sábado, 6 de janeiro de 2018

Transições mutilantes

tran·si·ção |z|
(latim transitio, -onis)
substantivo feminino
1. .Ato ou efeito de transitar.
2. Passagem de um lugar, assunto, tom ou estado para outro.
3. .Trajeto.
Palavras relacionadas: 
transir, transido, transicional, transe, transa, trânsito, inexoravelmente


mu·ti·lan·te
(latim mutilans, -antis, particípio presente de mutilo, -are, mutilar)

adjetivo de dois gêneros
Que mutila. = MUTILADOR






Transições mutilantes

José de Souza Martins: Escola com educação
- Valor Econômico/Eu & Fim de Semana

É compreensível que os pais de alunos de escola pública se inquietem com a suposta transformação da escola de seus filhos mais em escola de ideologia do que em escola de ciências, de literatura de humanidades. A concepção, também ideológica, de escola sem partido não deixa de conter uma mensagem igualmente partidária tão problemática quando a da escola como veículo de outros embates ideológicos. É difícil convencer quem quer que seja de que o suposto partidarismo na escola é um direito do professor. Não o é. Do mesmo modo, tampouco é um direito do professor pasteurizado deformar a educação de seus alunos em nome da falsa concepção de que o mundo atual é um mundo estéril, sem dilemas nem contradições.

Nessas questões, a família é a titular do direito de assegurar que seus filhos sejam educados no marco de valores sociais, sejam eles políticos ou religiosos, que os manterão afetivamente vinculados ao espírito e aos sentimentos da comunidade familiar. Os pais podem ser pais biológicos, e geralmente o são, mas são também pais sociais e espirituais. Transformar os filhos em filhos da escola é uma usurpação, mas negar à escola e ao professor a função histórica de agentes da civilização é outra usurpação.

Os sinais de eventual ideologização das universidades públicas não asseguram que aqueles de seus alunos que se destinarem ao magistério possam dar conta da missão civilizadora de suprir o que falta à família numa sociedade de transições mutilantes como a nossa.

Milhões de brasileiros estão em trânsito do mundo atrasado para o mundo moderno, o mundo rural já não é simploriamente rural. Quando muito foram reeducados pelos valores deploráveis da publicidade que patrocina programas populares. O médico, o professor, o advogado, o sacerdote e até o engenheiro, enquanto agentes culturais, estão sendo substituídos por atores formados na cultura de almanaque, disseminando o que é exercício ilegal da medicina, do magistério, da advocacia, da religião, da engenharia.

A verdade é que a mentalidade popular está cada vez mais dominada por uma cultura simplória de falsos saberes porque não contém nem mesmo o saber legitimado pela tradição, que era o que demarcava a sabedoria dos nossos avós da roça. Benzedeiras curavam soluço e mau-olhado; analfabetos tinham na memória extensa biblioteca de textos clássicos da tradição popular e contavam causos para reproduzi-los; rábulas do interior sabiam o que era justo e o que não era; capelães de roça conheciam as rezas; analfabetos de roça faziam casas que não caíam.

Quando os docentes da escola com partido abrem a boca na sala de aula, a fala já vem infectada pelas simplificações e deformações ideológicas que envenenam o conhecimento porque o privam da objetividade que lhe é própria. Escamoteiam o princípio de que a escola existe para ensinar a pensar e não para ensinar a repetir e imitar. Não é diferente a fala do docente da escola sem partido porque o vazio de que é porta-voz também está infectado pela falsa neutralidade de um silêncio que não é neutro, um cala a boca que não educa.

É verdade que a família da sociedade de transição não tem como se resguardar do esvaziamento que caracteriza a modernidade de feira livre e de botequim que vem tomando conta da sociedade brasileira em todos os campos. Também ela se apoia numa cultura de valores mutilados pelas perdas originadas da mudança social que a alcança. E pelas infiltrações substitutivas que vêm da cultura de tolices, mercantilizadas pela indústria da manipulação ideológica, seja ela política, religiosa ou comercial. Um número grande de famílias não tem condições de se defender dos ataques e agressões que vem tanto da escola sem partido quando da escola com partido.

