domingo, 4 de junho de 2017

O ESTIGMA



94. O ESTIGMA

Fui um dia a Itaoca levado pelas simples indicações do sujeito que me alugou a cavalgadura.
- Não tem errada, é ir andando. Em caso de dúvida, pegue a trilha dos carros que vai certo.
Assim fiz e lá cheguei sem novidade.
No dia da volta, porém, choveu à noite como só chove por aqueles socavões, e na primeira encruzilhada parei desnorteado. Como o enxurro houvesse diluido todos os sulcos da carraria, ali fiquei alguns minutos feito o asno de Buridan, à espera d'algum passante que me abrisse os olhos. Não apareceu viv'alma, e minha impaciência empurrou-me ao acaso por uma das pernas do V embaraçador. Caminhei cerca de hora na dúvida, até que a vista duma fazenda desconhecida me deu a certeza do transvio
Resolvi portar. Abeiro-me do portão e grito o "ó de casa". Abre-mo  um negro velho, ocupado em abanar feijão no terreiro.
- O patrãozinho é lá em cima, na casa-grande.
Dirijo-me para lá, depois de entregue o cavalo, e subo a escadaria de pedra fronteiriça ao casarão senhorial.
Um grupo de crianças brincava por ali, em torno de uma fogueirinha de cavacos fumarentos.
- Fumaça para lá, santinha para cá!
Ao avistarem-me, calaram-se e fugiram, com exceção da mais taluda, que permaneceu no lugar, esfregando os olhos avermelhados e lacrimosos do fumo.
- Papai está?
Estava e ia chamá-lo respondeu, esgueirando-se pela casa adentro.
As outras, com o dedinho na boca, via-as a me espiarem da porta, à qual logo assomou esbelta menina aí entre quatorze e dezesseis anos, de avental azul e corada como quem esteve a lidar em forno.
- Faça o favor de entrar! - disse-me com linda voz, sorridente, de passo que seus olhos vivos todo me examinavam d'alto a baixo, num relance.
- Sente-se e espere um bocadinho.
- Amenina é filha do. ..
- Não, senhor. Prima. Mas moro aqui des'que morreram meus pais.
- Tão nova e já órfã !...
- De pai e mãe. Tinha seis anos quando os perdi na febre amarela de Campinas. O primo trouxe-me de lá e...
Aqui rangeu a porta e enquadrou-se nela o dono da casa. Reconhecemo-nos incontinenti, com igual espanto.
- Bruno! - berrou ele. - Que milagre!
- E tu, Fausto, onde te vim desentocar, eu que esperava ver surgir um matutão desconfiado!
Abraços, explicações, perguntas atropeladas. Fausto não cessava de admirar a coincidência.
- Há quantos anos não nos vemos? Dez, no mínimo...
- Desd'a opa da colação de grau. Como passa o tempo!. .. Pois, meu caro, prendo-te por cá. Já não te vais daqui sem conhecer o meu seio de Abraão e matar bem matadas as saudades.
Durante estas expansões, a menina do avental não arredou pé da sala, e eu volta e meia regalava meus olhos na linda criatura que ela era. Fausto, percebendo-o, apresentou-ma.
- Laurita, minha prima ...
- Já nos conhecemos - disse eu.
- Donde? - exclamou Fausto surpreso.
- Daqui mesmo, de há cinco minutos.
- Farsista! Olha, Laura, vê lá que nos tragam o café para aqui!
A menina, ao retirar-se, pôs no andar esse requebro que o instinto aconselha às moças na presença de um homem casadoiro.
- Galantinha, hein? - disse Fausto, mal se fechou a porta.
- Linda! - exclamei, carregando com fúria o i. - Que frescura! Que corado!
- O corado corre à conta do forno. Estão lá todos a assar bolinhos de milho. Não conheces minha mulher? Família Leme, da Pedra Fria. Casei-me logo depois de formado, e aqui vivo alternando seis meses de roça com outros tantos de capital.
- Excelente vida! É o sonho de toda a gente.
- Não me queixo, nem quero outra.
- Colheste, então, o pomo da felicidade?
Fausto não respondeu, e como o café entrasse no momento, a conversa mudou de rumo. Trouxe-o Laura, com bolinhos quentes.
- Estou adivinhando, dona Laurita, que este foi enrolado pelas suas mãos! - galanteei eu, tomando um deles.
- Qual? - acudiu a menina. - Esse que tem marca de carretilha?
- Sim!
Ela desferiu a mais sonora das risadinhas.
- Justamente os que têm marca são da Lucrécia...
- Ora você, cascalhou Fausto, a confundir as artes da prima com as da preta!
- Os meus são estes - disse Laura, apontando os não carretilhados. Provei um, e:
- Realmente, a diferença é enorme. Novo pizzicato da menina.
- Pois a massa é a mesma e tudo tempero da Lucrécia... Fausto pôs fim aos meus desazos convidando-me para sair.
- Estás muito chucro no galanteio. Vem daí ver a criação, que é o melhor. Saímos e percorremos toda a fazenda, o chiqueirão dos canastrões, o cercado das aves de raça, o tanque dos Pekins; vimos as cabras Toggenburg, o gado Jersey, a máquina de café, todas essas coisas comuns a todas as fazendas e que no entanto examinamos sempre com real prazer.
