sexta-feira, 5 de maio de 2017

BALAIO

100. BALAIO

Apareceram dois caras estranhos no bairro tirando informação sobre o Tiãozinho. O pessoal se fechou. Não demorou e vieram falar comigo, sabiam que eu e o Tiãozinho andamos juntos muito tempo.
O começo foi manso. Eu estava jogando balaio com uns amigos. Balaio é um tipo de truco que inventamos, mais agressivo, que dava ao vencedor o direito de ser o primeiro a atirar no próximo sujeito que a gente fosse derrubar. Eles apareceram, me chamaram de lado, abriram cervejas. Sentei-me com eles.
Explicaram que a ficha do Tiãozinho era encomenda de um grandão da Zona Norte. Não sabiam o motivo.
Eu disse que, sem conhecer o motivo, ficava difícil.
Um deles comentou que talvez o grandão quisesse as informações para decidir algo positivo em favor do Tiãozinho. Tinha a pele cor de pastel cru. Parecia uma dessas pessoas que nunca comem carne.
O outro era preto. Três rugas no rosto: duas quando ria, ao redor da boca; a outra aparecia na testa, na hora em que ficava sério. Impossível saber a idade dele.
O branco prosseguiu aventando: Quem sabe o Tiãozinho não está pra assumir uma posição importante com o homem?
O preto emendou: Pois é, e se ele estiver pra casar com a filha do homem? O Tiãozinho não seria capaz de um negócio desses?
O grandão é bicha?, eu perguntei.
O preto: Não, claro que não.
E o outro: Por quê?
Porque o Tiãozinho é capaz de qualquer coisa, eu disse. Inclusive de estar casando com esse grandão aí.
Os dois riram. O que foi bom: vi que o pessoal, que continuava firme no jogo, deu uma relaxada. Perceberam que era conversa amistosa.
Essa é boa, o branco ainda ria. E o que mais você pode contar sobre ele?
Mais nada, eu falei. Me digam o motivo ou então a gente pode mudar de assunto.
Eles se olharam, contrariados. O branco pareceu sentir mais o golpe. Era aquele tipo de homem que adora ser contrariado - em casa, no trabalho, no trânsito, em todo lugar. Só para poder explodir.
Foi ele quem falou, se controlando: Bom, então acho que temos um problema aqui. Um problemão.
O preto tentou amaciar, a ruga atravessada na testa: Você podia facilitar as coisas pra todos nós. Veja bem: temos ordem até de pagar pelas informações se for preciso.
Batuquei com as unhas no copo de cerveja. Fazia muito tempo que eu não via o Tiãozinho. A última notícia era que ele andava amigado com uma dona asmática, que quase matava todas as noites, porque nunca sabia se ela estava gozando ou tendo uma crise de falta de ar.
Os dois esperaram, achando que eu considerava o lance do dinheiro. Mesmo jogando no campo do adversário, pareciam seguros. Era uma noite fria e ambos vestiam casacos. Dava para adivinhar que estavam armados. Com coisa pesada.
Acho que vocês deviam dar outra volta pelo bairro, eu disse. Talvez apareça alguém disposto a vender alguma informação.
Você está complicando um negócio simples, falou o branco. Em vez disso, podia ganhar um bom dinheiro.
Vamos fazer o seguinte, eu me curvei e apoiei os cotovelos na mesa. Vocês descobrem por que esse grandão quer as informações sobre o Tiãozinho e voltam aqui pra me contar. Aí eu falo de graça, que tal?
Eu tenho uma proposta melhor, o branco colocou sal no meu copo e mexeu com o dedo. Você vai com a gente e conversa direto com o homem lá na Zona Norte. Eu prometo que depois a gente traz você de volta direitinho.
Eu ri: Não vai dar. Eu odeio sair do bairro.
Você vai com a gente, sim, o preto disse e tirou as duas mãos de cima da mesa.
Foi um gesto rápido, muito rápido. Se tivéssemos gente assim do nosso lado, eu pensei, nossa vida ia ser bem menos complicada. Olhei para ele com atenção e me descuidei do outro. E era exatamente o que esperavam que eu fizesse.