A grande luta pela educação não está acontecendo nem pode acontecer numa sociedade em que os educadores são tratados como resto, desrespeitados até em sala de aula, até mesmo por pais de alunos. Os verdadeiros educadores, que hoje são menos do que os necessários, intimidados e humilhados pelos governos e pela sociedade, estão recolhidos ao silêncio dos derrotados numa guerra que não é a da educação.

O país precisa da escola com escola, a escola que educa nos valores da civilidade para a sociedade da civilização. Que compreenda que a esperança é muito mais do que o querer autoritário de partidos políticos. Sem esperança, a verdadeira e completa esperança, a que faz de cada cidadão, de cada jovem, de cada criança agente ativo de transformação da sociedade numa sociedade justa e feliz, a educação com escola ou sem escola será apenas resto, o nada que nos sobrou do muito que já tivemos em educação. Já fomos um país educador. Não o somos mais.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Política do Brasil Lúmpen e Místico” (Contexto).


Lua Nova: Revista de Cultura e Política
Print version ISSN 0102-6445
Lua Nova vol.1 no.2 São Paulo Sept. 1984
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64451984000200002 
A transição e os atores


A palavra transição freqüenta, hoje, a boca dos principais políticos do governo e da oposição. O seu significado e a forma como deve ocorrer, no entanto, nem sempre coincidem para os vários atores do nosso cenário político. Em vista disso, LUA NOVA entrevistou o governador Tancredo Neves, de Minas Gerais e do PMDB, e o presidente Luis Inácio Lula da Silva, do PT.
Tancredo Neves foi entrevistado, em Belo Horizonte, por José Álvaro Moisés, editor de LUA NOVA, e pelo repórter Hamilton Cardoso. Luis Inácio Lula da Silva foi ouvido, em São Paulo, pelo repórter.

A versão Tancredo

A versão Tancredo
PERGUNTA – Como o senhor vê o processo de transição do autoritarismo para a democracia no Brasil?
TANCREDO – Bem, registram-se, entre os povos, diferentes experiências de transição política do autoritarismo à democracia. Estas experiências, embora semelhantes em muitos aspectos, não são necessariamente iguais. Um primeiro exemplo é o que ocorreu no Brasil em 1945, no final do Estado Novo. Os próprios militares viraram-se contra o governo autoritário do qual eles, antes, faziam parte, e promoveram o golpe de 29 de outubro, conduzindo, assim, à transição para a democracia por intervenção dos próprios militares. Outra forma de transição é a planejada, como ocorreu na Espanha, onde após a morte de Franco, o rei tomou em suas mãos o processo de transição e, junto com as forças vivas da Nação, planejou o retorno à democracia, através de acordos amplos celebrados com toda a sociedade, que culminaram nos vários pactos – notadamente o pacto de Moncloa – e nos acordos políticos que permitiram a reorganização da sociedade em bases democráticas. Existem, ainda, processo de transição que ocorrem de forma violenta, como no caso argentino, onde o povo se mobilizou, diante da derrota militar na guerra das Malvinas, e com a galvanização das aspirações populares pelas forças de oposição, os militares foram obrigados a deixar o poder, convocar as eleições diretas para a presidência da República e devolver, de uma só vez, todos os direitos da Nação.