Fausto era fazendeiro amador. Tudo ali demonstrava logo dispêndio de dinheiro sem a preocupação da renda proporcional; trazia-a no pé de quem não necessita da propriedade para viver.
Ao jantar apresentou-me a sua mulher.
Não condisse com o molde que cá tenho de boa mulher a esposa do meu amigo. De feições duras, olhar d'ave de rapina, nariz agudo, era positivamente feia e provavelmente má.
Compreendi o caso do meu Fausto: casara rico. A fazenda viera-lhe às mãos por intermédio da esposa.
Na presença dela Fausto mudava de tom. De natural brincalhão, embezerrava-se numa sisudez que me era estranha; isso me disse que casaram os bens, os corpos, mas não as almas.
Também Laurita se coibia, e as crianças mostravam um odioso bom comportamento de meter dó. A mulher gelava-os a todos com o olhar duro e mau de senhora absoluta.
Foi um alívio o erguer-nos da mesa. Fausto lembrara um giro pelos cafezais e como já estivessem arreadas as cavalgaduras, partimos. Sem demora voltou o meu amigo à expansibilidade anterior, com a alegre despreocupação dos anos acadêmicos. A conversa correu por mil veredas e por fim embicou para o tema casamento.
- Aquele nosso horror à coleira matrimonial! Como esbanjávamos diatribes contra o amor sacramento, benzido pelo padre, gatafunhado pelo escrivão... Lembras-te?
- E estamos a pagar a língua. É sempre assim na vida: a libérrima teoria por cima e a trama férrea das injunções por baixo. O casamento!... Não o defino hoje com o petulante entono de solteiro. Só digo que não há casamento - há casamentos. Cada caso é um especial.
- Tendo aliás de comum - disse eu - um mesmo traço: restrição da personalidade.
- Sim. É mister que o homem ceda cinqüenta por cento e a mulher outros tantos para que haja o equilíbrio razoável a que chamamos felicidade conjugal.
- "Felicidade conjugal", dizes bem, restringindo com o adjetivo a amplidão do substantivo.
A vista do cafezal interrompeu-nos as confidências. Era setembro, e o aspecto das árvores estrelejadas de florinhas dava uma sensação farta de riqueza e futuro. Corremo-lo em parte, gozando o "prazer paulista" de ver ondular por espigões e grotas a onda verde-escura dos cafeeiros alinhados.
- No teu caso - perguntei - foste feliz? Fausto retardou a resposta, mastigandoa.
- Não sei. Cedi os cinqüenta, e espero que minha mulher imite a minha abnegação. Ela porém, mais tenaz, embirra em não chegar a tanto. Procuramos o equilíbrio ainda. ..
- E Laura? - perguntei estouvadamente...
Fausto voltou-se de golpe, ferido pela pergunta. Encarou-me a fito, vacilante em revelar-me o fundo de sua alma. Depois, como atravessássemos um sombrio trecho de caminho, com barrancos acima, avencas viçosas, samambaias e begônias agrestes, disse apontando para aquilo:
- Sabes o que é uma face noruega? Cá tens uma. Não bate o sol. Muita folha, muito viço, verdes carregados, mas nada de flores ou frutas. Sempre esta frialdade úmida. Laura... é como um raio de sol matutino que folga e ri na face noruega da minha vida. ..
Calou-se, e até à casa não mais pronunciou uma só palavra. Compreendi a situação do meu querido Fausto, e não lhe invejei as riquezas adquiridas por semelhante preço.
Deixei o Paraíso, que assim se chamava a fazenda, com três impressões n'alma: deliciosa, a da menina dos bolinhos, no seu avental azul, corada como as romãs; penosa, a da megera entrevista na criatura feia e má, rica o suficiente para adquirir marido como quem adquire um animal de luxo. A terceira não a define aí qualquer adjetivo espipado -complexa, sutil em demasia para caber em moldes vulgares. Era o vago pressentir duma equação sentimental cujos termos - o raio de sol, a face noruega e o meu Fausto -vagamente perambulavam dentro da minha imaginativa, às cabriolas.
Nunca tornei àquelas bandas, nem o acaso me fez encontradiço com qualquer das três personagens.
Este mundo, entretanto, é uma bola pequenina. Volvidos vinte anos, estava eu parado diante duma vitrina no Rio de Janeiro, quando alguém me cutucou as costelas.
- Tu, Fausto!
- Eu sim, Bruno!
Envelhecera Fausto quarenta anos naqueles vinte de desencontro, e o tempo murchara-lhe a expansibilidade folgazã. Enquanto palestrávamos, uma a uma subiam-me à tona da memória as cenas e pessoas do Paraíso, a fascinante Laurita à frente. Perguntei por ela em primeiro.
- Morta! - foi a resposta seca e torva.
Como nas horas claras do verão nuvem erradia tapando às súbitas o sol põe na paisagem manchas mormacentas de sombras, assim aquela palavra nos velou a ambos a alegria do encontro.
- E tua mulher? Os filhos?
