na função dela, em pouco tempo adquiria-se um faro especial para o legítimo interessado. Ernest Gabriel. Um nome estranho, meio comum e meio fantasioso.

Não obstante, ele pegou a chave com polidez e agradeceu-lhe o trabalho. Ela pensou que não era trabalho nenhum. Deus sabia que eram bem poucos os que se interessavam por aquela pequena e sórdida lixeira, não ao preço que estavam pedindo. Ele podia até ficar uma semana com a chave, que pouco lhe importaria.

E tinha razão. Gabriel não estava a fim de comprar, mas somente de ver. Era a primeira vez que voltava ali, desde que tudo acontecera, dezesseis anos antes. Não vinha como peregrino nem penitente. Chegara movido por alguma compulsão que não se dera ao trabalho de analisar. Estava indo visitar seu único parente vivo, uma tia idosa que fora recolhida recentemente a uma enfermaria geriátrica. Ele nem chegara a perceber que o ônibus passava pelo apartamento.

De repente, no entanto, rodavam aos solavancos através de Camden Town, e a rua pareceu-lhe familiar, como uma fotografia ajustando-se ao foco. Com um estremecimento de surpresa, ele reconheceu a dupla fachada da loja e do apartamento sobre ela. Havia o anúncio de um agente imobiliário na janela. Quase sem pensar, ele descera do ônibus na parada seguinte, voltara para verificar o nome e caminhara cerca de meio quilômetro até a imobiliária. Aquilo lhe parecera tão natural e inevitável como sua viagem diária de ônibus para o trabalho.

Vinte minutos mais tarde, introduzia a chave na fechadura da porta da frente e entrava no vazio abafadiço do apartamento. As paredes encardidas ainda retinham o cheiro de cozinha. Havia diversos envelopes espalhados sobre o linóleo gasto, sujos e pisoteados por visitantes anteriores. A lâmpada pendia nua no vestíbulo, e a porta dando para a sala de estar estava aberta. À direita ficava a escada, à esquerda, a cozinha.

Gabriel parou um instante, depois foi até a cozinha. Das janelas, encortinadas até metade com algodão precisando lavar, ele ergueu os olhos para o grande edifício negro nos fundos do apartamento, uma parede lisa, com exceção de uma janelinha quadrada bem alta, no quinto pavimento. Daquela janelinha, dezesseis anos atrás, é que ele espiara Denis Speller e Eileen Morrisey representarem sua pequena e banal tragédia até o fim.

Gabriel não tinha o direito de espiá-los, como tampouco tinha qualquer direito de ficar no prédio depois das dezoito horas. Este havia sido o ponto essencial de seu terrível dilema. Acontecera por acaso. O Sr. Maurice Bootman o incumbira, como arquivista da firma, de examinar os papéis do falecido Sr. Bootman na salinha do andar de cima, para o caso de haver alguma coisa que devesse ser arquivada. Não eram papéis confidenciais ou importantes - estes já haviam sido examinados pela família e procuradores da firma, meses antes. Agora tratava-se apenas de uma miscelânea, uma coleção de memorandos amarelados e antigos, velhas contas, recibos e desbotados recortes de jornal, que tinham sido enfeixados e colocados na mesa de trabalho do velho Sr. Bootman. Em vida, ele havia sido um grande colecionador de ninharias.

Entretanto, no fundo da última gaveta do lado esquerdo Gabriel tinha encontrado uma chave. Foi por casualidade que a experimentou na fechadura do armário de canto. E, no armário, Gabriel descobriu a pequena mas selecionada coleção de pornografia do finado Sr. Bootman.

Ele sabia que tinha de ler os livros; não apenas aproveitando-se de minutos sub-reptícios, com um ouvido atento a pisadas na escada ou ao gemido do elevador aproximando-se, sempre temendo que fosse notada a sua ausência da sala de arquivos em que trabalhava. Não, teria que lê-los em privacidade e sossego. Então, idealizou um plano.

Não foi difícil. Como pessoa de confiança entre os empregados, ele tinha uma das chaves Yale para a porta lateral onde eram entregues mercadorias. À noite, era trancada por dentro pelo porteiro, antes de encerrado seu expediente. Não foi difícil para Gabriel, sempre dos últimos a sair, encontrar oportunidade de destrancar os ferrolhos, antes de ir embora pela porta principal, em companhia do porteiro. Arriscava-se a isso apenas um dia na semana, e o escolhido foi a sexta-feira.

la depressa para casa, fazia sua refeição solitária ao lado do bico de gás em seu sala-quarto, depois voltava ao prédio e nele entrava pela porta do lado. Havia necessidade apenas de, na manhã de segunda-feira, ficar esperando que o escritório abrisse e postar-se entre os primeiros que entravam, para poder trancar a porta lateral antes que o porteiro fizesse a visita ritual, a fim de destrancá-Ia para as entregas daquele dia.

Aquelas noites de sexta-feira tornaram-se uma desesperada, embora vergonhosa, alegria para Gabriel. O padrão era sempre o mesmo. Ele se sentava encolhido na baixa poltrona de couro do velho Sr. Bootman, diante da lareira, os ombros encurvados sobre o livro em seu colo, os olhos acompanhando a poça de luz da lanterna que ia movendo acima de cada página. Gabriel nunca ousara acender a luz da sala e tampouco usava a lareira a gás, inclusive nas mais frias noites. Receava que o silvo do fogo pudesse encobrir o som de pés aproximando-se, que o clarão talvez aparecesse através das grossas cortinas da janela ou que,
de algum modo, o cheiro do gás pairando ali dentro até a manhã da segunda feira seguinte o denunciasse. Sentia um medo mórbido de ser descoberto, mas esse medo aumentava o excitamento de seu secreto prazer.

Foi na terceira sexta-feira de janeiro que os viu pela primeira vez. Fazia uma noite amena, porém estava nublada e sem estrelas. A chuva que caíra mais cedo enlameara as calçadas e borrava os garranchos dos cartazes que anunciavam as manchetes dos jornais. Gabriel limpou os pés cuidadosamente antes de subir para o quinto andar. A claustrofóbica sala recendia a azedo e poeira, sendo o ar ali dentro mais frio que o da noite lá fora. Ele refletiu se ousaria abrir a janela, para deixar penetrar um pouco da suavidade do céu lavado pela chuva.