Por fim, existe o exemplo brasileiro atual que é uma experiência inédita de transição. Uma espécie de transição por etapas, onde as conquistas democráticas vão sendo feitas pouco a pouco, a democratização é feita gradativamente. Aqui, ocorreu, em primeiro lugar, a eliminação dos atos de exceção, como o AI-5, seguida da restituição dos poderes do judiciário, como foi o caso do restabelecimento do habeas corpus. Depois, veio a luta contra a repressão, o gradual restabelecimento da autonomia sindical, a liberdade de imprensa, a anistia e as eleições diretas para os governadores de Estado. Estamos, agora, na fase final, onde o que deve ser conquistado são as eleições diretas para a presidência da República e a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte.
MOISÉS – Como o senhor definiria o programa mínimo para a transição imediata?
TANCREDO – Na ordem institucional, a primeira decisão a tomar seria, realmente, a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte e a fixação da data para as eleições diretas. Segundo, dentro do debate da Constituição, viriam todas as teses controvertidas, a restauração plena da República que, hoje, não existe; a reformulação e a modernização da Federação, através de uma reforma tributária que leve a uma mais justa distribuição de renda nacional; e a questão do parlamentarismo. No plano econômico, a primeira providência é a renegociação da dívida externa que compreende diversos aspectos: primeiro, o da contenção do endividamento. Nós não podemos ficar sujeitos a um sistema de endividamento subordinado às taxas flutuantes de juros. Só no primeiro trimestre de 1984, nós pagamos um bilhão e duzentos milhões de dólares, acrescidos à nossa dívida, apenas com a alteração da taxa de juros, nos Estados Unidos. Não há nação que suporte um sistema que foge a todas as regras da justiça social e da justiça internacional. Em segundo lugar, tem o problema da amortização, que não se resolve a não ser com a moratória de cinco anos, abrangendo juros e capital. E, depois, pra que ter um dispositivo de amortização compatível com o nosso processo de desenvolvimento econômico. Nós não podemos manter a nação permanentemente em recessão. Isto significa reduzir a nação à fome, ao desemprego e à destruição de nosso parque produtivo, apenas para nos submetermos às exigências dos nossos credores, externos. Então, temos que estabelecer um sistema de amortização compatível com a nossa capacidade de amortizar. E essa capacidade de amortização estará sempre em função da nossa capacidade de exportação. A nação então retomaria o processo de desenvolvimento econômico e pagaria depois, acrescentando à dívida o que se deixar de pagar, negociadamente, nesses cinco anos. Seria uma política de retomada do desenvolvimento econômico para vencer o desemprego. Só dessa maneira se pode assegurar à Nação um crescimento mínimo de 5 a 6% do Produto Interno Bruto, porque senão ela estará fatalmente condenada à desagregação. No plano social eu acho que a política tem que ser mais agressiva ainda. O monetarismo ortodoxo, que nos impuseram nestes últimos 20 anos, não gerou nenhuma melhoria nas condições de vida das classes mais injustiçadas. Nós temos uma dívida social que abrange, inclusive, a mortalidade infantil, que é das mais altas do mundo; nós temos o problema do menor abandonado que é um desafio, uma chaga sangrando permanentemente nas costas da sociedade brasileira.
A reforma agrária não pode ser adiada por mais tempo, porque ela vai resolver, em grande parte, o problema do desemprego, vai ampliar o mercado interno do Brasil e vai dar estabilidade a essa massa rural que está sendo expulsa dos campos para empobrecer ainda mais as periferias das grandes cidades.
É evidente que, em crise, com choque, você não resolve os problemas. O que a gente tem que fazer é que não haja um conflito. Você não desloca interesses instalados sem haver realmente um conflito e um atrito de interesses. Há que haver muita inteligência, com imaginação, mas na lei e na ordem.
Parece que nós estamos vivendo no século XVIII, discutindo eleições diretas/indiretas, legitimidade de poder, representatividade, o voto do analfabeto. São coisas de um ridículo total, não é? Não há nação civilizada, no mundo, em que isto não esteja definitivamente resolvido, ninguém admite sequer que qualquer coisa dessa seja levantada. Nós devíamos estar lutando é pela democracia econômica. O que caracteriza a democracia econômica? É a participação equitativa de todos, com justiça social, na renda nacional. É a ascensão da massa a todos os benefícios da civilização: que haja escola gratuita a todos e em todos os lugares, que haja alimentação e que ninguém tenha fome e assim por diante. Mas nós estamos alienados destes problemas, porque existe o problema institucional. Ele tem um grande poder de absorção. A gente tem até a impressão de que este processo é dirigido para tirar a atenção do povo destas suas reivindicações no plano econômico e no plano social.
MOISÉS – O senhor mencionou o pacto de Moncloa, na Espanha, que levou a um entendimento amplo entre as diversas forças políticas. Na verdade foram dois ou três pactos que, quando se realizaram, já tinha havido na Espanha rupturas da estrutura sindical franquista, já tinha havido a recuperação do direito de greve e até os partidos ilegais tinham recuperado a sua legalidade. Chega-se, então, ao pacto com um quadro social e político mais ou menos ordenado com avenidas e vias abertas. Como é que o senhor veria isto?