- Também morta, a mulher. Os filhos, por aí, casados uns, o último ainda comigo. Meu caro Bruno, o dinheiro não é tudo na vida, e principalmente não é pára-raios que nos ponha a salvo de coriscos a cabeça. Moro na rua tal; aparece lá à noite que te contarei a minha história - e gaba-te, pois serás a única pessoa a quem revelarei o inferno que me saiu o Paraíso ...
Eis o que ouvi:
- Quando a febre amarela em Campinas orfanou Laurita, eu, como o parente mais bem condicionado, trouxe-a a morar conosco. Tinha ela cinco anos e já prenunciava nas graças infantis a encantadora menina que seria.
Eu estava casado de fresco e errara no casamento. Minha mulher - não o suspeitaste naquele jantar? - era uma criatura visceralmente má.
O "má" na mulher diz tudo; dispensa maior gasto de expressões. Quando ouvires de uma mulher que é má, não peças mais: foge a sete pés. Se eu fora refazer o Inferno, acabaria com tantos círculos que lá pôs o Dante, e em lugar meteria de guarda aos precitos uma dúzia de megeras. Haviam de ver que paraíso eram, em comparação, os círculos...
Confesso que não casei por amor. Estava bacharel e pobre. Vi pela frente o marasmo da magistratura e a vitória rápida do casamento rico. Optei pela vitória rápida, descurioso de sondar para onde me levaria a áurea vereda. O dote, grande, valia, ou pareceu-me valer, o sacrifício. Errei. Com a experiência de hoje, agarrava a mais reles das promotorias. O viver que levamos não o desejo como castigo ao pior celerado.
- A face noruega!...
- Era exata a comparação, gélida como nos corria o viver conjugal no período em que, iludidos, contemporizávamos, tentando um equilíbrio impossível. Depois tornou-se-nos infernal.
Laura, à proporção que desabrochava, reunia em si quanta formosura de corpo, alma e espírito um poeta concebe em sonhos para meter em poemas. Conluiava-se nela a beleza do Diabo, própria da idade, com a beleza de Deus, permanente - e o pobre do teu Fausto, um exilado em fria Sibéria matrimonial, coração virgem de amor, não teve mão de si, sucumbiu. No peito que supunha calcinado viçou o perigosíssimo amor dos trinta anos.
O vê-Ia deslizando por ali como a fada mimosa da triste mansão, ora a florir um vaso, ora a ameigar os pequenos, já curando os doentes pobres da fazenda, sempre irradiando beleza, felicidade e graça, foi-se-me tornando a razão do viver. Todas as generosidades e todas as coragens dos anos adolescentes borbulharam em meu peito. Compreendi a minha desgraça: era um cego a quem restituíam os olhos e que, deslumbrado, via do fundo de um cárcere, através das reixas encruzadas, a aurora, a luz, a vida, tudo inacessível... Vitimava-me a pior casta de amor - o amor secreto...
Correram meses.
Ao cabo, ou porque me traísse o fogo interno ou porque o ciúme desse à minha mulher uma visão de lince, tudo leu ela dentro de mim, como se o coração me pulsasse num peito de cristal. Conheci, então, um lúgubre pedaço de alma humana: a caverna onde moram os dragões do ciúme e do ódio. O que escabujou minha mulher contra os "amásios"!
A caninana envolvia no mesmo insulto a inocência ignorante e a nobreza dum sentimento puríssimo, recalcado no fundo do meu ser. Intimou-me a expulsá-Ia incontinenti. Resisti.
Afastaria Laura, mas não com a bruteza exigida e de modo a me trair perante ela e todo o mundo. Era a primeira vez que eu depois de casado resistia, e tal firmeza encheu de assombro a "senhora". Tenho cá na visão o riso de desafio que nesse momento lhe crispou a boca, e tenho n'alma as cicatrizes das áscuas que espirraram aqueles olhos.
Apanhei a luva.
Estas guerras conjugais portas adentro!... Não há aí luta civil que se lhe compare em crueza. Na frente de estranhos, de Laura e dos filhos, continha-se. Maltratava a pobre menina, mas sem revelar a verdadeira causa da perseguição. A sós comigo, porém, que inferno!
Durou pouco isso. Escrevi a parentes, e dava os primeiros passos para a arrumação de Laura, quando. ..
Não te recordas do bosque de pinheiros plantados em seguimento ao pomar?
- O pinhal d'Azambuja!
- Foi o nome que lhe pus, como andassem uns lagartões, seus fregueses, a me pilharem as capoeiras. Esse pinhal era o passeio favorito de Laura. Emboscavase nele com um livro, ou com a costura, e dess'arte sossegava um momento da inferneira doméstica.
Um dia em que saí à caça, menos pela caçada do que para retemperar-me da guerra caseira na paz das matas, ao montar a cavalo vi-a dirigir-se para lá com o cestinho de costura.