Então, viu a mulher. Abaixo dele ficavam as entradas dos fundos das duas lojas, cada uma encimada por um apartamento. Um dos apartamentos tinha as janelas tapadas com tábuas, porém o outro dava a impressão de ser habitado. Chegava-se a ele por um lance de degraus de ferro, que levavam a um pátio asfaltado. Ele viu a mulher ao clarão de uma lâmpada de iluminação da rua quando, parada ao pé dos degraus, remexia o interior de sua bolsa. Então, como que ganhando decisão, ela subiu depressa os degraus e quase atravessou correndo o pátio, até a porta do apartamento.

Ele espiou, enquanto a mulher se confundia com as sombras da entrada, girava rapidamente a chave na fechadura e desaparecia de vista. Gabriel teve tempo apenas de reparar que ela vestia uma capa impermeável de tom pálido, abotoada até em cima sob uma cabeleira clara, e levava uma sacola de barbante, como se contendo mantimentos. Aquilo parecia uma chegada em casa
estranhamente furtiva e solitária.

Gabriel esperou. Quase imediatamente viu a luz ser acesa no aposento à esquerda da porta. Talvez ela estivesse na cozinha. Ele podia ver-lhe a sombra esfumada indo para cá e para lá, encurvando-se e depois alongando-se. Adivinhou que a mulher tirava os mantimentos da sacola. Então, a luz do aposento apagou-se.

Durante alguns instantes o apartamento ficou na obscuridade. Depois surgiu luz na janela do andar de cima, agora mais viva, permitindo-lhe ver melhor a mulher. Ela talvez ignorasse o quanto melhor era percebida. As cortinas estavam fechadas, porém eram finas. Talvez os proprietários não esperassem ser espionados e tinham ficado descuidados. Embora a silhueta da mulher fosse apenas um leve borrão, Gabriel podia ver que carregava uma bandeja Provavelmente ia comer seu jantar na cama. Agora ela se despia.

Ele podia vê-la erguendo as peças de roupa acima da cabeça e torcendo-se para ficar livre das meias, depois tirar os sapatos. De repente, a mulher chegou bem perto da janela, deixando perceptível o contorno do corpo. Parecia estar vigiando e escutando. Gabriel percebeu que continha a respiração. Então ela se afastou, e a claridade da luz diminuiu. Sem dúvida apagara a lâmpada do teto e estava usando a da cabeceira. O aposento agora ficara iluminado por um clarão rosado e mais suave, dentro do qual a mulher se movia, insubstancialmente, como um sonho.

Gabriel permaneceu com o rosto pressionado contra a janela fria, ainda espiando. Pouco depois das vinte horas, o rapaz chegou. Gabriel sempre pensou nele como "o rapaz". Mesmo daquela distância, eram aparentes a sua juventude, sua vulnerabilidade. Aproximou-se do apartamento com mais firmeza do que a mulher, mas também depressa, fazendo uma pausa no alto dos degraus, como que para avaliar a extensão do pátio lavado pela chuva.

Ela devia estar esperando que ele batesse à porta. Deixou-o entrar imediatamente, a porta mal se abrindo. Gabriel sabia que ela estava nua, quando o deixou entrar. E então, eram duas as sombras no andar de cima, sombras que se encontravam e separavam, que tornavam a unir-se antes de se moverem e juntarem, até a cama, saindo do campo visual de Gabriel.

Na sexta-feira seguinte, ele espiou para ver se os dois apareciam novamente. Eles chegaram, com a mesma regularidade, a mulher primeiro, às dezenove e vinte, o rapaz quarenta minutos mais tarde. Mais uma vez Gabriel permaneceu rigidamente atento em seu posto de observação, enquanto a luz na janela do andar de cima era acesa, depois diminuindo de intensidade. As duas figuras nuas, vistas difusamente por trás das cortinas, moviam-se de um lado para outro, juntavam-se e separavam-se, fundiam-se e afastavam-se, na própria ritualística de uma dança.

Nesta sexta-feira, Gabriel esperou até que eles fossem embora. O rapaz saiu primeiro, esgueirando-se rapidamente pela porta entreaberta e quase saltando pelos degraus abaixo, como se em exultante alegria. A mulher o seguiu cinco minutos mais tarde, trancando a porta ao sair e caminhando a toda pressa pelo asfalto, de cabeça baixa. Depois disso, ele os espiou todas as sextas-feiras. Aqueles dois o mantinham mais fascinado do que os livros do Sr. Bootman. A rotina de ambos praticamente não mudava. Às vezes o rapaz chegava um pouco atrasado, e Gabriel via a mulher esperando por ele imóvel, por trás das cortinas do quarto. Também ele ficava com a respiração suspensa, partilhando a agonia da impaciência da mulher, ansiando para que o rapaz chegasse. Em geral, ele vinha com uma garrafa debaixo do braço, mas certa semana a trouxera em uma cesta para vinho, que era carregada com enorme cuidado. Talvez fosse algum aniversário a comemorar, uma noite especial para eles. A mulher sempre levava a sacola de mantimentos e sempre os dois comiam juntos no quarto.

Sexta-feira após sexta-feira, Gabriel se postava no escuro, de olhos fixos naquela janela do andar de cima, esforçando-se em decifrar os contornos dos dois corpos nus, retratando o que deviam estar fazendo.

Fazia sete semanas que eles se encontravam, quando aquilo aconteceu. Nessa noite, Gabriel chegou tarde ao prédio. Seu ônibus costumeiro não estava rodando e o primeiro a chegar vinha lotado. Quando finalmente ele chegou ao seu posto de observação, já havia luz acesa no quarto. Apertou o rosto contra a vidraça, empanando-a com sua respiração quente. Esfregou-a rapidamente com o punho do casaco, a fim de limpá-la, e tornou a espiar. Por um momento, julgou que havia duas figuras no quarto, mas aquilo certamente seria algum truque da luz. O rapaz só deveria chegar daí a uns trinta minutos, porém a mulher tinha sido pontual, como sempre.