Atualizar a lei de greve às novas conquistas
TANCREDO – Bem, nossas conquistas sindicais não têm sido pequenas. Ainda falta muito, os nossos sindicatos ainda precisam de fortalecimento, mas eles já têm uma presença ativa. Toda vez que um sindicato, no Brasil, se posiciona em torno de uma reivindicação salarial, ele leva a melhor. Onde o sindicato é, realmente, uma força que não se impõe é nas reivindicações políticas. Quando o sindicato sai das reivindicações sindicais e caminha para as reivindicações políticas, evidentemente, estabelecem-se dentro do próprio sindicato divisões decorrentes das posições políticas de cada um. Mas eu acho que a reforma da Consolidação das Leis de Trabalho se impõe. Ela tem que ser feita com urgência. Outro item de uma reforma social profunda, no Brasil, é o da lei de greve: ela deve ser atualizada às novas conquistas da própria massa operária no Brasil.
MOISÉS – O senhor veria isso como pré-condições para se chegar ao entendimento amplo ou como o seu resultado?
TANCREDO – Eu acho que precisamos disso para chegarmos aos objetivos, porque senão vai ser muito difícil.
MOISÉS – Governador, nós avançamos através de um processo a "conta-gotas", como o senhor o define, na base da supressão dos aspectos mais repressivos do regime, como o AI-5, mas nós ainda, convivemos com a Lei de Segurança Nacional, com as "salvaguardas" do Estado, etc. O senhor veria isto como parte da negociação?
TANCREDO – A Lei de Segurança Nacional já não é a mesma de sua origem, que era uma lei caracterizadamente fascista. Muito embora abrandada, nestes últimos dez anos, com a eliminação de muitos dos delitos que figuravam na lei original, ela ainda precisa sofrer transformações. Uma lei de segurança vale pelo seu espírito; uma coisa é uma legislação elaborada por um regime ditatorial e autoritário, outra coisa é uma lei de segurança elaborada num regime democrático. Todas as nações do mundo possuem as suas leis de segurança, até as nações socialistas. Nós temos uma lei de segurança que ainda é mais uma lei de segurança do Estado que uma lei de segurança da Nação. Nós devemos ter uma lei de segurança que defenda o cidadão contra o Estado. Não tenho dúvida. A Consolidação das Leis de Trabalho, a Lei de Segurança Nacional, a lei de greve... todas devem estar incluídas na agenda de negociações. Você não pode aplicar soluções absolutas em política. Política é a arte do relativo. Você não faz política como quer. Você só faz este tipo de política quando realiza uma revolução, torna a revolução vitoriosa e, então, consegue todos os seus objetivos, mas de revolução, nem se cogita no Brasil.
MOISÉS – O senhor vê isso afastado?
TANCREDO – Muito afastado. No Brasil, não há condições mínimas para isso. Se não tivesse havido um abrandamento nos instrumentos do regime de 64, nós teríamos chegado a uma convulsão social. A mobilização pelas diretas demonstrou isso. Essas massas numerosas não vieram às ruas só pelas diretas. As diretas eram uma idéia-força. O que levou toda essa multidão às ruas foi, justamente, uma manifestação de inconformismo e insatisfação, eu diria mesmo, de revolta contra o custo de vida, havia o protesto contra a corrupção, a violência, o continuismo, contra o retardamento das soluções dos problemas do povo. Foi um grande movimento por transformações e mudanças.
MOISÉS – E parar tudo isso, neste momento, não vai criar uma contradição para as forças de oposição; se elas tiverem de ir à mesa de negociações, estarão enfraquecidas?
TANCREDO – Não. Porque, nesta luta, levando o movimento à radicalização, vamos ter um retrocesso. Não pode ser uma solução emocional e irracional. Veja bem, o divórcio entre o poder e a Nação é muito grande. Mas o poder é muito forte. É mais forte que a Nação. É aí que nós temos que ter senso político suficiente para fazer as conquistas sem traumatismos mutilantes.
HAMILTON – Mas as oposi-ções estarão negociando, então, em situação de fraqueza...
TANCREDO – Não de fraqueza, mas de carência dos instrumentos de força. Nós temos instrumentos de apoio moral, de apoio social, de apoio do povo, mas não temos os instrumentos necessários para impor essa decisão.