Demorei-me mais do que o usual, e em vez de paca trouxe uma longa meditação desanimadora, feita de papo acima, inda me lembro, sob a fronte de enorme guabirobeira. Ao pisar no terreiro, vi as crianças a me esperarem na escada, assustadinhas.
- "Papai, não viu Laura?'
- "Laura?"
Estranhei a pergunta, e mais ainda vendo aproximar-se a velha Lucrécia, que disse:
- "Não vá ter acontecido alguma para Nhá Laurita, patrão! Saiu cedo, antes do café, já é quase noite e nada de voltar."
- "A senhora ...", comecei eu a perguntar não sabia ainda o quê.
- "Sinhá está no quarto. Andou pelo pomar, voltou e se trancou por dentro. Não quer enxergar ninguém, parece que comeu cobra. .. "
O coração palpitou-me violento e saí em procura de Laurinha. Indaguei no terreiro: ninguém a vira. Lembrei-me do pinhal e organizei uma alvoroçada batida ao bosque. Com fachos incendidos de galhaça morta quebramos a escuridão reinante.
- "Nada!"
Eu desanimava já de encontrá-Ia por ali, quando um capataz, desgarrado à frente,
gritou:
- "Está aqui um cestinho!"
Corremos todos. Estava lá o cestinho de costura, mais adiante... o corpo frio da menina.
Morta, à bala!
A blusa entreaberta mostrava no entresseio uma ferida: um pequeno furo negro donde fluía para as costelas fina estria de sangue. Ao lado da mão direita inerte, o meu revólver.
Suicidara-se...
Não te digo o meu desespero. Esqueci mundo, conveniências, tudo, e beijei-a longamente entre arquejos e sacões de angústia.
Trouxeram-na a braços. Em casa, minha mulher, então grávida, recusou-se a ver o cadáver com pretexto do estado, e Laura desceu à cova sem que ela por um só momento deixasse a clausura. Note você isto: "Minha mulher não viu o cadáver da menina."
Dias depois, humanizou-se. Deixou a cela, voltando à vida do costume, muito mudada de gênio, entretanto. Cessara a exaltação ciumosa do ódio, sobrevindo em lugar um mutismo sombrio. Pouquíssimas palavras lhe ouvi daí por diante.
A mim, o suicídio de Laura, sobre sacudir-me o organismo como o pior dos terremotos, preocupava-me como insolúvel enigma.
Não compreendia aquilo.
Suas últimas palavras em casa, seus últimos atos, nada induzia o horrível desenlace. Por que se mataria Laura? Como conseguira o revólver, guardado sempre no meu quarto, em lugar só de mim e de minha mulher sabido?
Uma inspeção nos seus guardados não me esclareceu melhor; nenhuma carta ou escrito indicioso.
Mistério!
Mas correram os meses e um belo dia minha mulher deu à luz um menino. Que tragédia! Dói-me a cabeça o recordá-Ia.
A velha Lucrécia, auxiliar da parteira, foi quem veio à sala com a notícia do bom sucesso.
- "Desta vez foi um meninão!", disse ela. "Mas nasceu marcado. .. "
- "Marcado?"
- "Tem uma marca no peito, uma cobrinha coral de cabeça preta." Impressionado com a esquisitice, dirigi-me para o quarto. Acerquei-me da criança e desfiz as faixas o necessário para examinar-lhe o peitinho. E vi ... vi um estigma que reproduzia com exatidão o ferimento de Laurinha: um núcleo negro, imitante ao furo da bala, e a "cobrinha", uma estria enviesada pelas costelas abaixo.
Um raio de luz inundou-me o espírito. Compreendi tudo. O feto em formação nas entranhas da mãe fora a única testemunha do crime e, mal nascido, denunciava-o com esmagadora evidência.
- "Ela já viu isto?" - perguntei à parteira.
- "Não! Nem é bom que veja antes de sarada."
Não me contive. Escancarei as janelas, derramei ondas de sol no aposento, despi a criança e ergui-a ante os olhos da mãe; dizendo com frieza de juiz:
- "Olha, mulher, quem te denuncia!"
A parturiente ergueu-se de golpe, recuou da testa as madeixas soltas e cravou os olhos no estigma. Esbugalhou-os como louca, à medida que lhe alcançava a significação.
Depois ergueu-se de golpe, e pela primeira vez aqueles olhos duros se turvaram ante a fixidez inexorável dos meus. Em seguida moleou o corpo, descaindo para os travesseiros, vencida.
Sobreveio-lhe uma crise à noite. Acudiram médicos. Era febre puerperal sob forma gravíssima. Minha mulher recusou obstinadamente qualquer medicação e morreu sem uma palavra, fora as inconscientes escapas nos momentos de delírio. . .
Mal concluíra Fausto a confidência daqueles horrores, abriu-se a porta e entrou na sala um rapazinho imberbe.
- Meu filho - disse ele -, mostra ao Bruno a tua cobrinha
O moço desabotoou o colete; entreabriu a camisa. Pude então ver o estigma. Era perfeita ilusão: lá estava a imagem do orifício aberto pelo projétil e o do fio de sangue escorrido.
Veja você, concluiu o meu triste amigo, os caprichos da Natureza...
- Caprichos de Nêmesis. .. - ia eu dizendo, mas o olhar do pai cortou-me a palavra: o moço ignorava o crime de que fora ele próprio eloqüente delator.