Vinte minutos mais tarde, ele foi ao lavatório, no andar de baixo. Havia ficado muito mais confiante durante as últimas poucas semanas e agora se movia pelo prédio, silenciosamente, usando apenas sua lanterna como luz, mas com quase a mesma segurança de durante o dia. Ao retornar à janela, seu relógio acabara de marcar as vinte horas e, inicialmente, imaginou ter perdido a chegada do rapaz. Não, a figura ágil nesse instante corria pelos degraus acima e cruzava o asfalto até o abrigo da entrada.

Gabriel ficou espiando, enquanto ele batia e esperava que a porta se abrisse. Entretanto, ela continuou fechada. A mulher não apareceu. Havia luz no quarto, mas nenhuma sombra movendo-se atrás das cortinas. O rapaz tornou a bater. Gabriel chegava a detectar o tremor dos nós dos dedos contra a porta. Ele esperou de novo. Então, recuando, olhou para a janela iluminada. Talvez estivesse arriscando-se a um chamado em voz baixa. Gabriel nada podia ouvir, mas sentia a tensão daquela figura à espera.

O rapaz bateu mais uma vez. E mais uma vez não houve resposta. Gabriel ficou espiando e sofrendo com ele até que, às vinte horas e vinte minutos, o rapaz finalmente desistiu e deu meia-volta. Gabriel também estirou as pernas com cãibras e saiu para a noite. O vento aumentava e uma lua recente passeava através das nuvens esfiapadas. Começava a esfriar. Ele não usava casaco, cujo calor lhe fazia falta. Encolhendo os ombros contra a mordida do vento, compreendeu ser aquela a última sexta-feira que iria ao prédio fora de horas. Para ele, como para aquele desolado rapaz, isto era o fim de um capítulo.

Gabriel leu a primeira notícia do assassinato em seu jornal matinal, a caminho do trabalho na segunda-feira seguinte. Imediatamente identificou a foto do apartamento, embora lhe parecesse curiosamente estranho, com o punhado de detetives à paisana conferenciando junto à porta e o fleumático policial uniformizado no alto dos degraus.

Até aí, a história era superficial. Uma Sra. Eileen Morrisey, de trinta e quatro anos, havia sido encontrada morta a facadas em um apartamento de Camden Town, já alta noite de domingo. A descoberta fora obra dos inquilinos, Sr. e Sra. Kealy, que voltavam de uma visita aos pais do Sr. Kealy, chegando à casa bem tarde no domingo. A morta, mãe de duas gêmeas com doze anos, era amiga da Sra. Kealy. O inspetor-chefe, detetive William Holbrook, estava incumbido da investigação. Sabia-se que a morta havia sido violentada.

Gabriel dobrou o jornal com o mesmo cuidado de todos os dias. Naturalmente, teria que contar à polícia o que vira. Não podia deixar um homem inocente sofrer, pouco importando os inconvenientes para si mesmo. Era calidamente satisfatória a certeza de sua intenção, de seu espírito público endereçado à justiça. Pelo restante do dia ele se moveu vagarosa e silenciosamente em redor de seus arquivos, com a secreta complacência do homem disposto ao sacrifício.

De algum modo, no entanto, seu plano inicial de ligar para um posto policial quando fosse para casa deu em nada. Não havia nenhum motivo para agir precipitadamente. Se prendessem o rapaz, então falaria. Por enquanto, seria ridículo prejudicar sua reputação e pôr seu emprego em risco, sem ao menos saber se o rapaz era suspeito. Talvez a polícia nunca ficasse sabendo de sua existência. Comunicar agora o que sabia poderia apenas concentrar suspeitas sobre o inocente. Um homem prudente aguardaria. Gabriel decidiu ser prudente.

O rapaz foi preso três dias mais tarde. Gabriel tornou a ler a respeito, em seu jornal matutino. Desta vez não havia foto, somente alguns detalhes. A notícia tinha que competir com a fuga domiciliar de um membro da sociedade e um grave desastre aéreo, não tendo saído na primeira página. Dois centímetros e meio de letras impressas saltavam brevemente à vista: "Denis John Speller, um ajudante de açougueiro, de dezenove anos, que forneceu um endereço em Muswell Hill, foi hoje acusado pelo assassinato da Sra. Eileen Morrisey, a mãe das gêmeas de doze anos, esfaqueada na última sexta-feira, em um apartamento em Camden Town."

Sendo assim, a polícia agora sabia precisamente qual tinha sido a hora da morte. Talvez fosse o momento de ir procurá-Ia. No entanto, como ter certeza de que esse Denis Speller era o jovem amante que ele tinha espiado, naquelas anteriores noites de sexta-feira? Uma mulher daquelas - bem, poderia ter tido qualquer número de homens. Nenhuma foto do acusado seria publicada em qualquer jornal, antes do julgamento. Entretanto, mais informações surgiram da audiência preliminar. Gabriel decidiu esperar por ela. Afinal de contas o acusado talvez nem fosse levado a julgamento.

Por outro lado, tinha que levar a si mesmo em consideração. Houvera tempo para refletir em sua posição. Se a vida do jovem Speller estivesse em perigo, então, claro, Gabriel contaria o que tinha visto. Isto, no entanto, significaria o fim de seu emprego na Bootman's. Pior ainda, jamais conseguiria outro. O Sr. Maurice Bootman tomaria providências nesse sentido. Ele, Gabriel, ficaria estigmatizado como um indivíduo de mente suja, um voyeur rasteiro, um espreitador que estava desejando comprometer seu meio de vida com uma ou duas horas lendo um livro censurável e uma oportunidade para espionar a felicidade de outras pessoas. O Sr. Maurice ficaria aborrecido demais com a publicidade para perdoar o homem que a provocara.

Além disso, seria alvo de zombaria no restaurante da firma. O caso se tornaria a melhor pilhéria em muitos anos, cômica, patética e fútil. O pedante, respeitável e puritano Ernest Gabriel, finalmente descoberto! Eles nem mesmo lhe dariam crédito por dizer o que sabia. Simplesmente não lhes ocorreria que ele poderia perfeitamente ter ficado de boca fechada.