O Congresso deve atender às aspirações populares
HAMILTON – Que instrumentos faltam?
TANCREDO – Nós temos que convencer o Congresso de que ele deve atender às aspirações populares. Eu tenho para mim que se, amanhã, nós conseguíssemos tornar vitoriosas as diretas, no Congresso, as Forças Armadas apoiariam e sustentariam a emenda das diretas. Se, porém, o Congresso tiver força para decidir contra as diretas, terá também o apoio das instituições militares, dentro do seu compromisso de defender a Constituição.
HAMILTON – Governador, que cacife a oposição teria para negociar com o governo numa situação em que a luta está centrada dentro do Congresso, as mobilizações de rua não têm mais aquele vigor e um setor do Congresso está sob a influência direta do governo?
TANCREDO – O grande cacife das oposições são, exatamente, as mobilizações da opinião pública que ela comandou e levou a efeito. O governo e o seu partido não são tão insensíveis a ponto de continuar ignorando este grande movimento. Este é o grande cacife que nós temos na mesa de negociação. Em segundo lugar, vem a consciência que o governo tem de que, se não chegar a um entendimento, vai caminhar para o confronto que ele não deseja. Porque ele pode, inclusive, ser soterrado na hora do confronto. Eu acho que hoje é a autodefesa dos seus interesses que leva, realmente, a uma negociação mais ampla, procurando tanto quanto possível aproximar-se o mais rapidamente das aspirações populares. O movimento de mobilização pelas diretas está plenamente vitorioso. Pode não ser pra já, pode ser para daqui a dois anos e meio, pode ser para daqui a quatro anos, mas já é uma vitória. E se não houvesse a mobilização popular, nós só iríamos ter eleições diretas – se tivéssemos – depois de seis anos da posse do sucessor de Figueiredo. Agora, o movimento foi bonito...
MOISÉS – E a hipótese do mandato-tampão?
TANCREDO – Quer saber de uma coisa? O mandato-tampão, com o voto direto, até que eu apoiaria, porque ele é, ao menos, uma solução que atenderia à reivindicação básica e fundamental do povo. Há quem defenda o mandato-tampão através do Colégio Eleitoral para abrir um espaço de transição, mas eu acho que ele deveria se fazer com disputa, com voto direto. Nós iríamos à praça pública pleitear democraticamente a conquista do poder. O mandato-tampão, com voto direto, teria a grande vantagem de aproximar ainda mais o povo das diretas. Se você pensar melhor, ninguém apóia mandato curto, por razões doutrinárias: do ponto de vista da conveniência administrativa, em dois anos e meio, o que se pode fazer?
Mas, se esse mandato vier realmente, para atender a uma conjuntura, e o novo presidente for apenas para preparar as condições para o futuro presidente, aí é diferente. Ele vai, por exemplo, promover a Constituinte, reformular a política econômico-financeira, vai adotar uma política de impacto no campo social, gerar empregos e aliviar a situação de carência em que vive a grande maioria da população mais injustiçada. Se ele buscar, realmente, tudo isso e conduzir à convocação de uma Constituinte, quando da eleição do próximo Congresso, em 86, até que se explica. Mas, só por esse aspecto – que eu chamaria de psicologia social e política – porque permitiria aproximar mais as diretas do povo.
MOISÉS – Agora, qual é a sua convicção pessoal mais profunda? Qual será o próximo passo? Através da emenda, vai se chegar a um entendimento?
TANCREDO – É o que eu acredito. Quer dizer: é a fatalidade, é a inexorabilidade da evolução do processo político.
MOISÉS – O senhor mencionava, no início, que a tese de conciliação não pode ser vista do ponto de vista regressivo, ou seja, apenas uma conciliação das elites contra o povo. Como é que se pode imaginar a hipótese de entendimento, conciliação, que abrigasse a todos os segmentos da sociedade?
TANCREDO – Eu acho a conciliação muito difícil, ela não é fácil. Os partidos se extremaram e os candidatos do PDS não se mostram dispostos a qualquer tipo de renúncia. Aliás, a conciliação para ser efetiva não poderá ser um entendimento entre cúpulas partidárias. Esta seria uma conciliação elitista, uma marginalização do povo e até contra os seus interesses. A conciliação teria que se fazer em torno de um programa mínimo de ação política, em que se contemplassem aquelas reivindicações decorrentes das mais sentidas exigências da nossa gente. Em torno desse programa se aglutinariam todos os segmentos da sociedade. O entendimento se faria de maneira estrutural, isto é, de forma vertical, abrangendo nos seus objetivos os interesses fundamentais das diversas categorias sociais, dando-se ênfase à situação aflitiva e desesperadora das camadas mais sofridas do nosso povo.