Os cem melhores contos de crime e mistério da literatura universal / organização Flávio Moreira da Costa. – Rio de Janeiro: Ediouro, 2002

MONTEIRO LOBATO (1882 -1948 | Brasil)

"Foi tanto seu sucesso, que ainda hoje prossegue, da sua literatura infantil, que sua obra para adultos ficou em segundo plano. Monteiro Lobato se ressentia disso, e com razão. Além de contista de Urupês, Negrinha e Cidades Mortas, foi também advogado, jornalista, tradutor, editor - ocasião em que lançou novos escritores brasileiros, mas também alguns policiais americanos, traduzidos por ele mesmo, caso de O Pequeno César, de W.R. Burnett. O conto que se vai ler não é o único que escreveu que se pode considerar de suspense (como Bocatorta)."

“Enigmático”

EDUARDO CUNHA AINDA RESISTE À DELAÇÃO PREMIADA
Ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, réu na Lava Jato, ainda resiste à insistência de aliados, amigos e até de familiares para fechar acordo de delação premiada. Eles dizem que Cunha fica calado quando ouve esses apelos, “enigmático”. O deputado foi preso em outubro de 2016, pouco mais de um mês após perder o mandato de deputado por ter mentido à CPI da Petrobras sobre contas na Suíça.

CONDENADO
Em março, Cunha foi condenado pelo juiz Sérgio Moro a 15 anos e 4 meses por receber propina num contrato da Petrobras na África.

OUTRAS AÇÕES
Cunha responde a outras duas ações penais; uma em trâmite na 10ª Vara Criminal Federal de Brasília, relativa à Operação Sépsis.