Se pelo menos pudesse pensar em um bom motivo para a sua presença no prédio aquela noite! Entretanto, não havia nenhum. Dificilmente poderia alegar que ficara para trabalhar até mais tarde, quando fizera toda questão de sair junto com o porteiro. De nada adiantaria dizer que voltara mais tarde para atualizar seus arquivos, pois estes sempre estavam em dia, como ele se orgulhava de apontar. Sua própria eficiência o contrariava. Por outro lado, Gabriel não era bom em mentiras. A polícia jamais aceitaria sua história sem investigar. Depois de já terem ficado tanto tempo trabalhando naquele caso, era difícil acreditar que dessem boa acolhida à sua revelação de novas evidências. Gabriel podia visualizar o círculo de rostos severos e acusadores, a civilidade oficial mal dissimulando a aversão e desdém que sentiam. Não fazia sentido antecipar tal provação, antes de ter certeza dos fatos.

Após a audiência preliminar, no entanto, finda a qual Denis Speller foi reconduzido à prisão para posterior julgamento, os mesmos argumentos pareceram igualmente válidos. A esta altura já sabia que Speller era o amante visto por ele. De fato, nunca houvera muito lugar para dúvidas. A esta altura, também, os contornos do caso eram aparentes para a Coroa. A acusação buscaria provar que se tratava de um crime passional e que o rapaz, atormentado pela ameaça da amante em abandoná-lo, a tinha matado por ciúmes ou vingança. O acusado, por sua vez, negaria ter entrado no apartamento aquela noite, insistiria em declarar que tinha batido à porta e ido embora. Só Gabriel poderia confirmar sua história. Contudo, ainda era prematuro falar.

Ele resolveu esperar pelo julgamento. Dessa maneira, avaliaria a força da Coroa no caso. Se houvesse uma probabilidade de o veredito ser "Não Culpado", ele poderia ficar calado. Se a situação ficasse arriscada, então havia um excitamento, uma medrosa fascinação ante a idéia de levantar-se em meio ao silêncio do tribunal lotado e dar o seu testemunho diante de todos os presentes. O questionamento, as críticas e a notoriedade viriam mais tarde. Ele, no entanto, já teria tido seu momento de glória.

Ficou surpreso e um tanto desapontado pelo tribunal. Esperara um ambiente mais grandioso, mais dramático para a justiça, do que aquela sala moderna, prática e séria. Tudo era calmo e ordenado. Não havia uma multidão à porta, lutando por assento. Aquele nem mesmo era um julgamento popular.

Deslizando para seu assento na parte dos fundos, Gabriel espiou em torno, a princípio apreensivamente, depois com mais confiança. Entretanto, não precisaria preocupar-se. Ali não havia nenhum conhecido. Em verdade, era um amontoado monótono de pessoas, que dificilmente mereceriam presenciar, pensou ele, o drama que ia ser representado diante delas. Alguns dos presentes davam a impressão de que poderiam ser colegas de Spel ler ou vizinhos de rua. Todos pareciam constrangidos e mostravam o ar levemente furtivo de quem se encontra em ambientes desacostumados ou intimidantes. Havia uma mulher magra, de roupas pretas, chorando caladamente em um lenço. Ninguém prestava atenção nela; ninguém a consolava.

De quando em quando, uma das portas no fundo da sala se abria silenciosamente e um recém-chegado se esgueirava para seu assento, de maneira quase furtiva. Quando isto acontecia, a fileira de rostos se virava momentaneamente para ele, sem interesse, sem identificação, e os olhos voltavam a concentrar-se na esguia figura ocupando o banco de réus.

Gabriel também olhava fixamente para o acusado. A princípio, ousava apenas olhares passageiros, desviando o rosto de repente, como se cada espiada fosse um risco desesperado. Era improvável que os olhos do prisioneiro encontrassem os seus, que ele soubesse, de algum modo, estar ali o homem que poderia salvá-lo e, portanto, fazer-lhe um apelo angustiado. Após arriscar dois ou três espiadas, no entanto, Gabriel percebeu que nada tinha a recear. Aquela figura solitária não via ninguém, não se preocupava com quem quer que fosse, além de consigo mesma. Tratava-se apenas de um rapaz desnorteado e aterrorizado, de olhos voltados para dentro de si próprio, para algum inferno particular. Ele parecia um animal acuado, sem esperança e chances de fuga.

O juiz era rotundo, de rosto corado, o queixo mergulhado nas faixas de gordura do pescoço. Tinha mãos pequenas, que repousavam sobre a mesa à sua frente, exceto quando ele tomava notas. Então, o Procurador da Coroa parava de falar por um momento, para depois continuar com mais vagar, como se ansioso em não apressar Sua Excelência, fitando-o como pai preocupado em explicar algo com lenta deliberação a um filho não muito inteligente.

Não obstante, Gabriel sabia onde se situava o poder. As mãos rechonchudas do juiz, entrelaçados os dedos sobre a mesa, como a paródia de uma criança rezando, tinham a vida de um homem dentro de seu domínio. Em todo o tribunal havia apenas uma pessoa com mais poder do que aquela figura de faixa escarlate, importante sob o brasão esculpido. E era ele, Gabriel. Tal percepção chegou-lhe em um surto de exultação, imediatamente embriagadora e enchendo-o de satisfação. Ele acalentou consigo mesmo esse conhecimento, triunfalmente. Era uma nova sensação, aterrorizantemente doce.

Olhou em torno, para os rostos solenes e observadores, perguntando-se como ficariam eles, caso se pusesse em pé e declarasse o que sabia. Falaria com firmeza, confiante. Eles não conseguiriam amedrontá-lo. Diria: "Excelência, o acusado é inocente! Ele bateu à porta e foi embora. Eu, Gabriel, fui testemunha disso!"

O que aconteceria então? Era impossível prever. O juiz suspenderia a sessão, para que pudessem ir a seus aposentos e ouvi-Io em audiência privada? Ou Gabriel seria logo chamado para dar seu depoimento no banco das testemunhas? Uma coisa era certa -não haveria estardalhaço, nenhuma histeria.

Entretanto, supondo-se que o juiz se limitasse a expulsá-lo da sala, e que a autoridade fosse apanhada desprevenida demais para acatar o que Gabriel tinha dito. Ele podia ver o juiz inclinando-se para diante com irritação, a mão no ouvido, enquanto os policiais no fundo da sala avançariam em silêncio para arrastar dali o infrator. Com certeza, naquele calmo e asséptico ambiente, onde a justiça em si parecia um ritual acadêmico, a voz da verdade seria uma mera e vulgar intrusão. Ninguém lhe daria crédito. Ninguém o ouviria. Eles haviam montado aquele elaborado cenário para
que sua peça fosse representada até o fim. Não iriam agradecer-lhe por estragar tudo agora. O tempo de falar já passara.