Percebi isso quando o branco se mexeu, a mão sob a mesa, e falou: Eu tenho uma 45 apontada para a sua barriga. Não tem jeito de errar.
O Tiãozinho deve estar metido em algum rolo muito grande, eu disse. Ou então vocês dois são meio malucos.
As mãos do preto continuavam debaixo da mesa. Na certa com duas armas também apontadas para mim.
Nós vamos sair daqui bem devagar, o branco anunciou. Você vai na frente, com muita calma, e é bom não fazer nenhuma besteira.
Eu permanecia apoiado na mesa e não me mexi. Disse a eles que bastava eu tossir para que aquele pessoal todo puxasse as armas.
Será a última vez que você vai tossir na vida, o branco falou. Você é quem sabe.
Uma coisa eu garanto, o preto disse. Vou levar um monte de gente comigo. E você será o primeiro.
Uma vez, quando eu era mais novo, vi um sujeito abrir caminho à bala num puteiro cercado pela polícia. Foi a única vez que presenciei alguém atirando com duas armas ao mesmo tempo. O cara tem que ser muito bom pra fazer isso. Aquele sujeito era e conseguiu escapar.
Vou pedir a conta, o branco avisou. Daí, a gente vai sair na boa, combinado?
Eu endireitei o corpo, mantendo as mãos sobre a mesa. O preto acompanhou meus movimentos com atenção. E pude ouvir o ruído quando ele puxou o cão dos revólveres.
Você tá armado?, ele perguntou.
Estou, eu menti.
Atendendo ao aceno do branco, Josué veio para perto da mesa e informou o valor da conta, satisfeito. As mãos do branco reapareceram, segurando uma carteira marrom. Enquanto ele escolhia as notas, olhei para Josué, que me sorriu.
Era um bom sujeito, costumava ajudar muita gente no bairro. Às vezes, quando nossos jogos avançavam até tarde da noite, Josué ia para casa e nos deixava a chave, recomendando apenas que a gente não esquecesse as luzes acesas ao sair. Eu gostava dele. Por isso, lamentei que as coisas se complicassem justo no seu bar.
E elas se complicaram mesmo. Mas não do jeito que eu esperava.
A viatura estacionou na porta do bar e os quatro policiais entraram, olhando primeiro para o pessoal que jogava balaio e depois para a mesa em que estávamos. Três deles usavam sobretudo e carregavam escopetas. No comando, um tenente que eu conhecia de vista. Gente boa.
Ele interrompeu o jogo e mandou que todo mundo se colocasse com as mãos na parede. Pensei que o tempo ia fechar: ali dentro tinha mais armas do que na vitrine das lojas de caça do centro. Os rapazes obedeceram, movendo-se com lentidão. Estavam esperando algo. Uma fagulha.
Quando o tenente se dirigiu a nós, eu me levantei da mesa na hora e me juntei aos meus companheiros. O branco e o preto não se mexeram. Ambos estavam com apenas uma das mãos sobre a mesa. O tenente achou aquilo curioso e avaliou a situação por alguns instantes. Um dos policiais afastou-se em direção à porta, procurando um ângulo mais favorável.
Gostei da cena. Claro que armamento grosso serve para dar confiança a um sujeito. Mas eu nunca tinha visto caras tão frios como aqueles dois. E pelo jeito nem o tenente, que recuou lateralmente e colocou a mão no coldre.
Josué sorriu para ele e disse: Não precisa nada disso, tenente. Conheço todo mundo, é gente daqui do bairro.
O tenente cuspiu o chiclete que mascava e perguntou: E esses dois?
Conheço eles também, tenente, Josué falou. São amigos.
O preto mantinha a vista baixa, evitando encarar o tenente. O branco olhava para lugar nenhum. Ia explodir a qualquer momento.
O tenente ainda analisou os dois por mais alguns segundos. E então relaxou.
Você tem visto o Tiãozinho?, ele perguntou a Josué.
Tem tempo que esse danado não dá as caras por estas bandas, Josué disse. Deve estar circulando em outra área. Ele aprontou alguma?