Lua Nova: Revista de Cultura e Política
Print version ISSN 0102-6445
Lua Nova vol.1 no.2 São Paulo Sept. 1984
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64451984000200003 
A versão Lula



PERGUNTA – Como você vê a transição do autoritarismo para a democracia no Brasil?
LULA – Existem duas formas de se fazer a transição do regime autoritário para o regime democrático. A primeira, como todos queremos, no Brasil, é disputando com o regime; ou seja, ganhando do regime pelo voto secreto e, a partir daí, fazendo as mudanças necessárias para democratizar o país. Eu acho que esta é a forma que pode levar a um regime democrático sólido e efi-caz, na medida em que o povo participa da sua construção.
A outra forma de transição implica a responsabilidade de as oposi-ções arcarem com o ônus político de aceitar as imposições do regime autoritário que, ao invés de deixar o poder de vez, quer sair paulatinamente. Quer dizer: aos poucos vai-se abrindo o espaço para as oposi-ções assumirem. Mas, quando o regime autoritário chega a isso, é porque a sua situação econômica já não permite mais a sua continuidade, pois comprometido com o sistema econômico internacional, o regime não pode mudar o quadro. Então, ele tenta abrir as portas para que outros façam as mudanças que ele não pode fazer. Me parece que isto é um pouco o que acontece no Brasil.
Eu acho que esta forma de transição não é eficaz. Na minha opinião ela não é prudente, neste momento, porque o regime autoritário, no Brasil, é tão decadente, tão comprometido com o processo de corrupção e de entrega do país aos interesses multinacionais que ninguém de oposição deveria assumir, mesmo um governo de transição, sem colocar toda esta situação de modo muito claro para a população.
A transição é muito mais eficaz quando o povo participa das decisões. Esta é a proposta do Partido dos Trabalhadores. O que a gente quer é que o povo brasileiro saiba, detalhe por detalhe, cada decisão tomada pela oposição e pelas pessoas que podem chegar ao governo. Isso para permitir que, amanhã, o povo possa cobrar o governo.
Não se pode falar, no Brasil, de um pacto como o de Moncloa, ocorrido na transição espanhola. Primeiro porque a tradição dos partidos políticos na Espanha é secular, eles eram muito fortes; segundo porque existia, na Espanha, um movimento sindical que, mesmo na ilegalidade – com as Comisiones Obreras e as outras organizações –, estava sempre mobilizado e criando grandes embaraços para o regime franquista. Além disso, na Espanha o rei bancou o pacto e, aqui no Brasil, além de não termos rei, o regime não tem autoridade moral e política para bancar algo dessa natureza. Então, não se pode comparar a experiência espanhola com a do Brasil. A gente não pode, pura e simplesmente, transportar a experiência histórica de um país como a Espanha para cá, para justificar um acordo com o governo.
Nós não podemos confundir acordo com transição. Eu acho que acordo não leva, necessariamente, ao governo de transição, mas sim a um governo imobilista, a um governo muito mais comprometido com o poder do que com o povo.