 Ainda que acreditassem nele, agora não teria crédito algum por intervir. Seria acusado de deixar seu depoimento para tão tarde, de permitir que um homem inocente chegasse tão perto do patíbulo. Isso, se Speller fosse inocente, claro está. E quem poderia afirmá-lo? Diriam que Speller batera à porta e tinha ido embora, apenas para voltar mais tarde e praticar o crime. Ele, Gabriel, não ficara na janela o tempo todo, esperando para ver. Portanto, seu sacrifício seria em vão.

Podia também ouvir as vozes sarcásticas dos colegas do escritório: "Vá a gente confiar no velho Gabriel, que deixa as coisas para o último minuto! Covarde nojento! Tem lido muitos livros obscenos ultimamente, Arcanjo?" A firma o poria no olho da rua sem, ao menos, ele ter o consolo de fazer boa figura aos olhos do público.

Oh, e ainda motivaria manchetes, sem dúvida. Podia até imaginá-las: Sensação em Old Bailey {18} Homem Confirma Álibi de Acusado! Somente, não se tratava de álibi. O que ficaria provado, em realidade? Todos o encarariam como um infrator da moral e dos bons costumes, um pequeno e patético voyeur, covarde demais para ter ido à polícia mais cedo. E, ainda assim, Denis Speller seria enforcado.

Uma vez passado o momento da tentação e já absolutamente certo de que não ia falar, Gabriel começou a divertir-se. Afinal de contas, não era todo dia que alguém podia apreciar a justiça britânica em atividade. Ele ouviu, anotou, avaliou. Aprovou o procurador da Coroa. Com sua testa alta, nariz aquilino, rosto ossudo e inteligente, parecia muito mais distinto do que o juiz. Aquela era a aparência que um advogado famoso devia ter. Ele expunha seu caso sem paixão, quase sem demonstrar interesse. Entretanto, era assim que funcionava a lei, Gabriel bem sabia. O procurador não tinha o dever de trabalhar por uma condenação. Seu papel era expor, com eqüidade e justeza, o caso pela Coroa.

Ele convocou suas testemunhas. Sra. Brenda Kealy, esposa do inquilino do apartamento. Uma prostitutazinha comum, loura e elegantemente vestida, se é que Gabriel já vira uma. Oh, ele conhecia bem o tipo, sem dúvida. Podia adivinhar o que sua mãe diria sobre ela. Qualquer um podia perceber em que ela estava interessada. E, pelo seu jeito, devia ser regularmente bem servida também nesse setor. Trajada para um casamento. Uma leviana, se é que já vira uma!

Fungando em seu lenço, e respondendo às perguntas do procurador em voz tão baixa que o juiz precisou pedir-lhe que falasse mais alto, ela disse que sim, que concordara em emprestar o apartamento a Eileen, nas noites de sexta-feira. Ela e seu marido visitavam os pais dele no Southend, todas as sextas-feiras. Sempre partiam assim que ele fechava a loja. Não, seu marido ignorava o arranjo. Ela dera à Sra. Morrisey a chave sobressalente do apartamento, sem consultá-lo. Que soubesse, não existia outra chave a mais. Por que fizera isso? Bem, tinha pena de Eileen, que a pressionara. Ela achava que os Morrisey não viviam bem.

Aqui, o juiz interveio delicadamente, lembrando que a testemunha devia limitar-se a responder às perguntas do procurador. Ela se virou para ele.

- Eu estava apenas querendo ajudar Eileen, Excelência.

Então, surgiu a carta. Foi passada para a lamuriosa mulher no banco das testemunhas e ela confirmou que a recebera da Sra. Morrisey. Lentamente, a carta foi recolhida pelo funcionário do tribunal e majestaticamente transferida ao procurador, que começou a lê-Ia em voz alta:


Brenda querida,


Afinal, estaremos mesmo no apartamento, na sexta-feira. Achei melhor comunicar-lhe, caso você e Ted mudem seus planos. Entretanto, definitivamente, será a última vez. George está começando a desconfiar e devo pensar nas crianças. Eu sempre soube que isto um dia ia terminar. Obrigada por ter sido tão amiga.


Eileen


A voz comedida, de classe superior, cessou. Olhando para os jurados, o procurador baixou a carta lentamente. O juiz inclinou a cabeça e fez outra anotação. Houve um momento de silêncio no tribunal. Então, a testemunha foi dispensada.

A sessão prosseguiu no mesmo tom. Houve o jornaleiro do final da Moulton Street que se lembrava de Speller comprando um Evening Standard pouco antes das vinte horas. O acusado carregava uma garrafa debaixo do braço e parecia muito satisfeito. Ele não tinha dúvidas de que seu freguês era o acusado.

Houve a mulher do dono do bar Sol Nascente, na esquina de Moulton Mews com High Street, que declarou haver servido um uísque ao prisioneiro, pouco depois de vinte horas e meia. Ele não ficara lá muito tempo, apenas o suficiente para beber seu uísque. Dava a impressão de muito perturbado. Sim, ela tinha certeza absoluta de que se tratava do acusado. Um bom punhado de fregueses poderia confirmar seu depoimento. Gabriel perguntou-se por que o procurador se preocupara em convocá-los, até perceber que Speller tinha negado a visita ao Sol Nascente e também negara que precisava de um drinque.

Houve George Edward Morrisey, descrito como empregado de uma agência imobiliária, homem de rosto fino, lábios comprimidos, rígido em seu melhor terno de sarja azul. Ele declarou que seu casamento tinha sido feliz, que de nada soubera. Sua esposa lhe havia dito que passava as primeiras horas das noites de sexta-feira aprendendo cerâmica, no Conselho Municipal da cidade. Soaram risinhos abafados no tribunal. O juiz franziu o cenho.

 Em resposta às perguntas do procurador, Morrisey disse que ficava em casa, cuidando das crianças, que ainda eram novas demais para serem deixadas sozinhas à noite. Sim, permanecera em casa na noite em que sua esposa fora morta. Sua morte fora um grande abalo para ele. A ligação de sua esposa com o acusado significara um terrível choque. Ele pronunciou a palavra "ligação" com irado desprezo, como se ela fosse amarga em sua língua. Nem uma só vez olhou para o prisioneiro.