Estamos na captura dele, o tenente fez um gesto para os policiais e eles baixaram as escopetas. Tiãozinho devia mesmo estar metido em algum lance muito grande, eu pensei.
O tenente colocou outro chiclete na boca, olhou mais uma vez para a dupla na mesa e depois para nós. Daí saiu, acompanhado pelos policiais.
No exato momento em que a viatura arrancou, os rapazes puxaram as armas. Os dois continuavam imóveis, as mãos ocultas pela mesa. Ia começar a queima de fogos.
Pedi a Josué que saísse e baixasse a porta do bar. Ele fez isso, depois de lançar uma expressão triste para o balcão e para as garrafas nas prateleiras.
Magno, que estava ao meu lado, me entregou um dos revólveres que carregava, um 38. Éramos quatro contra os dois.
Como é que nós vamos resolver isso?, eu perguntei.
O preto trocou um olhar rápido com seu companheiro. Por mim, a coisa já está resolvida, ele disse. Você ouviu: a polícia vai cuidar do Tiãozinho pra nós.
O branco sorriu: Mas se você quiser partir pra festa, nós topamos. Vai ser um estrago bem grande.
Eu sabia que bastava um movimento brusco e os dois se levantariam atirando. Então baixei o revólver com cuidado e disse: Ninguém vai ganhar nada com isso. Vamos fazer um trato: vocês dois saem deste bar sem problema e nunca mais aparecem por aqui.
O preto ainda tripudiou, perguntando para o branco: O que você acha?
Ele continuava sorrindo: Me parece justo. Assim ninguém abusa de ninguém.
Eu avisei aos rapazes que os dois iriam sair e que a gente não faria nada. E caminhei até a porta, para abri-Ia.
Os dois iam sair e provavelmente nunca mais botariam o pé naquele bairro. Mas eram profissionais. E com esse tipo de gente convém não facilitar. Por isso, a um passo da porta, eu parei e alcancei o interruptor, desligando as luzes do bar.
O tiroteio durou meio minuto, se tanto. Quando reacendi as luzes, o preto estava com a cabeça tombada numa poça de sangue sobre a mesa. O branco caíra para trás, arrastando junto sua cadeira. Eu me aproximei e notei que, apesar de estar com um ferimento feio acima do olho direito, ele ainda gemia. Mirei na cabeça e puxei o gatilho, mas as balas do revólver tinham acabado. Um dos rapazes me empurrou para o lado e completou o serviço.
Magno perguntou: O que vamos fazer com eles?
O de sempre, eu falei.
Olhei o sangue espalhado pelo bar. Eu não queria que o Josué tivesse motivo pra se queixar da gente.
Vamos lá, eu disse. Depois ainda temos que voltar aqui pra fazer uma boa faxina.

MARÇAL AQUINO
(1958 - | Brasil)
Uma grata revelação de contista da nova geração, o paulista Marçal Aquino, na linha do modernista Antônio de Alcântara Machado, mas aproximando-se do pós-modernismo de um Raymond Carver, é um contista da marginalidade atual, ou seja, do brasileiro abandonado à sua própria sorte e da violência na periferia urbana (paulista, mas internacional). São contos secos, sem a glamorização dos "humilhados e ofendidos", e recusando-se o autor a cair na facilidade generalizada do psicologismo. É autor de Miss Danúbio, O Amor e outros Objetos Pontiagudos e Faroestes, de onde tiramos este Balaio. O cineasta Beto Brandt já realizou três longasmetragens baseados em seus contos.




Contos da Meia Noite - Balaio- de Marçal Aquino, interpretado por Matheus Nachtergaele.

Referência

https://www.e-livros.xyz/imagens/livros/os-100-melhores-contos-de-crime-e-mistrio-da-literatura-universal-flvio-moreira-da-costa.jpg
https://youtu.be/HlKRlBDfojQ
https://www.e-livros.xyz/ver/os-100-melhores-contos-de-crime-e-mistrio-da-literatura-universal-flvio-moreira-da-costa

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