Os dez pontos do Partido dos Trabalhadores
HAMILTON – Você falou de duas hipóteses de transição: a primeira através de eleições diretas, a segunda através de concessões. A hipótese das diretas o regime descarta, enquanto a de concessões, quem descarta é você. Qual o caminho que resta, então?
LULA – Em primeiro lugar, é preciso salientar que o governo não está fazendo nenhuma concessão às oposições. Na verdade, são alguns setores da oposição que fazem concessões ao governo. Aí a coisa muda de figura. Uma coisa é quando você tem uma posição sólida, enraizada no movimento popular e com forte poder de pressão, o que leva o governo a vislumbrar a possibilidade de perder o poder e, então chama a oposição para negociar, senão a entrega total, ao menos a entrega parcial do poder. Hoje, no Brasil, acontece exatamente o inverso: na medida em que o povo foi à rua e deu um aval à oposição, esta, ao invés de continuar a mobilização popular para conseguir mais força, fraqueja e alguns dos seus setores começam a fazer concessões ao governo: concessão no discurso, concessão nas propostas... Isso reverte o quadro. As eleições diretas podem ser aprovadas no Congresso Nacional se se criar um clima favorável para as oposições conquistarem as diretas. Este clima não está sendo criado porque há setores que estão tentando desmobilizar a população. Eu acredito, ainda, que nós podemos democratizar a legislação partidária, legalizar os partidos clandestinos, mudar a estrutura sindical e, depois, convocar as eleições diretas com todos os partidos concorrendo para chegar a um governo de transição: isso se faz colocando o povo na rua, organizando-o por bairro, por local de trabalho, e pressionando o governo.
O diretório nacional do PT definiu, recentemente, dez pontos que acreditamos que sejam essenciais para solucionar a crise no Brasil e é em torno deles que tentaremos reunir o mais amplo arco de forças sociais, em busca da democratização do país. Os pontos são os seguintes: 1. Revogação da Lei de Segurança Nacional e todas as leis repressivas, bem como os dispositivos constitucionais sobre medidas de emergência e o "Estado de Emergência", além do desmantelamento do aparato repressivo; 2. Rompimento imediato com o Fundo Monetário Internacional e a imediata suspensão do pagamento da dívida externa, seguida de uma investigação de caso por caso; 3. Imediato reajuste salarial para todos os trabalhadores, com base na inflação dos últimos seis meses, e a adoção, daí por diante, da escala móvel de salários; 4. Criação do salário desemprego e a adoção de medidas econômicas para gerar empregos, em grande escala, para as diversas regiões do país; 5. Reforma agrária sob a direção e controle dos trabalhadores e que garanta terra para quem nela trabalha; 6. Restabelecimento da liberdade e autonomia sindicais, com o reconhecimento efetivo do direito de greve, e o desatrelamento da estrutura sindical do Estado; 7. Reformulação, com a participação dos trabalhadores, das leis sobre trabalho, salário, previdência social e aposentadoria; 8. Atendimento de emergência às necessidades básicas das populações mais carentes em termos de alimentação, saúde, habitação, educação, transporte, vestuário, recreação, lazer e cultura, com fundos provenientes dos lucros das multinacionais, grandes proprietários rurais e sistema bancário e financeiro; 9. A mais ampla liberdade de organização partidária, inclusive para as correntes hoje consideradas ilegais, o restabelecimento das eleições diretas para prefeitos de todos os municípios, inclusive aqueles considerados áreas de segurança nacional, a renovação da lei Falcão, da lei das inelegibilidades, dos casuísmos, da legislação partidária e eleitoral e de quaisquer restrições à livre propaganda e ao direito do voto que deve ser estendido aos analfabetos, soldados e cabos; 10. Solidariedade com os povos de todo o mundo que lutam contra o imperialismo e a opressão de governos antidemocráticos; o restabelecimento das relações diplomáticas, culturais e comerciais com Cuba e o reconhecimento da Frente Farabundo Marti, como legítima representante do povo salvadorenho. Eu acredito que um governo que proponha esses compromissos vai possibilitar que estas reformas de base sejam assumidas por toda a sociedade que, com total liberdade de organização, criará condições para que todas as forças políticas participem efetivamente das decisões deste país.