MAIS PROPINA
A outra, que está nas mãos de Sérgio Moro investiga se ele recebeu propina de US$ 5 milhões em contratos de navios-sonda da Petrobras.
Diário do Poder Cláudio Humberto

II – Caracteres do Verdadeiro Profeta
ERASTO
Paris, 1862
            9 – Desconfiai dos falsos profetas! Esta recomendação é útil em todos os tempos, mas sobretudo nos momentos de transição, em que, como neste, se elabora uma transformação da humanidade. Porque nesses momentos uma multidão de ambiciosos e farsantes se arvoram em reformadores e messias. É contra esses impostores que se deve estar em guarda, e o dever de todo homem honesto é desmascará-los(1). Perguntareis, sem dúvida, como se pode conhecê-los, e eis aqui os seus sinais:
            Não se confia o comando de um exército senão a um general hábil e capaz de o dirigir. Acreditais que Deus seja menos prudente que os homens? Ficai certos de que Ele só confia missões importantes aos que sabe que são capazes de cumpri-las, porque as grandes missões são pesados fardos, que esmagariam os carregadores demasiado fracos. Como em todas as coisas, também nisto o mestre deve saber mais do que o aluno. Para fazer avançar a humanidade, moral e intelectualmente, são necessários homens superiores em inteligência e moralidade! Eis por que são sempre Espíritos já bastante avançados, que fizeram suas provas em outras existências, os que se encarnam para essas missões; pois se não forem superiores ao meio em que devem agir, nada poderão fazer.
            Assim sendo, concluireis que o verdadeiro missionário de Deus deve provar que o é pela sua superioridade, pela suas virtudes, pela sua grandeza, pelos resultados e a influência moralizadora de suas obras. Tirai ainda esta outra conseqüência: se ele estiver, pelo seu caráter, pelas suas virtudes, pela sua inteligência, abaixo do papel que se arroga, ou do personagem cujo nome utiliza, não passa de um farsante de baixa classe, que não sabe sequer imitar o seu modelo.
            Outra consideração a fazer é a de que a maior parte dos verdadeiros missionários de Deus ignoram que o sejam. Realizam aquilo para que  foram chamados, graças ao poder de seu próprio gênio, secundados pelo poder oculto que os inspira e os dirige, à sua revelia, e sem que o tivessem premeditado. Numa palavra: os verdadeiros profetas se revelam pelos seus atos e são descobertos pelos outros, enquanto os falsos profetas se apresentam por si mesmos como enviados de Deus. Os primeiros são humildes e modestos; os segundos, orgulhosos e cheios de si, falam com arrogância, e como todos os mentirosos, parecem sempre receosos de não serem aceitos. Já se viram desses impostores apresentarem-se como apóstolos do Cristo, outros como o próprio Cristo, e, para vergonha da humanidade, encontraram pessoas bastante crédulas para aceitarem as suas imposturas. Uma observação bem simples, entretanto, bastaria para abrir os olhos aos mais cegos: se o Cristo reencarnasse na Terra, o faria com todo o seu poder e todas as virtudes, a menos que se admita, o que seria absurdo, que ele houvesse degenerado. Ora, da mesma maneira que se tirarmos a Deus um dos seus atributos, já não teremos Deus, se tirarmos uma só das virtudes do Cristo, não mais o teremos.
            Esses que se apresentam como o Cristo revelam todas as suas virtudes? Eis a questão. Observai-os, sondai-lhes os pensamentos e os atos, e verificareis que lhes faltam sobretudo as qualidades distintivas do Cristo: a humildade e a caridade, enquanto lhes sobram as que ele não tinha: a cupidez e o orgulho. Notai ainda que neste momento existem, em diversos países, muitos pretensos cristos, como há também numerosos e pretensos Elias, supostos São João ou São Pedro, e que necessariamente não podem ser todos verdadeiros. Podeis estar certos de que aos exploradores da credulidade, que acham cômodo viver às expensas daqueles que lhes dão ouvidos.
            Desconfiai, portanto, dos falsos profetas, sobretudo numa época de renovação, porque muitos impostores se apresentarão como enviados de Deus. São os que buscam uma vaidosa satisfação sobre a Terra, mas podeis estar certos de que uma terrível justiça os espera!


(1) O grifo é nosso, para acentuar a importância dessas obrigações neste momento, em que a profecia se cumpre. (N. do T.)
O Evangelho Segundo o Espiritismo

por ALLAN KARDEC – tradução de José Herculano Pires

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