Houve a evidência médica - sórdida, específica, misericordiosamente clínica e breve. A vítima tinha sido violentada e então recebera três estocadas, através da veia jugular. Houve o depoimento do empregador do acusado, que contribuiu com uma história vaga e imperfeitamente substanciada a respeito de um espeto para carne desaparecido. Houve a senhoria do prisioneiro, testemunhando que ele chegara em casa, na noite do assassinato, parecendo aflito, não tendo ido trabalhar na manhã seguinte. Alguns fios eram finos. Alguns, como a evidência do açougueiro, obviamente mostravam pouco peso, mesmo aos olhos da acusação. Entretanto, quando unidos, iam tecendo uma corda suficientemente forte para enforcar um homem.

A defesa fez o melhor que pôde, mas o advogado tinha o ar desanimado de quem sabe estar predestinado ao fracasso. Convocou testemunhas para afirmarem que Speller era um rapaz dócil e bondoso, amigo generoso, bom filho e irmão. Os jurados acreditaram nelas. Também acreditaram que ele havia matado a amante. A defesa convocou o acusado. Speller foi uma testemunha fraca, inconvincente, quase muda. Gabriel pensou que teria ajudado se o rapaz mostrasse algum sinal de piedade pela mulher morta. Entretanto, ele parecia tão absorvido em seu próprio perigo que não sobravam pensamentos para quem quer que fosse. O perfeito medo expulsa o amor, pensou Gabriel. Ficou satisfeito com o aforismo.

O juiz recapitulou com escrupulosa imparcialidade, apresentando aos jurados uma exposição sobre a natureza e valor das provas circunstanciais e uma interpretação da expressão "dúvida razoável". Foi ouvido com respeitosa atenção. Era impossível adivinhar o que se passava atrás daqueles doze pares de olhos vigilantes, anônimos. Entretanto, eles não demoraram muito.

Quarenta minutos após interrompida a sessão, a fim de que os jurados deliberassem, eles estavam de volta. O prisioneiro reapareceu no banco dos réus e o juiz formulou a pergunta de praxe. O primeiro jurado deu a resposta esperada, em voz alta e clara:

- Culpado, Excelência!

Ninguém pareceu surpreso. O juiz explicou ao prisioneiro que ele havia sido considerado culpado pela morte horrível e impiedosa da mulher que o tinha amado. Com o rosto tenso e pálido, o prisioneiro fitava o juiz com olhos arregalados, como se ouvisse apenas pela metade. A sentença foi pronunciada, tendo soado duplamente horrível, quando dita naqueles suaves tons judiciais. Gabriel olhou interessado, em busca do gorro preto mas, com surpresa e certo desapontamento, viu que era apenas um quadrado de algum tecido preto, pousado inadequadamente no alto da peruca do juiz. Os jurados receberam agradecimentos. O juiz recolheu suas anotações, como um negociante limpando sua mesa de trabalho, no final de um dia movimentado. O tribunal ficou de pé. O prisioneiro foi levado embora. Tudo havia terminado.

 O julgamento provocou poucos comentários no escritório. Ninguém sabia que Gabriel comparecera. Seu dia de folga "por motivos particulares" fora aceito com tão pouco interesse quanto qualquer ausência sua anterior. Era demasiado solitário, demasiado impopular, para ser incluído nos mexericos do escritório. Em sua sala empoeirada e mal-iluminada, insulado por fi leiras de móveis para arquivos, ele era um objeto de vaga antipatia ou, no máximo, de piedosa tolerância. A sala dos arquivos nunca fora um centro para agradáveis conversas de colegas. Entretanto, ele ouviu a opinião de um membro da firma.

Na véspera do julgamento, o Sr. Bootman entrou no escritório geral de jornal na mão, enquanto Gabriel distribuía a correspondência da manhã.

- Vejo que deram um jeito em nosso probleminha local - disse o Sr. Bootman.
-Aparentemente, o sujeito vai para a forca. Uma boa coisa também. Parece ter sido a costumeira e sórdida história de paixão proibida e estupidez geral. Um assassinato absolutamente banal.

Ninguém replicou. O pessoal do escritório permaneceu em silêncio, depois despertou para a vida. Talvez todos achassem que nada mais havia para ser dito.

Foi pouco depois do julgamento que Gabriel começou a sonhar. Era sempre o mesmo sonho, ocorrendo cerca de três vezes na semana. Ele caminhava com dificuldade por um deserto, debaixo de um sol vermelho-sangue, tentando chegar a um forte distante. Às vezes conseguia enxergar o forte claramente, embora este nunca ficasse mais perto. Havia um pátio interno cheio de gente, uma silenciosa multidão de preto, os rostos voltados para uma plataforma central. Sobre a plataforma via-se um patíbulo, curiosamente elegante, com dois grossos postes a cada lado e uma peça atravessada, formando uma curvatura delicada, da qual pendia a corda da forca.

Como o patíbulo, as pessoas não eram da época presente. Era um povaréu vitoriano, as mulheres em xales e chapéus, os homens de cartola ou chapéus coco de abas curtas. Gabriel via sua mãe lá também, o rosto fino delineado sob o véu de viúva. De repente, ela começava a chorar e, enquanto chorava, o rosto ia mudando, transformava-se no daquela mulher lacrimosa do julgamento. Gabriel ansiava chegar até ela desesperadamente, querendo consolá-la. No entanto, a cada passo, afundava ainda mais na areia.

Agora havia pessoas na plataforma. Uma delas, como sabia, devia ser o diretor da prisão, de cartola, fraque, suíças e expressão séria. Suas roupas eram de um cavalheiro vitoriano, mas o rosto sob uma barba luxuriante era o do Sr. Bootman. Ao lado dele estava o capelão, de batina e colarinho clerical, ladeado por dois guardas de prisão, os casacos escuros abotoados até junto ao pescoço. O prisioneiro estava abaixo da corda da forca. Usava calções e uma camisa aberta ao peito, mostrando um pescoço tão alvo e delicado como o de uma mulher. Podia ter sido aquele outro pescoço, tão esguio se mostrava. O prisioneiro cruzava o deserto com o olhar, fitando Gabriel, não com um apelo desesperado, mas com imensa tristeza nos olhos. E, desta vez, Gabriel sabia que tinha de salvá-lo, tinha de chegar lá a tempo.