Ganhar tempo e limpar as gavetas
HAMILTON – Esse governo poderia ser resultado da negociação?
LULA – Não, teria que ser escolhido através de eleições diretas.
HAMILTON – Sim, mas e se o Congresso não aprovar as diretas e, num processo de negociação entre setores das oposições e o governo, você foi convidado a participar de um governo de transição...
LULA – Veja bem: eu não acredito que o governo negocie o poder. A transição, para o governo, é mais uma forma de ganhar tempo para uma limpeza de gavetas destinada a esconder o que existe de corrupção e arbítrio. Por outro lado, um governo que assuma sem as eleições diretas para presidente da República vai assumir subordinado ao que está aí. A avaliação do PT é a de que todo e qualquer acordo feito pelas elites é apenas a confirmação daquilo que é a história do Brasil: toda vez que o povo brasileiro ou as classes trabalhadoras começam a se organizar e a adquirir consciência, as elites se unem para evitar que o povo continue a sua marcha, para tentar manipulá-lo, usá-lo como marionete para que não conquiste os seus objetivos. Eu tenho afirmado que se o Partido dos Trabalhadores quiser contribuir para a formação política deste povo e a formação histórica da Nação, não pode participar de acordos mesmo porque, reafirmo, a gente não vai conseguir, na situação atual, um acordo decente com o regime. Questões básicas como as mencionadas, reforma agrária, autonomia sindical, salário mínimo condizente com as necessidades reais do povo, política de pleno emprego e todas essas coisas não encontrarão, nas elites, quem esteja disposto a ceder para a classe trabalhadora.
Depois, eu acho também que é impossível o entendimento para se chegar a um acordo, porque não conheço na história do mundo ninguém que entregou o poder através de um acordo. Depois, porque se as oposições estivessem fortes e organizadas não fariam um acordo, mas tomariam o poder. Por estas duas razões, eu não acredito em acordos: de um lado, o governo não quer, e de outro, as oposições não têm, ainda, suficiente força acumulada para fazer o governo ceder diante daquilo que queremos.
HAMILTON – Há quem diga que essa posição é de intransigência e gera o impasse...
LULA – A imagem do impasse que está sendo criada pelos meios, de comunicação precisa ser desfeita. Na verdade, o impasse já existe para a classe trabalhadora. O desemprego é uma forma de impasse; quando se consegue emprego é o impasse do salário; com o salário vem o impasse da assistência médica, se se consegue a assistência médica é o impasse da saúde e quando consegue a saúde é mandado embora... Daí eu pergunto: o que ganhamos com um acordo com o regime? O que interessa agora é a eleição direta, porque ela, sim, abre a perspectiva de mudar o regime... As oposições têm que pagar para ver e não fazer oposição de brincadeira. Tem que dizer ao governo que não vai ao Colégio Eleitoral porque sabe que a divisão do PDS é estratégica, e mostrar ao regime que é ele quem deve arcar com a escolha de um presidente da República sem nenhum respaldo popular. Se as oposições ficarem com medo, imaginando que haverá retrocesso, a coisa vai ficar feia e o governo vai tirar proveito dessa fragilidade.
As oposições não podem ficar a vida inteira discutindo a possibilidade ou não de um impasse, mesmo porque o impasse faz parte da vida política e é através dele que se consegue colocar a casa em ordem. Existe, em política, um negócio chamado medição de forças: se o regime tem mais gente no Congresso, as oposições têm muito mais gente nas ruas...

Organizando, retomar o anseio de participação
HAMILTON – Então, qual é o caminho que você aponta?
LULA – A gente tem que retomar o anseio de participação popular que havia até o dia 25 de abril. Temos que sair da fase das grandes manifestações para organizar a população, porque não basta, pura e simplesmente, o povo ir às ruas e gritar "diretas-já"; este povo precisa se auto-afirmar, em termos organizativos, nos seus bairros e nos seus locais de trabalho. É preciso inventar mil formas de manifestações, desde os "panelaços", passeatas, minicomícios, mini-assem-bléias, planfetagens e murais, até chegar às condições para, junto com o movimento sindical, a CUT e a CONCLAT, assumir a greve geral, não como um empecilho, mas como uma arma política da classe trabalhadora para a conquista de algumas das suas principais reivindicações.
O movimento pelas diretas não pode mais jogar o seu peso só sobre o Congresso Nacional que não aprovou as diretas e deixou o povo desanimado e frustrado. O Congresso precisa ser legitimado, mas quando todos tiverem total liberdade de organização e todas as correntes políticas da sociedade puderem disputar em igualdade de condições. Ou seja, cada líder político precisa desenvolver a política do feijão com arroz, cada liderança responsável por um sindicato, uma comunidade, um partido político tem que recomeçar as reuniões por bairro onde mora, por local de trabalho, para discutir com as pessoas as razões por que queremos as eleições diretas-já: queremos mudar o regime e as estruturas políticas deste país e não apenas eleger o próximo presidente da República.


Terra de Sonhos




Tocando em frente




Cálix bento




Referências

"transição", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/transi%C3%A7%C3%A3o [consultado em 06-01-2018].
"mutilante", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/mutilante [consultado em 06-01-2018].
http://gilvanmelo.blogspot.com.br/2018/01/jose-de-souza-martins-escola-com.html?m=1
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451984000200002
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451984000200003

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