A areia, no entanto, travava seus tornozelos doloridos e, embora gritasse que estava indo, indo, o vento, como uma quente rajada de fornalha, dilacerava as palavras de sua garganta ressequida. Suas costas, arqueadas até quase se dobrarem, estavam empoladas pelo sol. Ele não usava casaco. De algum modo, preocupava-se irracionalmente com a falta do casaco, com algo que acontecera àquela peça e que ele precisava lembrar.

Enquanto se arrastava para diante, patinhando no alagadiço arenoso, ele podia ver o forte tremeluzindo nas ondas do calor. Depois começou a afastar-se da vista, ficando mais difuso e mais distante, até finalmente tornar-se apenas um borrão entre as dunas longínquas. Ele ouviu um grito agudo e desesperador que vinha do pátio - e então acordou , para saber que tinha sido a sua voz e que ocalor úmido em sua testa era suor, não sangue.

No relativo equilíbrio da manhã, ele analisou o sonho e percebeu que a cena era a retratada em uma folha informativa vitoriana, a qual tinha visto certa vez, na vitrine de um livreiro antiquário. Segundo recordava, ali era mostrada a execução de William Corder, pelo assassinato de Maria Marten, no celeiro vermelho. A lembrança o consolou. Pelo menos, continuava em contato com o mundo tangível e sensato.

A tensão, no entanto, evidentemente o estava deprimindo. Era hora de concentrar a mente em seu problema. Gabriel sempre tivera uma boa mente, algo benéfico ao seu trabalho. Daí, naturalmente, o motivo dos demais funcionários se ressentirem com ele. Agora era o momento de usá-la. Com que se preocupava, exatamente? Uma mulher tinha sido assassinada. De quem era a culpa? Não havia várias pessoas dividindo a responsabilidade?

Antes de mais nada, aquela loura leviana, por ter emprestado o apartamento. O marido, capaz de ser iludido com tamanha facilidade. O rapaz que a afastara de seu dever para com o marido e as filhas. A própria vítima – principalmente ela. O salário do pecado é a morte. Pois bem, a mulher recebera o seu salário. Um homem não tinha sido suficiente para ela.

Gabriel tornou a evocar a sombra difusa contra as cortinas do quarto, os braços erguidos quando a mulher puxara a cabeça do rapaz para seu seio. Imoral. Repugnante. Imundo. Os adjetivos enodoaram sua mente. Bem, ela e o amante haviam tido seu divertimento. Era justo que os dois pagassem por isso. Ele, Ernest Gabriel, não estava preocupado com o fato. Apenas por mera casualidade os vira, ao espiar por aquela janelinha no alto, somente por casualidade presenciara Speller batendo à porta, para depois ir novamente embora.

Estava sendo feita justiça. Ele testemunhara Sua Majestade, a beleza de sua integridade essencial, durante o julgamento de Speller. Considerava-se parte disso. Se falasse agora, um adúltero poderia até continuar em liberdade. Seu dever era claro. Desapareceria para sempre a tentação de falar.

Foi com tal estado de ânimo que Gabriel se juntou ao pequeno e calado grupo reunido fora da prisão, na manhã da execução de Speller. Como os demais homens presentes, à primeira batida das oito horas, tirou o chapéu. Fitando o céu profundo acima dos muros da prisão, ele experimentou de novo a cálida exultação de sua autoridade e poder. Era de sua parte, por ordem de Gabriel, que o carrasco sem nome, lá dentro, estava exercendo seu medonho oficio...

Isso, no entanto, há dezesseis anos. Quatro meses depois do julgamento, a firma em expansão e cônscia da necessidade de um melhor endereço, mudara-se de Camden Town para o norte de Londres. Gabriel se mudara com ela. Era um dos poucos empregados que se lembravam do prédio antigo. Agora, os funcionários entravam e saiam rapidamente, não havia mais senso de lealdade ao emprego.

No fim do ano, quando Gabriel aposentou-se, dos dias da velha Camden Town restavam apenas o Sr. Bootman e o porteiro. Dezesseis anos. Dezesseis anos do mesmo emprego, do mesmo sala-quarto, da mesma antipatia meio tolerante dos colegas. Entretanto, ele tivera seu momento de poder. Recordava-o agora, passeando os olhos pela sórdida salinha de estar com seu papel de parede se rasgando, suas tábuas manchadas do assoalho. Havia parecido diferente, dezesseis anos atrás.

Ele recordava a localização do sofá, o lugar exato em que ela tinha morrido. Recordava outras coisas - o disparar de seu coração, enquanto cruzava o asfalto; a batida rápida à porta; a intromissão através da porta entreaberta, antes que ela percebesse não estar recebendo o amante; o corpo nu que recuava para a sala de estar; o esguio pescoço alvo; o golpe dado com seu estilete do arquivo, tão fácil como perfurar borracha macia. O aço penetrara com tanta facilidade, tão docemente.

E havia algo mais que fizera com ela. No entanto, era melhor não relembrar esse algo. Após isso, ele tornara a levar o estilete para o escritório e o mantivera sob a torneira do lavatório até não permanecer mais qualquer mancha de sangue. Então, tornara a colocá-lo na gaveta de sua mesa de trabalho, com meia dúzia de outros estiletes iguais. Nada mais havia que pudesse distingui-lo, mesmo a seus olhos.

Tinha sido tudo tão fácil! O único sangue fora um esguicho em seu punho direito, ao retirar o estilete. E tinha queimado o casaco, na fornalha do escritório. Ainda recordava o sopro quente em seu rosto, ao jogá-lo lá dentro, bem como as cinzas espalhadas, como areia, debaixo de seus pés.

Nada restara para ele, com exceção da chave do apartamento. Vira-a em cima da mesa da sala de estar e a levara consigo. Agora, retirando-a do bolso, comparou-a com a que recebera na agência de imóveis, colocando-as lado a lado sobre a palma aberta. Sim, eram idênticas. Haviam mandado fazer outra, porém ninguém se preocupara em trocar a fechadura.

Gabriel ficou olhando para a chave, tentando recordar o excitamento daquelas semanas em que tanto fora juiz como executor. Entretanto, nada pôde sentir. Fazia muito tempo que ocorrera aquilo. Tinha cinqüenta anos então; agora estava com sessenta e seis, velho demais para sentir alguma coisa. Depois recordou as palavras do Sr. Bootman. Afinal de contas, era um assassinato absolutamente banal.

Na manhã da segunda-feira, quando recolhia a correspondência na caixa, a jovem da agência de imóveis comentou com o gerente:

- Que curioso! O velhote que pegou a chave para o apartamento de Camden Town devolveu uma errada. Esta aqui não tem a nossa etiqueta colada. A menos que ele a tenha arrancado. Ora, mas por que ele faria isso?

Deixou a chave em cima da mesa do gerente e colocou diante do homem a pilha de cartas para ele. O gerente olhou casualmente para a chave. - Seja como for, é a chave certa - trata-se da única desse tipo que ainda temos. Talvez a etiqueta tenha ficado frouxa e caiu. Você devia colocá-las com mais cuidado.

- Pois foi o que eu fiz! - protestou a jovem, ofendida. O gerente pestanejou.

- Pois então torne a etiquetá-Ia, coloque-a de volta no lugar e, pelo amor de Deus, não crie caso, seja uma boa garota.

Ela tornou a fitá-lo, pronta para replicar. Depois deu de ombros. Agora que pensava nisso, ele sempre se mostrava um pouco esquisito sobre aquele apartamento de Camden Town.

- Está bem, Sr. Morrisey - respondeu.

P.D. JAMES (1920- | Inglaterra)

Embora ela considere o fato de escrever romances policiais um hobby, o Times de Londres considerou-a "a rainha das histórias inglesas de detetives". Estreou em 1962, com Cover her Face, e foi publicada no Brasil pela primeira vez nos anos 70 (Mente Assassina). Vencedora de alguns prêmios do gênero, entre eles o British Crime Writers, por duas vezes, criou histórias com o superintente da Scotland Yard Dalgliesh e outras com uma heroína chamada Cordélia Gray. E, em 2002, ela chega à lista dos mais vendidos do Brasil com Morte no Seminário.

Tradução de Luísa Ibafiez

Morre a escritora inglesa PD James, aos 94 anos

Autora best-seller de mais de 20 livros policiais, ela criou o detetive Adam Dalgliesh



POR O GLOBO 27/11/2014 11:58 / atualizado 27/11/2014 13:21


A escritora PD James - Agência O Globo

RIO - Autora de 20 livros policiais, PD James morreu nesta quinta-feira, aos 94 anos. A escritora estava "tranquilamente em sua casa em Oxford", segundo seu agente. Seu personagem mais famoso é o detetive Adam Dalgliesh, que estrelou 14 livros e ajudou a sua criadora a se tornar uma das mais bem-sucedidas autoras britânicas.

Por meio de suas obras, PD mapeou as transformações da vida no Reino Unido. Seu livro de estreia, "Cover her face", de 1962, foi comprado pela primeira editora a colocar os olhos sobre o manuscrito com a história da investigação do assassinato de uma jovem empregada, ocorrido horas depois de ela anunciar seu casamento com um dos filhos de seus patrões aristocratas.

O livro foi lançado no Brasil apenas em 1984, pela editora Francisco Alves, com o título de "A chantagista". Atualmente, é encontrada no catálogo da Companhia das Letras como "O enigma de Sally", assim como suas principais obras.

Muitos de seus livros foram adaptados para a TV e o cinema. "Children of men", de 1992, virou o longa "Filhos da esperança", de Alfonso Cuarón, de 2006. Estrelado por Clive Owen e Julianne Moore, o filme foi indicado a três Oscars, incluindo o de melhor roteiro adaptado.

Nascida em 1920, em Oxford, na Inglaterra, Phyllis Dorothy James deixou a escola aos 16 anos para acompanhar seu pai em uma carreira no serviço público. Ela se casou com Ernest White aos 21 anos e se mudou para Londres, onde deu à luz duas filhas enquanto os alemães bombardeavam a capital inglesa. O marido voltou da guerra com severos traumas psicológicos, obrigando PD a cuidar da família, trabalhando em diversos departamentos do serviço civil britânico, incluindo a polícia.

Com as filhas em um colégio interno e o marido no hospital, PD começou a dedicar suas noites à escrita, sonho que sempre nutriu. Dalgliesh nasceu como parte de um exercício para escrever romances "sérios", como explicou à revista "Paris Review", em 1994. Sempre apaixonada por histórias policiais, sabia que seria mais fácil encontrar uma editora se tivesse uma boa história de detetive.

PD costumava dizer que Dalgliesh, um policial erudito, reunia qualidades "que ela admirava" numa pessoa. Ao mesmo tempo em que a escritora aumentava seu sucesso, a carreira do Dalgliesh ia evoluindo, sendo promovido a cada livro.

O sucesso internacional veio na década de 1980, com "Sangue inocente", sobre uma jovem de 18 anos que tem uma terrível revelação sobre as origens de sua adoção por uma família aristocrata. Os direitos do livro foram comprados por £ 380 mil e vendidos para o cinema por £ 145 mil, mais do que ela havia ganhado em dez anos de trabalho no Ministério do Interior. Foi o suficiente para ela se aposentar após 30 anos de serviço e se dedicar integralmente ao ofício de escrever. "No início daquela semana, eu estava relativamente pobre e, no fim da semana, eu já não estava mais", lembrava.

Em entrevista ao GLOBO, em 2012, a escritora garantiu que não seguiria os passos de Arthur Conan Doyle, autor do mais famoso detetive britânico, que matou Sherlock Holmes após se cansar do personagem. "Mas eu não vou fazer isso com Adam Dalgliesh. Ele vai se aposentar. Ele vai morrer quando eu morrer", afirmou a PD, que escreveu 14 livros centrados em Dalgliesh. O mais recente é "O paciente privado", de 2008. Seu último romance foi Seu último livro foi "Morte em Pemberley", lançado em 2011.



PD James: 'Some people find conventions liberating'

Referências

Os 100 Melhores Contos de Crime e Mistério da Literatura Universal – Flávio Moreira Da Costa

https://oglobo.globo.com/cultura/livros/morre-escritora-inglesa-pd-james-aos-94-anos-14676645

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